Padre António Vieira
HISTÓRIA DO FUTURO, II
LIVRO II . Capitulo IV

Examina-se se o Reino e Império de Cristo é também temporal. Refere-se a opinião negativa

O império e domínio temporal é certo que de sua natureza não exclui nem implica com o temporal, de modo que um outro domínio bem pode sem repugnância alguma convir e ajustar-se no mesmo sujeito. Assim vemos que o Sumo Pontífice, tendo o domínio espiritual de toda a Igreja, é também senhor e príncipe temporal do estado que chamam eclesiástico; em Alemanha, três dos eleitores do Império são príncipes eclesiásticos e senhores temporais de seus estados; e no nosso reino, o Arcebispo primaz é juntamente Bispo e Senhor de Braga.

Suposto pois que o Reino e Império de Cristo seja espiritual, como acabamos de resolver, resta examinar agora se é também império temporal. Muitos e graves teólogos seguem de tal maneira a parte negativa que exclui totalmente do Império de Cristo toda a jurdição, poder e domínio temporal, e somente lhe concedem ou admitem nele o puramente espiritual; bem assim como aquele que os príncipes eclesiásticos têm sobre suas igrejas ou ovelhas (posto que por modo mais sublime e excelente) mas de nenhum como aquele que os senhores e príncipes seculares têm sobre seus estados e vassalos.

Fundam primeiramente esta sua sentença em muitos lugares da Escritura e particularmente em todos aqueles com que no capítulo passado mostramos o seu nome e título de Rei, que os Profetas davam a Cristo; e notam bem advertida e doutamente estes autores que todas as vezes que os textos da Escritura Sagrada falam no Reino, Império, domínio, poder ou principado de Cristo, sempre acrescentam alguma explicação ou limitação com que o nome geral de Rei e Senhor se distinga ou aliene da significação de poder temporal, e se limite, estreite e determine ao espiritual somente.

No Salmo II chama David a Cristo Rei constituído por Deus - Ego autem constitutus sum rex ab eo; mas logo limita a significação do ofício ou dignidade, dizendo que para pregar seus preceitos-praedicans praeceptum ejus. No Salmo XLIV descreve o mesmo Profeta as prosperidades e progressos do Reino de Cristo: ...intende, prospere procede et regna; mas logo declara o gênero de armas, todas espirituais, com que há-de conquistar o Mundo: Propter veritatem et mansuetudinem et justitiam , et deducet te mirabiliter dextera tua. Isaias, no capítulo IX, anuncia o mesmo Reino de Cristo e sua perpetuidade: ...super solium David et super regnum ejus sedebit in eternum; mas logo aponta os fundamentos espirituais também, de que lhe háde vir a firmeza: ut confirmet illud et corroboret in judicio et justitia. Jeremias, no capítulo XXIII, celebra o Reino e sabedoria de Cristo Rei: ...regnabit rex et sapiens erit; mas logo determina os efeitos dessa sabedoria que hão-de ser encaminhados todos à salvação: In diebus illis salvabitur Juda. Zacarias no capítulo IX descreve o triunfo de Cristo aclamado por rei na entrada de Jerusalém: Ecce Rex tuus veniet tibi; mas logo lhe chama rei e salvador justo, pobre e humilde: Justus et salvator, ipse pauper et ascendens super asinam. Finalmente, o mesmo Cristo »— confessando a Pilatos que era rei »— Tu dicis quia rex sum ego - acrescentou logo que o seu Reino era para dar testemunho da verdade ao Mundo: Ego in hoc veni in mundum ut testimonium perhibeam veritati. E depois de ressuscitado, declarando aos Apóstolos com a maior majestade de palavras que podia ser a grandeza de seu império, domínio e potestade-Data est mihi omnis potestas in Cælo in Terra-a conseqüência que tirou deste poder tão universal foi: Euntes in mundum universum prædicantes Evangelium omni creaturæ; qui crediderit et baptizatus fuerit, salvus erit: fé, batismo e salvação dos homens. Segue-se logo que o Reino e Império de Cristo é espiritual somente, e de nenhum modo temporal. Sobretudo está por esta parte aquele claríssimo oráculo de Cristo: Regnum meum non est hoc mundo - o meu Reino não é deste Mundo, das quais palavras podemos dizer: Quid adhuc egemus testibus?

A eficácia destes textos se acrescenta a de muitas razões e argumentos, entre os quais porventura não é o que tem granjeado menos votos a esta opinião errada aquela palavra temporal, a qual, construída com o Império de Cristo e pronunciada aos ouvidos mais religiosos e espirituais, parece que traz consigo alguma dureza e dissonância, por não dizer indecência.

