Quando Leon Theremin inventou o primeiro instrumento musical elétrico (nascido como tal; não adaptado) nos anos 20 do século passado, a possibilidade de que aquilo pudesse, no futuro, angariar um status além daquele de uma mera curiosidade era tão remota quanto seria, hoje, imaginar uma banda de rock sem guitarras elétricas. Posteriormente, quando Maurice Martenot inventou o "ondas martenot" - um instrumento mais sofisticado do que o de Theremin - que possibilitou o desenvolvimento dos modernos sintetizadores eletrônicos, o vislumbre, então mais nítido, de que experimentos naqueles moldes talvez pudessem ter desdobramentos mais consistentes, gerando "famílias" de instrumentos eletrônicos, causou, por sua vez, um tal desconforto junto aos músicos mais conservadores que estes, à falta de argumentos para explicar sua inapetência à novidade limitavam-se a dizer que os sons produzidos por aquele instrumento não eram "naturais".
Esse choque inicial causado pelo som sintetizado, "artificial", perdurou por tanto tempo e com tanta força que mesmo nos anos setenta - cerca de cinqüenta anos, portanto, após o modelo de Theremin - seus ecos ainda eram ouvidos: o músico japonês Isao Tomita, por exemplo, ao gravar, em 1974, uma versão para sintetizador da suíte Quadros de Uma Exposição (1874), de Modest Mussorgsky, achou conveniente anexar à contracapa de seu disco um texto "explicativo", justificando a existência e o uso desses instrumentos. De um certo modo, como se vê, só muito recentemente - finalmente passados os impactos daquela longa fase heróica - é que a presença, na vida musical, de teclados e instrumentos eletrônicos de toda ordem se tornou realmente "naturalizada" ao ponto de já não causar maiores reflexões sobre a legitimidade ou não do uso desses instrumentos.
Emblemático, então, do quanto a idéia do novo, já por si perturbadora, adquire contornos francamente assustadores quando potencializada por algum elemento que foge aos parâmetros da normalidade, esse episódio também diz muito numa abordagem do "natural" - e de seu avesso, o "artificial" - calcada numa idéia tão óbvia quanto aparentemente simplista e redutora como a que quero esboçar aqui: há um natural - perdoem-me o truísmo - da natureza, e um natural cultural, construído, do homem. As fronteiras entre um e outro, contudo, não são assim tão fáceis de delimitar; na maior parte do tempo aparecem confundidas e misturadas, e nesse sentido, sendo o homem - também ele - um produto da natureza, toda e qualquer interferência sua sobre o que lhe circunda já estaria, de algum modo, prevista na origem de tudo, sendo, portanto, igualmente "natural". Assim como as anomalias e as doenças já estão inseridas - tanto quanto a normalidade e a saúde - na ordem natural das coisas, o comportamento sob vários ângulos "anti-natural" do homem também se inscreveria nessa "programação geral" que ao fim e ao cabo, parafraseando Fernando Pessoa, regeria - indiferente aos destinos de cada um - pedras e gentes.
Longe, porém, de resolver a questão e apaziguar as consciências, essa aparente duplicidade do natural se, por um lado, diz muito, por outro não diz tudo, deixando por responder não somente o porquê do desconforto que nos acomete cada vez que tentamos definir os contornos do que é natural e do que não é, como, também, a própria razão dessa necessidade quase atávica de definição. Tenho para mim, no entanto, a suspeita de que esse impreciso sentimento de perda de um sentido de naturalidade do homem contemporâneo está relacionado com uma perda maior: a do significado, mesmo, da vida. Creio que há algo por trás da vaguidão desse sentimento que nos toca de maneira inequívoca. Há um elemento abstrato, intangível, mas todavia real, que condiciona e determina as relações do homem com o todo, e no momento em que esse elemento se torna opaco, difuso, tudo o mais desmorona, pois ele é mais do que uma mera abstração da realidade: ele é a moldura dentro da qual não apenas se sucedem os eventos históricos, mas também - e principalmente - onde o homem concebe uma idéia de Deus, elabora uma noção do tempo e constrói os horizontes utópicos. O plano artístico também é tributário dessa moldura e se tomarmos como exemplo a literatura veremos que a própria idéia da criação literária como uma mimese do mundo, reflexo da realidade, hegemônica há até bem pouco tempo, está intrinsecamente ligada à existência daquilo que o poeta mexicano Octavio Paz chamaria de "imagem do mundo", uma concepção de realidade dentro da qual as construções humanas se inserem e com a qual dialogam. Lembra Octavio Paz que "(...) o poeta do passado se alimentava da linguagem e da mitologia que sua sociedade e seu tempo lhe propunham" e que "essa linguagem e esses mitos eram inseparáveis da imagem do mundo de cada civilização" (1). É, pois, essa relação entre a imagem do mundo e a obra do homem que confere significado a esta última e a permite sobreviver aos séculos.
