O meu avô materno era moleiro. Fez a quarta classe
aos dez anos, coisa raríssima no ano final do século XIX entre gente
camponesa e pobre, pelo que o convidaram a entrar num Seminário para
poder prosseguir os estudos. Avesso por temperamento a tudo o que lhe
cheirasse a religião, recusou e apenas acedeu a casar pela Igreja aos 73
anos, a pedido da minha avó, moribunda. Quando ainda muito jovem,
acenara-lhe uma futura herdeira rica, mas ele preferiu “aqueles olhos
bonitos” à promessa de vida desafogada.
Foi moleiro por descender de outra família que não a
sua. A frase parece enigmática, mas explica-se com facilidade. O avô
materno deste meu avô era filho de um casal abastado, que assaltaram.
Mataram-lhe a mãe, e o pai, que fugiu com o filho para os campos, acabou
por ter destino igual. A criança conseguiu escapar e, errando pelas
terras, chegou a um moinho, onde um casal o recolheu. Esse casal, de
idade um pouco avançada, não tivera filhos e, tempos mais tarde, decidiu
adoptá-lo.
Como era habitual, deram-lhe como herança a profissão
e os dois moinhos – um, de água e o outro, de vento – que possuíam, tal
ele fez depois com os seus descendentes. O meu avô e alguns dos meus
tios, que ainda lá trabalharam antes de se dedicarem a outros modos de
ganhar a vida, sofreram também umas quantas tentativas de assalto quando
pernoitavam neles.
Ao meu avô materno, que manteve uma paixão particular
pela História ao longo da vida, fico a dever, além de lha herdar, a
inesquecível experiência de fingir deixar-me guiar a parelha de machos –
o Pardal era o macho mais irrequieto – que atrelava à carroça em que
transportava os sacos de farinha. E também a de ir orgulhosamente
montado e a guiar o burro, carregado de alforges… Para um puto da
cidade, que coisa mais enriquecedora haverá na infância do que a
sensação de trabalho físico conjunto entre nós, os mais inteligentes, e
a restante natureza?
O meu avô paterno, que não cheguei a conhecer, esse
morreu com cinquenta e poucos anos, devido a problemas cardíacos,
provocados por excesso de trabalho. Fora, na juventude, trabalhador
rural – trabalhador de enxada, como era uso dizer-se – mas possuía uma
boa intuição para o comércio e, apesar de analfabeto, conseguiu amealhar
e aplicar as poupanças em pequenos negócios, que o tornaram num
comerciante de dimensão média para o nível de desenvolvimento local.
Era um entusiasta do “progresso”, como se dizia na
altura, e foi dele a oferta à colectividade do primeiro aparelho de
rádio que a vila teve. Desassombrado e frontal nas atitudes e relações,
sempre se declarou nos documentos como trabalhador rural. A propósito
dessa frontalidade e desse desassombramento, contavam-me o que relato em
seguida.
Havia, ao tempo, uma quadrilha centrada na povoação,
com ramificações até uns 20km em redor (30km, se contado a partir da
capital do distrito), roubando toda a sorte de bens, dos produtos
agrícolas aos bens pessoais. Valiam-se de cópias das chaves dos armazéns
e residências, conseguidas pelos mais diversos meios. Não foi fácil
desmantelar o grupo nem prender o chefe, a polícia só o conseguiu
mediante promessa de imunidade a um dos elementos do bando, caso
denunciasse os restantes.
E na memória da vila, entre outras coisas, ficou a
pergunta que, um dia, o meu avô fizera ao chefe do bando, em público,
com esse tal desassombro tranquilo: “Então quando é que vais à minha
casa?”; bem como a resposta displicente que recebeu: “Não… tu ainda és
dos pequenos…”.
Ao meu avô paterno não devo nada directamente.
Devo-lhe, no entanto, a experiência do que podia ser uma casa de maior
desafogo, fruto da iniciativa própria, do trabalho e da inteligência
aplicada a uma visão mais alargada da vida, e da permanente procura de
recursos inventados e por inventar que a enriqueçam e facilitem.
Devo-lhe o gosto pela leitura adquirido pelo meu pai – já que o meu avô,
embora analfabeto, participava com mais uns quantos numa espécie de
clube informal, onde um seu cunhado lia em voz alta o jornal diário e
até romances (o De Profundis,
versão abreviada da Carta a Lord
Douglas escrita na Prisão de Reading, de Oscar Wilde, foi um desses
romances). E devo-lhe a sensação, importantíssima para uma criança, de
ouvir falar dele sempre com respeito e alguma emoção a todos, mesmo aos
que não faziam parte da minha família.
Gente honrada e acolhedora em geral, mas agressiva
entre si e para os que lá fossem catrapiscar as raparigas (disso
falavam-me os meus pais) era a que havia numa aldeia contígua. Não havia
marido ou filho que saísse de casa sem ouvir da boca da mulher ou da
mãe: “Levas a faca?”. As rixas resolvidas à facada por dá cá aquela
palha exasperavam, pela frequência e pelo absurdo, o médico da região
que, na tentativa de os refrear, lhes cosia as feridas a sangue-frio.