De que servia a Cristo (dizem) o nome ou jurdição de Rei temporal do Mundo, se ele vinha como vimos a confundir com seu exemplo o mesmo Mundo, os mesmos reis e as mesmas temporalidades? Se a perfeição cristã que Cristo veio ensinar aos homens consistia em deixar tudo e seguir em pobreza e humildade a Cristo pobre e humilde, como dizia com esta renunciação de todos os bens, honras e haveres do Mundo, o domínio, o império, a majestade de todo ele? E se esta majestade, este império e este domínio não havia de ter (como nunca teve com Cristo) uso ou exercício público, e havia de estar sempre oculto e encoberto aos homens, não seria maior autoridade, maior exemplo e ainda maior circunstância de perfeição saber-se que o renunciara Cristo, podendo tê-lo, que dizer-se que o tivera e conservara, e ainda que o pedira, como alguns dizem? Com que liberdade ou com que confiança havia de aconselhar ou mandar Cristo a certo mancebo que, se queria ser perfeito, deixasse o domínio das suas herdades, se no mesmo tempo o mestre desta perfeição retivesse o domínio de toda a Terra? Para que se há-de admitir logo o nome deste Império temporal em Cristo; se nem para o decoro da pessoa, nem para o fim do ofício, nem para o exemplo da doutrina era necessário, e para o exercício e uso que nunca teve realmente inútil e ocioso?

Estas razões ou admirações, que não são muitas vezes as que menos persuadem, se fecham e apertam eficazmente com um discurso fundido em todos os princípios gerais de direito, com que parece aos autores desta sentença que não só estabelecem de todo a certeza dela, mas que convencem e desfazem a probabilidade de qualquer outra. Argumentam ou decorrem assim:

Se Cristo foi Rei temporal, ou foi Rei por direito natural, ou por direito divino, ou por direito humano. Por direito natural não, porque Cristo não era filho nem herdeiro de rei; e dado que fosse legítimo sucessor do Reino de Israel, como dizem menos provavelmente alguns autores, a herança de um reino particular não lhe dava direito para o império de todo o Mundo. Por direito divino também não, porque, se houvera tal direito, constara pelas Escrituras, e posto que muitos textos da Escritura falem de Cristo como Rei e lhe dêem o nome e título de Rei, todos, como vimos, se entendem do Reino espiritual ou celeste, e quando menos se podem interpretar assim, sem nos obrigarem a que os entendamos do Reino ou Império temporal. Finalmente, por direito humano não, porque a jurdição de fazer ou eleger rei está na comunidade dos homens; e para Cristo ser respectivamente Rei universal de todo o Mundo por esta via, era necessário que todos os homens e comunidades do Mundo se unissem em um consentimento, com que o elegessem por Rei e Senhor de todas, o que nunca houve, antes sabemos que os príncipes e povo de Judeia, que era a terra onde Cristo vivia, se conjuraram contra ele e lhe tiraram a vida, só porque não tomasse o nome de Rei; e que o mesmo Senhor, na ocasião em que alguns deles lho quiseram dar, fugiu deles e do mesmo título, e se escondeu em um monte para escapar daquela violência. Logo se não foi Rei temporal, nem por sucessão natural, nem por eleição humana, nem ,por doação ou nomeação divina, bem se conclui que o Reino e Império de Cristo, tão celebrado nas Escrituras, de nenhum modo foi nem pode ser temporal, se não espiritual e somente qual acima dissemos.

Os Padres que isto disseram e seguiram querem alguns que sejam todos. Ao menos confessa Vasques que da doutrina dos Padres não se pode convencer o contrário. O primeiro que se alega é Santo Agostinho em muitos lugares, entre os quais o mais claro (ou o que parece) é este: Populi personam figurate gerebat homo ille, scilicet Saul; qui populus regnum fuerat amissurus Christo Domino nostro per Novum Testamentum, non carnaliter sed spiritualiter regnaturo. Nenhum dos outros Padres fala em termos de tanta expressão, mas alegam-se e podem-se alegar no mesmo sentido S. Ambrósio, S. Atanásio, S. João Crisóstomo, Tertuliano, Teófilo e outros, e diz o doutíssimo Maldonado que esta é a sentença comum dos melhores teólogos que assim o disseram. O douto leitor julgará se são os melhores. E são estes: Hermas, Letmatio, Driedo, Castro, Bertolameu de Medina, Jansénio, Vitória, Adrião Fino, João Parisiense, Francisco de Cristo, Melchior Flávio; e posto que também se citem por esta ,parte Soto, Abulense e Waldense, falam, por termos tão indiferentes, que Vasques os alega (e diz que assim se devem alegar) pela parte contrária.

Advirta-se, porém, para crédito de Maldonado e nosso, que os teólogos que hoje têm maior fama nas escolas, quando ele escreveu, ainda não tinham escrito.