Ao contrário de épocas passadas, porém, vivemos agora em um momento de crise semântica. Subitamente, tudo se tornou transitório, efêmero, "não natural", e as construções humanas, longe de estabelecerem laços simbólicos com o universo, reduzem-se a sua própria materialidade: começam e terminam em si mesmas. Essa auto-referência das coisas é o exemplo mais eloqüente da rarefação da imagem do mundo, que, à medida que se desfoca, vai potencializando a sensação de afastamento da natureza e um crescente sentimento de artificialismo da cultura e da própria vida contemporânea, o que gera, em última instância, todo um leque de questionamentos a respeito do "natural" que para um homem do século passado, por exemplo, não teria sentido algum. Este não só sabia o que era natural como sabia-se pertencente a ele, e toda sua pulsão rumo à tecnologia e à transformação do natural era possível justamente por haver essa certeza a respeito, por assim dizer, da "natureza" do natural. Irônica e tragicamente, o avanço tecnológico tornado possível por uma circunscrição do natural a um conceito fechado foi justamente o que tornou essa circunscrição porosa de fora para dentro.
Fundamentalmente, a rapidez das inovações tecnológicas, um dos motores do processo de fragmentação do homem, mina a noção do natural porque impõe um ritmo que não é aquele com o qual o homem conviveu por séculos e do qual o homem contemporâneo - apesar de não tê-lo realmente vivenciado - guarda uma memória ancestral. É verdade que o comprometimento da percepção do tempo já está de certo modo implícito na própria essência dos inventos tecnológicos, que visam, antes de tudo, acelerar a velocidade de processos e operações que de outra forma demorariam demasiadamente. Contudo, enquanto havia um lapso entre uma geração tecnológica e outra, havia também como que um período de adaptação em que o tempo do homem e o tempo da máquina acabavam por se encontrar. Agora, porém, já não há mais essa "trégua" e o descompasso entre os dois tempos se acentua de modo vertiginoso. Nas últimas décadas do século XX a velocidade dos avanços tecnológicos se acelerou de tal modo que perdeu contato com o ritmo natural da vida e com o tempo psicológico individual, começando a nos pôr em dúvida quanto à validade da proposição vigente desde o Eclesiastes de que "há um momento para tudo e um tempo certo para cada coisa". A própria noção de um tempo contínuo, em que o passado é projetado no presente e este no futuro parece ameaçada. Para comprovar isso, basta contrapor o antigo esquema temporal, no qual era possível situar a vida de uma forma linear, tanto progressiva quanto regressivamente - o que permitia vislumbrar, ao menos como possibilidade, um certo controle do futuro - e o tempo trazido à luz pelas novas tecnologias que, ao contrário, elimina totalmente essa possibilidade por não conter, simplesmente, nenhuma idéia de futuro reconhecível, que acolha o resultado do que somos agora.
Algo metaforicamente - mas nem tanto - mesmo a eclosão, em pleno século XXI, de velhos e novos tribalismos, a irrupção de nacionalismos culturais, religiosos e políticos, o ressurgimento, enfim - em meio à chamada globalização -, de particularismos de toda ordem - inclusive em suas versões mais violentas - podem muito bem ser vistos como tentativas de retorno a estágios anteriores da humanidade; a épocas em que as identidades, bem definidas, servindo como uma espécie de âncora do homem na natureza, o protegiam de uma fragmentação ou dissolução num todo artificial, sem contornos precisos. Não é à toa, como observa o filósofo José Arthur Giannotti, que "(...) sendo o mundo contemporâneo travado por uma teia de objetos naturais conformados pela ciência, isto é, travado como segunda natureza, o inimigo exterior se infiltra nos poros do sistema, como aquele que é capaz de conduzir a natureza artificial à natureza bruta" (2).
Dito de outro modo: apartada do natural primevo, a alma reclama seus domínios. Ao contrário, porém, dos discursos políticos, quase sempre atrasados em relação à cadência do mundo, os discursos das artes há muito já absorveram o estado de espírito decorrente do afastamento da dimensão básica da vida e o utilizam não apenas como "conteúdo", mas também como forma dos objetos artísticos: se, no primeiro caso, José Saramago reproduz, em contos como Coisas ou Embargo, do livro Objecto Quase (1978), o caráter circular e sem sentido da vida "artificializada", e David Cronenberg retrata, em filmes como Crash (1996), o caráter desumanizado do homem contemporâneo; no segundo os artistas plásticos substituem o figurativo pelo abstrato não apenas no nível pictórico, mas sobretudo no nível dos suportes, os quais passam a ser, literalmente, qualquer coisa.
Longe, contudo, de querer ou sugerir um ingênuo retorno ao bon savage rousseauniano, ou pretender restaurar por escrito o natural do mundo - tarefa necessariamente impossível, pois como dizia Nelson Rodrigues, "uma simples frase nos falsifica ao infinito", o que as artes - como aliás sempre o fizeram e é de sua natureza - propõem é uma reflexão a respeito do estado do mundo.
Talvez no momento em que os homens não voltarem a ser postos no lugar das coisas a discussão sobre o "natural" possa vir a ser, novamente, uma mera questão acadêmica.