JÚLIO CÉSAR DE BITTENCOURT GOMES
Relato de um não-lugar

“Inventava um país e discorria sobre ele sem a menor cerimônia”.
Bernardo Carvalho, Mongólia


É sempre interessante ouvir o que os escritores têm a dizer sobre o seu ofício. Não que suas opiniões devam ser levadas muito em conta no momento de interpretar o que eles escrevem, afinal, são escritores, inventores de mundos paralelos e, como tais, não propriamente comprometidos com os rigores da “verdade”, no sentido corrente do termo. Na maneira como respondem a determinadas perguntas, porém, é possível rastrear um modo de ser e de estar no mundo ou na literatura – o que, nos grandes casos, é a mesma coisa – intimamente relacionado com o que escrevem. O argentino Ricardo Piglia, por exemplo, ao ser questionado certa vez sobre o que esperava de um escritor respondeu: “Que escreva bem.” O brasileiro Bernardo Carvalho, ao contrário, ao se ver diante de uma pergunta semelhante respondeu que escrever bem é um a priori, um dever de ofício do escritor, e que isso nem deveria ser motivo de elogio numa análise sobre o valor literário de um texto (1).

Aparentemente discordantes, creio que há pontos de contato entre as duas visões. Se o compromisso do escritor – como me parece ser a idéia subjacente à frase de Piglia – é com sua escrita, com sua obra, todo apelo político, social ou de outra ordem (embora legítimo, se fizer parte das preocupações do escritor), será sempre secundário diante do trabalho com a linguagem , característico da literatura, e frente à autonomia da obra de arte (esse “inutensílio”, como a chamaria Paulo Leminski). Dito de outro modo: se a obra não se realizar no plano estético, não haverá engajamentos ideológicos, sociais ou políticos que a justifiquem. Nessa medida, a fala de Piglia não somente declara, em outros termos, a mesma coisa dita por Carvalho, como também sintetiza, de algum modo, a obra do brasileiro, sobretudo o seu mais recente romance, Mongólia (2003). Essa espécie de diário de viagem que Bernardo Carvalho escreveu a partir de um périplo de cerca de cinco mil quilômetros pelo país asiático, financiado por uma bolsa de criação literária concedida pela Fundação Oriente, de Lisboa, é menos o relato jornalístico de um “choque cultural” (a rigor inexistente, como bem percebe Jorge Coli, num artigo sobre o livro (2) do que a criação de um não-lugar mental , mais do que físico, feito de pura linguagem e alucinação.

Os relatos em espiral, que parecem se desdobrar sobre si mesmos e o tom algo paranóico dos personagens – que remetem, por vezes, aos universos criados por Thomas Pynchon ou Thomas Bernhard – são característicos da prosa de Bernardo Carvalho, cujos temas trafegam sempre sobre o frágil liame das identidades confusas, das aparências, das contínuas buscas por alguma verdade que, no entanto, se esgotam nelas mesmas. Não será à toa que um de seus romances anteriores se chame, justamente, Teatro (1998), nem é assintomático que numa resenha sobre o livro de contos Grande Sonho do Céu , de Sam Shepard, Carvalho chame a atenção para o último conto da coletânea, Todas as árvores estão nuas , no qual um homem, à visão da mulher diante da televisão assistindo a O terceiro homem , entrega-se a um fluxo de digressões a respeito do que há de fake no filme – o vento fabricado, as folhas das árvores de mentira – até o ponto de descobrir-se “dentro” da história, acreditando em cada fotograma que aparece na tela. No final, o homem sente-se feliz por estar ali, tocando os cabelos falsamente louros da mulher, mas, ambiguamente, se pergunta: “Quanto tempo faz desde que a beijei pela primeira vez e quem é que eu estava fingindo ser?”. À luz dessa frase final, o Bernardo Carvalho crítico faz um comentário que serviria para a obra do Bernardo Carvalho escritor: “A idealização da autenticidade cai por terra. Afinal, antes de ser um homem do oeste, Shepard é um homem de teatro.”

Também Carvalho é um homem de teatro, se não o do palco, das cortinas e da mise-en-scène , o das relações sociais, igualmente “encenadas”, levado a cabo por cada um no cotidiano (este já por si teatral). Essa encenação vai do relato cindido em dois, com uma segunda parte “desmentindo” e anulando a primeira, como acontece no próprio romance Teatro , já mencionado, até um romance travestido de peça teatral, como Medo de Sade (2000), passando pela “coincidência” de nomes de cidades e os embaralhamentos narrativos decorrentes: a Los Angeles, de Os Bêbados e os Sonâmbulos (1996), a qual (remetendo à Paris, de Wim Wenders, que não é a capital da França, mas um lugarejo perdido no deserto texano), não é na Califórnia, mas no Chile. E “para completar,” diz um dos personagens do novo livro, “na Mongólia, lugares diferentes têm o mesmo nome, como se o próprio terreno fosse movediço.”