Debalde. Uma célebre rixa entre dois deles, em que um aplicou a outro 18
golpes e este outro, em retaliação, 21 ao primeiro, acabou com ambos em
perigo de vida no hospital, em camas deliberadamente colocadas lado a
lado.
Alguns dos que viviam na vila dos meus pais,
diziam-me eles também, engrossaram o número dos deportados para Angola
pelos governos de Salazar. O motivo? O do costume: assassínio. E um dos
que voltaram, cumprida a pena, chegava a dizer que, se tivesse a certeza
de que o mandariam de volta para África, mataria mais um. Outros, que
nunca chegaram a ser oficialmente acusados de nada de muito especial,
embora conhecidos por maus motivos, havia-os por lá igualmente.
Como aqueles três jovens irmãos delinquentes,
recordava a minha mãe, que foram condenados a aprender um ofício e a
certificarem-no perante um juiz, como forma de disciplinarem o carácter
e possuirem uma habilitação profissional. Um velho carpinteiro
ofereceu-se para essa tarefa; finda a aprendizagem, disseram-lhe eles
que, como reconhecimento, lhe deixariam uma lembrança. E deixaram:
partiram-lhe os braços, impossibilitando-o de voltar a trabalhar como
antes. Mais a respectiva ameaça de morte, se se atrevesse a dizer como
na verdade eles se haviam partido.
Quando eu tinha 15 anos, chegaram-me às mãos, por
mero acaso (embora eu hoje tenha dúvidas sobre o que “acaso” significa),
três livros que mudaram a minha percepção da raiz do querer – ou
precisar (mas é a mesma coisa) – de escrever:
A queda, de Albert Camus; Deus
lhe pague, de Joracy Camargo; e
A Casa de Bernarda Alba, de
García Lorca. O primeiro (de que, na altura deverei ter compreendido
para aí uma décima parte) despertou-me para a estranheza de mim mesmo; o
segundo deu-me os rudimentos para iniciar a reflexão sobre as relações
entre o individual e o social; o último, porém, mostrou-me a que ponto a
revolta contra a mentira que nos sufoca o ser é vital – e que a escrita
pode ser libertação no sentido em que os pulmões se abrem à vida quando
alguém, quase a afogar-se, consegue voltar à tona d’água.
Lorca foi quem me abriu o caminho para que eu
começasse, mais tarde, a pôr por escrito o que sentia ser-me imperioso
dizer. Naquela peça tive a certeza de que, pela primeira vez, encontrara
um amigo íntimo, alguém em quem, tal como em mim mesmo, crescera uma
náusea cinzenta face à aceitação – aparentemente inquestionável por
referente a uma qualquer transcendência opressiva – bem como ao silêncio
conveniente que rodeava tanto do que acções, gestos, expressões,
olhares… me deixavam aperceber-me, por vezes apenas subliminarmente.
Coisas que, no meio de afectos e lealdades em contradição e conflito, me
surgiam confusas mas profundamente (oh! profundamente! como apenas em
adolescente isso é possível!), insustentavelmente, inadmissivelmente
traidoras e destruidoras de um sentido digno para a vida.
Embora, na minha família como na grande maioria das
restantes com quem convivia quando ia de visita à terra dos meus pais
(eu era o neto, o sobrinho, o primo lisboeta, por já cá ter nascido),
não me desse conta de casos ou ambientes do que agora se chama
pomposamente “violência doméstica” e “abusos de natureza sexual”, o
certo é que ouvia falar deles à surrelfa. Digamos, pelas contas que
agora faço, que tais murmúrios cúmplices abrangeriam uma parte
significativa daquela gente.
O que já não seria pouco. Mas aquilo que me
aproximava de Lorca era a percepção agudamente dolorosa das relações
intestinas de poder em quase todas as famílias, inquinando-as até à
náusea, até à deformação do carácter, até à insanidade psíquica; que
traíam, emporcalhando-as, entre ressentimentos e vinganças, as relações
que, por mais íntimas, deveriam ser as mais fortes, puras e livres. Tudo
ao som da voz de Bernarda Alba, soturnamente histérica, que eu ouvia
repetida por quase todo o lado, dizendo que não lhe interessavam os
problemas de ninguém, que queria era “boa cara e harmonia na família”
(cito de memória). Como eu reconheci essa frase, que ecoava em mim,
amarfanhando-me o espírito, vinda até do interior de uma parte da minha
própria família…!
Sim, e dentro daquele inferno ateado por eles mesmos,
já não como pessoas mas como títeres movidos pela continuidade e
avolumar de um seu impulso inicial que se transformara em vertigem, o
suicídio surgia como o trágico vórtice final aceite com a aparência de
certa naturalidade. Um desfecho que assumia legitimidade triste perante
as agruras ou os desgostos da vida ou a dimensão de enigma íntimo, cujos
motivos a ninguém caberia o despudor de investigar, quando muito a
comentar meio em surdina.
O meu bisavô paterno, também ele com a quarta classe
feita em criança, ferreiro de profissão e que escreveu dois livros sobre
doenças que afectavam o gado equino e respectivas formas de tratamento,
respeitado pelos veterinários da região, nunca mandou para a escola
qualquer dos filhos e, quando velho, queimou os livros e suicidou-se.
