JOSÉ SARAMAGO
De "As Pequenas Memórias"
As cicatrizes
As cicatrizes
O lápis de leite
Os avós
Os bacorinhos

Quando me lembrei de descrever o episódio da queda na Avenida Casal Ribeiro tinha em mente uma fotografia em que estou com a minha tia Maria Natália, tirada por um fotógrafo à Ia minuta no Parque Eduardo VII, aonde aos domingos, infalivelmente, iam passear as criadas de servir de todas as casas ricas e os magalas de todos os quartéis de Lisboa. Nessa fotografia, que se perdeu como tantas outras, estava de blusa e calções, com as meias pretas subidas até ao joelho, seguras por um elástico branco. Uma regra fundamental da arte de bem vestir mandava enrolar uma parte do canhão da meia para que não notassem as ligas, mas, pelos vistos, eu ainda não ia sido instruído nesses requintados pormenores vida social. Percebia-se distintamente a crosta de uma ferida no joelho esquerdo, mas esta não era a da Avenida Casal Ribeiro. Aconteceria uns anos mais tarde, na cerca do Liceu Gil Vicente, e foi tratada no posto médico. Puseram-me o que então se chamava um «gato», um pedacinho de chapa metálica, mais ou menos em forma de pinça, que se cravava nos bordos da ferida para os juntar, e, pelo contacto, apressar a cicatrização. A marca manteve-se visível durante muitos anos, e mesmo agora ainda se podem distinguir uns ténues vestígios dela. Outra cicatriz que conservo é a da fina linha de um corte de navalha, um dia lá no Mouchão de Baixo, quando talhava um barco num pedaço de cortiça. Espetava a ponta da lâmina para arrancar pedaços da corcha ao que viria a ser o interior da embarcação, quando, de repente, por fraqueza da mola, a navalha se fechou e o gume abriu caminho naquilo que encontrou à sua frente, a parte exterior do dedo indicador da mão direita, ao lado da unha. Por pouco não me levou adiante uma lasca de carne. Fui curado com um dos remédios milagrosos daquela época, álcool com balsamina. A ferida não infectou e cicatrizou perfeitamente. A tia Maria Elvira dizia que eu era de boa carnadura.

. "As Pequenas Memórias", pp. 76-77











As Pequenas Memórias
JOSÉ SARAMAGO
Lisboa, Editorial Caminho, 2006

José Saramago nasceu na aldeia ribatejana de Azinhaga, concelho de Golegã, no dia 16 de Novembro de 1922, embora o registo oficial mencione o dia 18. Seus pais emigraram para Lisboa quando ele ainda não perfizera três anos de idade. Toda a sua vida tem decorrido na capital, embora até ao princípio da idade madura tivessem sido numerosas e às vezes prolongadas as suas estadas na aldeia natal. Fez estudos secundários (liceal e técnico) que não pôde continuar por dificuldades económicas.

No seu primeiro emprego foi serralheiro mecânico, tendo depois exercido diversas outras profissões, a saber: desenhador, funcionário da saúde e da previdência social, editor, tradutor, jornalista. Publicou o seu primeiro livro, um romance ("Terra do Pecado"), em 1947, tendo estado depois sem publicar até 1966. Trabalhou durante doze anos numa editora, onde exerceu funções de direcção literária e de produção. Colaborou como crítico literário na Revista "Seara Nova".

Em 1972 e 1973 fez parte da redacção do Jornal "Diário de Lisboa" onde foi comentador político, tendo também coordenado, durante alguns meses, o suplemento cultural daquele vespertino. Pertenceu à primeira Direcção da Associação Portuguesa de Escritores. Entre Abril e Novembro de 1975 foi director-adjunto do "Diário de Notícias". Desde 1976 vive exclusivamente do seu trabalho literário.

Prémio Nobel da Literatura, 1998