Em que se mostra que Império há-de ser este
Suposto como deixamos assentado que há-de haver no Mundo um quinto e novo Império, segue-se que digamos que Império há-de ser: e assim o faremos em todo este II Livro.
Que o Quinto Império é o Império de Cristo e dos Cristãos
CAPÍTULO I
É conclusão certa e de fé que este Quinto Império de que falamos, anunciado e prometido pelos Profetas, é o Império de Cristo e dos Cristãos. Prova-se dos mesmos textos e profecias já alegadas, sobre as quais fundaremos tudo o que dissermos nesta história, para maior clareza e firmeza dela, pois não é cerzida de pedaços ou retalhos das Escrituras, senão cortada toda da mesma peça.
Primeiramente aquela pedra que derrubou a estátua e desfez as quatro monarquias figuradas nos quatro metais, e depois cresceu e a sua grandeza ocupou e encheu toda a Terra, é Cristo, o qual em outros muitos lugares da Sagrada Escritura se chama Pedra. Ele foi a pedra que no deserto matou a sede aos filhos de Israel e os acompanhou até a terra da Promissão. Ele foi a pedra com que David derrubou ao gigante, em significação de que por meio e virtude de Cristo havemos de vencer o Mundo e o Demônio. Ele foi a pedra que viu Zacarias, e sobre ela sete olhos, super lapidem unum septem oculi, que são os sete dons do Espírito Santo, o qual infundiu todo e descansou sobre Cristo. Ele foi a pedra sobre que adormeceu Jacob, quando se lhe abriu o Céu e viu a escada; ele a pedra sobre que sustentou os braços levantados de Moisés, quando venceu os exércitos de Amalec; ele finalmente a pedra angular, a que uniu os dois povos gentílicos e judaico, e a pedra fundamental e provada sobre que se fundaram na Lei antiga a Igreja de Sion e na nova a do mesmo Cristo. Esta pedra pois foi a que, arrancada do monte, derrubou a estátua e desfez os quatro impérios dos Assírios, Persas, Gregos e Romanos, para fundar e levantar o seu sobre todos eles. Assim o dizem conformemente neste lugar não só todos os Padres e expositores católicos, senão também os hereges e até mesmo Rabinos, os quais acertam em dizer que nesta pedra está profetizado o Reino do Messias, e erram somente em não crerem que o Messias é Cristo.
Diz Daniel que esta pedra caiu de um alto monte, arrancada dele sem mãos. E este monte ou é o Céu e o seio do Eterno Padre, donde desceu Cristo quanto a divindade, como interpreta S. Ambrósio; ou é a nação hebraica, levantada naquele tempo como monte entre todas as outras nações do Mundo, da qual o Verbo se dignou tomar e unir a si a humanidade, como explica S. Agostinho; ou finalmente é a Virgem Maria, Senhora Nossa, sublimada como monte altíssimo sobre todas as criaturas, como a mais perfeita e excelente de todas.
Esta é a sentença comum e mais recebida dos Padres e expositores deste lugar, com a qual concorda admiravelmente a advertência de Daniel, que a pedra foi arrancada ou cortada do monte sem mãos: Lapis abscissus de monte sine manibus; porque na geração temporal de Cristo, sendo verdadeiro homem, não tiveram parte mãos de homem, toda foi obra sobrenatural e divina, suprindo o Espírito Santo e a virtude do Altíssimo o que nela faltou de concurso humano. Assim o notou o mesmo S. Agostinho, S. Hierónimo, S. Ireneu, S. Júlio, S. Epilanio, Teodoreto, Ruperto e muitos outros Padres.
Na segunda visão de Daniel ainda consta mais claramente e por termos mais expressos que este Império é o de Cristo....et ecce (diz o Profeta) cum nubibs cæli quasi filius hominis veniebat, et usque ad.Antiquum dierum pervenit: ...et dabit ei potestatem et honorem et regnum, etc.; De sorte que a pessoa a quem foi dado por Deus o Quinto Império de que Danie1 fala neste lugar (como vimos) era o Filho do Homem. E que cousa há mais certa e freqüente no Evangelho que chamar-se Cristo Filho do Homem? Quem dicunt homines esse filium hominis? Væ autem homini illi per quem filis hominis tradetur! Tunc videbunt filius hominis venientem in nubibus cæli. Não repito os autores desta explicação, porque são todos, e porque o texto é tão claro que não há mister intérpretes. Só reparou Maldonado que não se chama Cristo neste lugar Filho do Homem absolutamente, sendo quasi filius hominis, para denotar o Profeta que entre este homem e os outros homens havia diferença: os outros são puros homens, Cristo é homem e Deus juntamente; assim que aquele quasi significa a falta de substância humana, posto que tão superiormente suprida com a divina. E porque Deus não havia de ter subsistência humana como os outros homens, posto que tivesse a mesma natureza como eles, não lhe chama por isso o Profeta homem, senão quase homem-quasi filius hominis. Quem havia de duvidar que em um quasi cabia uma distancia infinita?