Três primos, não muito afastados do meu pai, por enforcamento ou por
disparos sobre si próprios, seguiram-lhe o exemplo, anos mais tarde.
E, como eles, tantos outros. Se o livro de Unamuno,
Portugal, país de suicidas,
consistisse no resultado de uma investigação sociológica, em vez de
constituir um testemunho atónito da tendência dos nossos escritores do
século XIX para se suicidarem, sê-lo-ia sobre o Alentejo. Coisa que,
aliás, tais investigações demonstram, sem qualquer dúvida. E nem é
preciso relembrar, no que respeita a escritores, a tão mal-amada pelos
seus conterrâneos Florbela Espanca. Ou o primo dela, Túlio Espanca, que
recusou levar a sua doença até ao desfecho final. Tal como o meu muito
saudoso sr. Manuel, que me tratava das árvores, o fez por idênticos
motivos, dois anos atrás…
Porque é do Alentejo que tenho falado até agora.
Ah, claro que eu gostava do Alentejo, que gostava
muito, muito do Alentejo! Parecia-me, naqueles campos, belíssimos!, não
haver limites que me tolhessem a imaginação e a vontade. E gostava das
pessoas, claro que sim, apesar de tudo, em especial quando eles cantavam
como se no fim de contas lhes fosse possível (finalmente!) libertarem-se
do peso que lhes ia nas almas. E eu cantava com eles – “cabrão do moço,
se canta bem…!”, diziam uns; “deviam pô-lo no canto lírico…”,
sentenciavam outros, os de maiores posses, os que viviam quase todo o
ano no andar que haviam comprado em Lisboa, no Bairro de Alvalade, como
os parentes do lado rico da família da minha avó materna.
Este Alentejo ainda existe? Não – ou, pelo menos,
estou convencido disso. A paisagem mudou em boa parte, há bastante menos
oliveiras adultas já que mudaram os métodos da exploração agrícola, em
especial as do azeite, hoje feita maioritariamente por agricultores
espanhóis. E mudaram e vão mudando, em boa medida e para melhor, as
relações dentro das famílias. A começar nas que foram constituídas pelos
da minha geração, obrigada a abrir-se à realidade e à extensão do mundo
através da guerra colonial. E, em seguida, pelas mudanças no país bem
como pelo acréscimo das condições de deslocação e de comunicação. Tudo
concorreu para que nas mentes acabasse por se gerar o espaço necessário
a que nelas se fosse esfumando a névoa tétrica e letal que envolvia e
aprisionava as mentes e os espíritos de tantos. Mas ainda não de todos,
como é natural, que o tempo tudo refoga em lume brando para que fique
apurado e devidamente consolidado o petisco.
E como aconteceu e acontece, aliás, em todo o país,
ocupado demasiadas vezes em regionalismos bacocos. Sobre este assunto,
nunca resisto a contar um episódio passado com a minha enérgica tia
materna, de 90 anos, também ela vinda meio século atrás para a capital.
Instada a pronunciar-se, no meio de um encontro casual entre mulheres
naturais de diferentes regiões do país, por uma dessas mulheres sobre a
superioridade ou a inferioridade das alentejanas em relação às outras,
saiu-se com esta:
“– Respondo-lhe, se a senhora me responder primeiro a
três perguntas que lhe vou fazer.
– Então, diga lá… – assentiu a outra.
– Na sua terra há prisões?
– Há, sim… Mas não têm quase ninguém.
– Também não lhe perguntei se estavam a abarrotar… E
posto da GNR e tribunal, há?
– Há, sim.
– Na minha só há GNR, porque o tribunal fica na
capital do distrito. E responda-me agora a mais esta: na sua terra há
filhos de pais incógnitos?
– Há, sim, pois…
– Na minha, também. Como pode ver, somos todos
iguais.”
Apeteceu-me de falar de tudo isto porque, dias atrás,
jornais, televisão, rádio e “redes sociais” ficaram, de súbito, cheios
de uma suposta afronta feita aos alentejanos em livro e em programa
televisivo, por Henrique Raposo, jornalista do
Expresso, também ele filho de alentejanos vindos para Lisboa. Era,
pelo menos, o que diziam alguns e… Mas não valerá a pena relembrar o que
toda a gente ouviu e presenciou.
Só quis deixar aqui aos dez mil cretinos (alguns,
alentejanos, certamente; muitos, certamente, idiotas úteis, para usar o
termo de Lenine) que exigiram, através da sua “rede social”, o
silenciamento de Henrique Raposo por se ter atrevido a dizer o que disse
(e eu nem sequer concordo com algumas das coisas que Henrique Raposo
disse, oralmente e por escrito) e até de quem lhe proporcionou dizê-lo
publicamente, uma certeza. A certeza de que há gente – como eu, que não
cheguei a ir para o canto lírico e raras oportunidades tenho hoje de
cantar em coro com alentejanos – que não partilha da devoção (da simples
estupidez ou da conveniência inconfessável) a imagens “politicamente
retocadas” porque ama a sério, com seriedade, o Alentejo.
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