Talvez também fosse possível, aqui, traçar um paralelo com As Cidades Invisíveis , de Italo Calvino ou com um seu duplo brasileiro, Cidades Inventadas , de Ferreira Gullar, dois relatos em que a imaginação, travestida de memória, recria as cidades e o mundo, mas prefiro lembrar de um conto do próprio Bernardo Carvalho, O ARQUITETO Um homem e uma mulher a caminho da polícia , do livro Aberração (1993), para situar Mongólia . Já naquele conto – a história de um arquiteto que, sentado na privada, observando os azulejos nas paredes, as lajotas no chão, e as louças do banheiro, tem a idéia de uma cidade, labiríntica, que constrói com as mesmas proporções do banheiro em uma escala milhões de vezes maior – estava presente essa concepção de espaço, de lugar, como alucinação, como coisa mental, simultaneamente paranóica e racional. Em Mongólia a mesma estrutura é repetida, seja no plano formal – três níveis narrativos que se misturam: o do narrador, propriamente dito (ex-embaixador brasileiro na China), que relata a investigação diplomática sobre o desaparecimento de um fotógrafo brasileiro no interior da Mongólia, as anotações de um diplomata escalado para encontrar o fotógrafo e o diário do próprio fotógrafo – seja na reprodução do sentimento de estranhamento diante dos lugares, o qual se dá através da constatação do caráter inóspito e artificial que lhes caracterizam e por uma desconstrução de estereótipos que acentua ainda mais a sensação de deslocamento dos narradores. Esse deslocamento, porém, é menos geográfico do que mental. Não é porque estão na Mongólia que os narradores se sentem estrangeiros; eles são estrangeiros no mundo – suas angústias são de ordem existencial, para não dizer metafísica – e o inusitado e comovente desfecho, que reitera, algo borgeanamente, a irônica força do aleatório que se imiscui em seus destinos, só vem a confirmar esse sentimento de incompreensão que os acomete.

Mongólia é todo perpassado por descrições da paisagem mongol e dos hábitos de seus habitantes, no entanto, o que num primeiro momento poderia parecer a narrativa de um “choque de civilizações”, uma reflexão sobre o deslocamento e o desconforto causado pelo outro, revela-se, ao contrário, o relato de um mal estar globalizado, daí um certo tom claustrofóbico – no sentido mais kafkiano do termo – impresso ao texto: “ Os edifícios espelhados, vistos de longe, são como torres de uma cidade de ficção científica, um mundo ao mesmo tempo futurista e decadente, sob a opressão das nuvens de poeira e névoa que, tornando a luz do sol difusa e tênue, fazem do horizonte uma miragem, um desejo cego para quem quer escapar deste lugar sem saídas, um lugar que tenta ser asséptico, em vão, apesar de toda a sujeira atávica e dos odores mais variados e fétidos que volta e meia sobem ao nariz. (...) É uma arquitetura avassaladora, ao mesmo tempo majestosa e inóspita, como um palácio que tivesse sido construído no meio do deserto só para impressionar quem passasse por ali morrendo de sede tentando evitar as miragens .”

Essa descrição de Pequim, feita pelo diplomata numa escala a caminho da Mongólia, poderia muito bem ser um retrato de Brasília, Washington ou qualquer outra capital do poder, “opressiva e irreal”, como ele declara em outro trecho. Nesse sentido, tanto faz tentar descrever a China, a Mongólia ou o próprio Brasil: será sempre a descrição de uma miragem, de um cenário subjetivo, inexistente no mundo físico, que se repetirá indefinidamente, a despeito das geografias. “É como se todos mentissem e as mentiras fossem complementares”, escreve o diplomata em seu diário. Essa é uma idéia recorrente ao longo da narrativa e está presente nos mínimos detalhes, inclusive num elemento extra-textual: as belas fotos da capa e da contracapa do livro, por exemplo, que poderiam ser do fotógrafo desaparecido, são do próprio Bernardo Carvalho, e uma delas, desmentindo qualquer alteridade mais óbvia ou folclórica, retrata um grupo de mongóis jogando bilhar em meio a um espaço desértico, numa cena simultaneamente estranha e familiar.

Se a imaginação é mesmo a memória que enlouqueceu, como dizia Mário Quintana, Mongólia é o atestado da loucura, da nossa incapacidade de remontar os acontecimentos às suas causas e encontrar significados. E da capacidade inversa que só a literatura possui de ordenar e atribuir sentido aos caóticos e gratuitos eventos da vida.

NOTAS

1. Cf. Retrato pessoal . Entrevista de Ricardo Piglia a Martin Caparros. Buenos Aires, Babel , 1990. Reproduzida no livro O Laboratório do Escritor . Trad. Josely Vianna Baptista. São Paulo, Iluminuras, 1994, p.57. A pergunta, na verdade, era: “Para que serve um escritor?”, e a resposta: “Para dizer bem.” A declaração de Bernardo Carvalho estou citando de memória.

2. Cf. COLI, Jorge. Não há mais para onde ir . “Folha de S. Paulo, Mais!”, 30 de novembro de 2003, p.19.

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JÚLIO CÉSAR DE BITTENCOURT GOMES. Colaborador do Triplov, professor de literatura, doutor em literatura brasileira pela UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) – Brasil, com a tese Imagens, Esquinas e Confluências: um roteiro cinematográfico baseado no romance “O quieto animal da esquina”, de João Gilberto Noll, seguido de anotações.