A terceira visão de Zacarias confirma ainda com maior propriedade ser Cristo o Senhor deste Império. Já dissemos que a coroa ou coroas que foram postas sobre a cabeça de Jesus, filho de Josedec significavam o mesmo Império Quinto profetizado por Daniel: e que seja Cristo o soberaníssimo Monarca que Zacarias viu coroar naquela figura, não só o confessa a Igreja Universal na aplicação deste lugar, e a opinião comum de todos os Padres e Doutores, senão ainda muitos hebreus, que sem ódio escreveram antes de Cristo. Communis est Patrum sententia et multorum ex Hebræis quibus accedit Chaldeus sermonem hic esse de Messsiah, diz o doutissimo Sanchez. De maneira que na primeira visão foi Cristo, significado com o nome comum e metafórico de pedra, na segunda com o nome particular de Filho do Homem, na terceira com o nome propriíssimo de Jesus, Jesus filii Josedeci: e em todas estas três visões em que Deus revelou aos seus Profetas a grandeza e majestade futura do Quinto Império, e os quatro a que ele devia de suceder, lhes mostrou , e revelou também que o Senhor e o Monarca deste Império havia de ser Cristo.
Com muitos outros textos da Escritura pudéramos confirmar esta mesma conclusão, mas porque tudo o que havemos de dizer nesta história será uma continuada prova e confirmação dela, bastem os textos alegados, que são, como dizia, os fundamentais de toda ela.
Mas porque no princípio deste capítulo dissemos que o Quinto Império era o Império de Cristo e dos, Cristãos, tornemos à segunda visão de Daniel, onde Deus para consolação dos fiéis quis que nos ficasse expressa e revelada esta tão gloriosa verdade.
Depois de referir Danie1 como Deus Padre, a quem ele chama o Antigo dos dias dera ao Filho do Homem aquele novo reino ou império, perguntou o mesmo Profeta a um dos anjos que assistiam ao trono a significação das cousas que via, e ele lhe disse por três vezes que o reino e império que vira dar ao Filho do Homem era o reino e império que os santos do Altíssimo haviam de ter neste Mundo. No verso 18 daquele capítulo (que é o VII) diz assim: Suscitient autem regnum Sancti Dei altissimi: et oblinebunt regnum usque in sæculum et sacculum sæculorum. E no verso : Donec vénit Antiquus dierum, et dierum, et judicium dedit sanctis Excelsi, et tempus advenit, et regnum obtinuerunt sancti. E no 27: Regnum autem, et potestas, et magnitudo regni quæ est subter omne cælum, detur populo sanctorum Altissimi; cujus regnum, regnum sempiternum est, et omnes reges servient ei et obedient. Muitas cousas e muito grandes disse nestas palavras o Anjo, as quais ficam reservadas para se explicarem em seus lugares por agora só nos serve (o que diz e repete tantas vezes o Anjo) que aquele mesmo Reino que o eterno Padre deu ou há-de dar a seu filho Cristo é o Reino e o Império dos Santos, isto é, dos Cristãos. Assim o diz expressamente sobre estas palavras de Daniel o seu grande comentador Perério, chamando a este Quinto Império Regnum Christi e Christianoram, Reino de Cristo e dos Cristãos. Deinceps (diz ele) pagnandum nobis est cum Judæis qui Christianis infensi infestique et iniquo animo ferentes, quæ de illo quinto Regno tam præclara et gloriosa prædix Daniel, ea ad Regnum Christi et Christianorm accommodari, etc.
E que pelo nome de Santos, de que usa Daniel, se entendam e devam entender os Cristãos não é só explicação de intérpretes da Escritura, senão frase muito corrente e ordinária em toda ela. S. Paulo, escrevendo aos cristãos da cidade de Filipe, em Macedônia,. no título ou sobrescrito da carta diz assim: Omnibus Sanctis in Christo qui sunt Philippis «a todos os Santos em Cristo que estão em Philippis». E escreveu aos cristãos de Roma: Omnibus qui sunt Romæ dilectis Dei, vocatis Sanctis. E na mesma epístola, exortando aos mesmos Romanos a que socorressem com suas esmolas aos cristãos necessitados: Necessitatibus Sanctorum communicantes. E saudando aos Filipenses no fim da epístola citada, em nome de alguns cristãos que estavam em serviço do Imperador que então era Nero: Salutant vos omnes Sancti maxime autem qui de Cæsaris domo sunt: «saúdam-vos, diz, todos os Santos, e principalmente os que estão em casa de César». Finalmente este era o ordinário modo de falar da primitiva Igreja, e assim lemos no capítulo IX dos Atos dos Apóstolos que usou da mesma frase Ananias, representando Cristo os grandes males que Saulo tinha feito contra os Cristãos: Quanta mala Sanctis tuis fecerit. E a este uso se chamaram as igrejas dos Cristãos igrejas dos Santos, conforme o texto da Epístola ad Corinthios: In ecclesiis Sanctorm doceo.
A razão deste nome é tomada da santidade da Lei de Cristo que professam os Cristãos, os quais, assim como de Cristo se chamavam cristãos, assim da Lei santa de Cristo se chamaram santos. E este é o sentido em que Daniel e o Anjo falaram naquela visão chamando a Cristo Filho do Homem, com a mesma frase com que depois se nomeou a Cristo, e chamando ao Reino dos Cristãos Reino dos Santos, com a mesma frase com que depois se nomearam os Cristãos, bem assim como já antes de Daniel o tinha profetizado com o mesmo espírito Isaías: Et vocabunt eos populus sanctus, redempti a Domino. E aquele povo remido por Deus será chamado publicamente Povo santo, que é em próprios termos o que depois se viu na Igreja e o que diz aqui o Anjo: Regnum autem et potestas detur populo sanctorum. E ambos estes nomes e as etimologias deles compreendeu S. Paulo no princípio da Epístola aos Romanos, em que lhe chama Vocati Jesu Christi et vocatis Sanctis, chamados de Jesus Cristo e chamados santos.
|