JOAQUIM SIMÕES

Sobre o “caso WikiLeaks”
(ou Do pechisbeque e das Cidades de Deus)

Quando o “casoWikiLeaks” eclodiu, dispus-me a escrever sobre o assunto, mas acabei por não ter ocasião de o fazer. Passado todo este tempo, julgo que já tudo foi dito sobre ele. Das opiniões que espalhadas pelos órgãos de comunicação de que eu tive conhecimento, a que mais coincidiu com o que penso pertenceu ao general Loureiro dos Santos. Por isso, em forma de pergunta-resposta, acrescentarei apenas o seguinte, sem grande preocupação de sistematicidade:

- O que foi divulgado pelo sr. Assange e seus amigos corresponde a alguma prática desconhecida ou fora do âmbito das actividades diplomáticas mais comezinhas desde o Paleolítico?

Não, só ingénuos, simplórios, papalvos e hipócritas se podem estarrecer com o que até à data tem sido revelado e o mais que venha a revelar-se. Bastar-lhes-ia, aliás, lembrarem-se das suas relações familiares, amorosas, de vizinhança ou laborais. E de que o mundo é uma grande família, com as consequentes e habituais confusões.

- Esse mundo ficará melhor depois destas “revelações”? Melhorará o ambiente internacional?

Evidentemente que não, pelo contrário, piorará. Basta imaginar o que sucederia se, na nossa própria família (em sentido lato), alguém desatasse a “desbroncar” sobre as faltas, pecadilhos e infâmias de maior ou menor grau que todos nós  - por fraqueza, mau-feitio ou força das circunstâncias -  cometemos ao longo da vida. O que não se complicaria ou reacenderia, depois de já ultrapassado ou mesmo sanado, à conta das susceptibilidades…!

Ninguém suporta, de bom grado, ver exibidas em público as cuecas que supusera perdidas. Ainda por cima se, por acaso, tal puder dar azo a insinuações ou até a conclusões total e perigosamente erradas. Ninguém exibe impunemente a roupa íntima alheia. Cristo não instituiu a confissão e mesmo a Igreja Católica fez dela algo de privado.

- A acção do WikiLeaks contribuiu para uma maior transparência futura da vida pública?

Não. A partir de agora, tudo se tornará ainda mais secreto e obscuro, mais fora de qualquer controlo do cidadão. Naturalmente.

- A transparência é um requisito e uma finalidade da democracia?

Não, somente dos regimes totalitários e opressivos. A democracia é o regime do bom-senso, quando não se recusa realidade à perenidade das debilidades do carácter humano e se pretende minorar a sua influência. É de regra ser quem mais age na sombra quem mais exige que tudo venha à luz... para depois, com maior à-vontade e certeiramente, poder continuar a manobrar na sombra. Assim procederam todos os tipos de regimes totalitários, com os seus dirigentes incentivando os jovens a denunciar os pais, em nome da clareza da vida pública e da perfeição moral do “homem novo”, capaz de construir um “novo amanhã”.

- O que foi feito por Assange pode ser incluído no direito à informação e na actividade jornalística?

Se um jornalista soubesse que, ao divulgar determinada informação (por exemplo, a de uma bomba que alguém pretendesse detonar) tiraria a vida milhares de pessoas inocentes, coisa que aconteceria seguramente se ele a publicasse, fá-lo-ia? Em que é que a responsabilidade de um jornalista difere da de qualquer outro cidadão? Esse tipo de argumentação tem por base, uma vez mais, a hipocrisia e a má-fé.

- O grupo da WikiLeaks é um conjunto de pessoas bem-intencionadas, embora ingénuas?

- Não me cabe fazer um processo de intenções, limito-me aos factos e às suas consequências. Pela sua prática e definição pública de objectivos, classifico-o, sem sombra de dúvida, como um grupelho fascista ou cripto-fascista, que deveria ser sujeito a tribunal militar pelos perigos que trouxe já à Humanidade e que declara tencionar aumentar. Sem esquecer quem esteja a financiá-lo e que, eventualmente, os utilize em seu proveito. Não é curioso (ou será, afinal, significativo?) que quase tudo respeite ao Ocidente e às suas instituições ou aos seus aliados circunstanciais e aos “terríveis segredos” que escondem?

O WikiLeaks fará parte, voluntária ou involuntariamente, de uma conspiração internacional?

Viver é conspirar. O planeta é uma conspiração. Os animais conspiram pelo alimento e pelo território. Mesmo as plantas, para dolorosas angústias teológico-existenciais de vegetarianos místicos, conspiram pelos mesmos motivos e até contra os animais: castrando-os quimicamente, quando estes as devoram ao ponto de porem em perigo a sua sobrevivência; avisando outras, à distância, através da segregação de aromas, para que se tornem intragáveis; atraindo, pelo mesmo processo, outros animais que se alimentam daqueles que as incomodam…

Conspiramos nós, humanos, em menores ou mais alargados grupos, na empresa, no clube, na associação… No partido. Para obtermos algo a que aspiramos ou a que achamos ter direito; para que a realidade possa vir a ser uma outra, que julgamos preferível à actual; para adquirirmos o poder de decidir nesse sentido. Conspiramos na família para que as nossas perspectivas sejam adoptadas, para que a decoração esteja mais ao nosso gosto, para que o tipo e a confecção de alimentos sejam, predominantemente, aquela que mais agrada ao nosso paladar ou a que consideramos mais saudável. Conspiramos para ficarmos com o último quadradinho de chocolate… E manobramos, muitas vezes, como não nos seria lícito. E manipulamos. E fazemos batota. Muitas vezes. Oh, se fazemos…! E nem sempre risonhamente. Conspiramos e trapaceamos, damos desculpas esfarrapadas e descemos ao ridículo, na guerra como no amor.

Os Estados e as Nações são “pessoas grandes” e, tal como os indivíduos, têm as suas simpatias e as suas aversões. As amizades preferenciais, próprias de cada um, adquirem, nesse âmbito, a forma de afinidades em razão das culturas ou dos objectivos que comportam as circunstâncias históricas. Os Estados e as Nações cochicham entre si, mais ou menos discretamente, sobre a beleza e o ridículo, a conveniência e a inconveniência dos costumes e dos interesses mútuos ou alheios, sobre os caminhos e as decisões de outrem. Nada que não se passe, repito, nas reuniões em família, nas associações, nos partidos, nas igrejas… e  - alguém tem dúvidas?! -  no Wikileaks! E que, obviamente, continuará a passar-se, por ser inerente à vida.

O Wikileaks é uma das conspirações. O que escrevo é uma conspiração contra o Wikileaks.

- O Wikileaks reflectirá o início de mudanças profundas em gestação no modo de viver, em consequência dos novos meios e canais de comunicação?

Não, é apenas o prolongamento do pechisbeque da sociedade mediática, e Assange o correspondente justiceiro pindérico, com direito aos respectivos 15 minutos de fama  - aliás, já foi anunciada a preparação do inevitável filme biográfico. Ele é o herói dos novos tempos, o rosto angélico e adolescente de um louro sir Galahad, na demanda do Graal da justiça entre os homens, o paladino à medida da espectacularidade própria de efeitos especiais cinematográficos que empolga e é festejado pela esquerda medíocre, a esquerda decadente que sobrou da decadência e queda da URSS, inclusive a que vivia da acerba crítica que fazia aos “desvios ideológicos revisionistas” de Moscovo. Uma esquerda falha de dimensão intelectual, hoje  - perdida a fachada de credibilidade que lhe era gratuitamente oferecida pela existência do triste império soviético e incapaz de elaborar um quadro conceptual que lhe permita pensar, com coerência interna, algo que vá para além da primeira metade do século XX -  vogando contraditoriamente ao sabor da sociedade que afirma combater. Uma espécie de avejão desgostante e sinistro, a que se juntam os que, simétricos aos que esvoaçam no céu do radicalismo islâmico, continuam arrogantemente a confundir a perfeição da Cidade de Deus com a da cidade que pretendem construir pelo empilhamento das pedras que atiram ou ajudam a atirar, contra o exemplo e as palavras do seu Mestre. Para o Qual só Deus tem o direito de tudo trazer à Luz no Fim dos Tempos.

- Assange, ou alguém por ele, terá dito, em resposta à pergunta sobre se tinha ideia de quantos inocentes poderiam morrer devido à sua acção, que se tantos morreram até hoje devido à mentira, faria mais sentido que hoje muitos possam morrer pela verdade…

Se Assange, ou alguém por ele, disse tal coisa, ficou definitivamente a descoberto o grau de distorção que lhe deforma a personalidade, ao ponto de considerar a verdade da sua razão e das suas razões como sendo do domínio do indiscutível, do Absoluto. Ao ponto de, como um deus menor, aferir o significado e o valor da vida das criaturas, enquanto sejam feitas para a sua lei, e não a lei para elas! Para Assange, a posição da vida  - tal como ele entende a sua vida -   é subalterna da da Lei, à Lei que a sua razão determinou como fundante do real! Tudo o que tem sentido está necessariamente sujeito à Lei de Assange, que veio para pôr ordem no Universo! Se isto não é, no mínimo, característico de alguém, segundo Piaget ou Erikson, anormalmente retido na fase final da adolescência…

- Valerá a pena entrar em diálogo, nestes termos, com o WikiLeaks e os seus apoiantes arreigados? O que aqui ficou escrito terá alguma utilidade?

Não.

 

Joaquim Simões nasceu em Paço d’Arcos, em 1950.

Licenciou-se em Filosofia, na Universidade Católica Portuguesa. Frequentou o mestrado em Cultura Clássica da Universidade de Lisboa, sob orientação do Professor Victor Jabouille, tendo sido investigador da Linha de Acção 1 do Departamento de Línguas e Cultura Clássicas da mesma Universidade, abandonando, porém, ambas as actividades por motivo de doença.

Foi professor do Ensino Secundário em diversas escolas da área de Lisboa e, para além da actividade docente, exerceu funções de orientador de estágio profissionalizante e de representante de uma delas em alguns encontros, nacionais e internacionais, sobre multiculturalidade.

Em 1979, publicou um livro de poemas em edição de autor, com prefácio de Manuel Grangeio Crespo.

Entre 1980 e 1983 participou no projecto de teatro para a infância e juventude do Teatro do Nosso Tempo, em Lisboa. Em 1982, em parceria com o músico Francisco (Xico Zé) Henriques, constrói um espectáculo, “Astrolábio”, composto por canções feitas a partir de poemas seus.

Entre 1989 e 2010, colaborou permanentemente com Manuel Almeida e Sousa e a Mandrágora em diferentes realizações na área da performance teatral.

Em 2010, colabora com Maria Morbey Henriques no espectáculo “Banjazz – Um bichinho esquisito”, levado à cena, em Fevereiro, no Centro Cultural de Belém.