Padre António Vieira
HISTÓRIA DO FUTURO, II
LIVRO II . Capitulo II

Pergunta-se se este Império de Cristo e dos Cristãos há-de ser neste Mundo ou no outro

Deu motivo a esta questão, entre os Padres gregos, o Teodoreto, e entre os latinos, Tertuliano, os quais concordavam com a verdade da nossa História em dizerem com os demais que o Quinto Império é o de Cristo e dos Cristãos, mas que tem para si que há-de ser este Império no Céu e não na Terra. Fundam a sua opinião nas mesmas visões de Daniel, desta maneira:

Antes que a pedra cortada do monte (que é Deus e o seu Império) crescesse a toda aquela sua grandeza (diz Teodoreto), já todos os outros reinos e impérios do Mundo estavam derrubados e caídos, já o vento os tinha levado pelos ares, desfeito em pó e em cinza, e já tinham desaparecido totalmente do Mundo, sem haver mais que a memória deles, nem se poder achar ou conhecer o lugar onde tivessem estado, como consta do texto: Tunc contrita sunt pariter ferrum, testa, æs, argentum et aurum, et redacta quasi in favillam æstiva, areæ quæ rapta sunt vento; nullusque locus inventus est eis; lapis autem qui percusserat statuam factus est mons magnus. Sendo logo certo como é que os reinos, cidades, repúblicas e impérios do Mundo se não hão-de desfazer em cinza, nem se hão-de acabar, senão quando se desfizer e acabar o mesmo Mundo na última ruína dele, segue-se que o Império de Cristo e dos Cristãos, de que fala Daniel, e aquela sua grandeza prodigiosa e que há-de crescer, não há-de ser neste Mundo, senão no outro.

Tertuliano, fundado na mesma visão, e muito mais na segunda, argumenta assim Este Reino ou Império de Cristo e dos Cristãos há-de ser Reino perpétuo, incorruptíve1 e eterno, como dizem expressamente as palavras de ambos os textos: Regnum quod in eternum non dissipabitur; Regnum quod non corrumpetur; Regnum usque in sæculum et sæculum sceculorum; Regnu sempiternum. Os reinos deste Mundo todos de sua própria natureza são corruptíveis, e todos, por mais que durem e permaneçam, hão-de ter um com o mesmo Mundo, o qual é de fé que se há-de acabar. Logo, se o Reino e Império de Cristo e dos Cristãos há-de ser perpétuo, incorruptível e eterno, clara e manifestamente se segue que não há-de ser império da Terra, senão do Céu.

Contudo a sentença comum dos Santos, e recebida e seguida como certa de todos os expositores, é que este Reino e Império de Cristo e dos Cristãos profetizado por Daniel (qualquer que haja de ser) é Império da Terra e na Terra. E posto que os autores desta sentença mais supõem que aprovam, nós aprovaremos e demonstraremos com os textos das mesmas visões.

Daquela pedra que representava a Cristo e seu Império, diz Daniel, na primeira visão, que cresceu e se fez um monte tão grande que ocupou e encheu toda a terra. Lapis autem qui percusserat statuam factus est mons magnus et implevit universam terram. Infiro agora assim:

Esta pedra e este Império de Cristo, que derribou os outros impérios, cresceu? Logo, não é império do Céu nem depois de acabado o Mundo; porque o Reino e Império de Cristo, depois de acabado o Mundo, de nenhum modo há-de crescer nem pode crescer. Não há-de crescer nem pode crescer no número dos homens, porque, depois de acabado o Mundo e depois do Dia de Juízo, não há-de haver mais homens que vão ao Céu; não há-de crescer nem pode crescer na glória dos bem-aventurados, porque, desde aquele ponto, cada um há-de receber por inteiro toda a glória devida a seus merecimentos; e como se acabou o tempo de mais merecer, assim se acabou o tempo de mais alcançar. Logo, se o Reino de Cristo e dos Cristãos há-de crescer depois daquele tempo, e crescer a uma grandeza tão imensa, segue-se que esse crescimento há-de ser neste Mundo e não no outro. Mas para que são conseqüências, se as mesmas palavras do texto o dizem claramente? Factus est mons magnus et implevit universam terram. Se a pedra, crescendo, se fez um grande monte, o qual grande monte encheu e ocupou toda a Terra, e este é o Império profetizado de Cristo, bem claro se mostra que é Império da Terra e não do Céu e que na Terra e não no Céu há-de ter toda esta sua grandeza.

Não negamos, porém, nem podemos negar que este Reino e Império de Cristo e dos Cristãos há-de durar também com o mesmo Cristo e os mesmos Cristãos depois de bem-aventurados por toda a eternidade no Céu; mas nem por isso há-de deixar de ter na Terra a grandeza que nestes textos lhe é profetizada e prometida, antes a razão de haver de ter tanta grandeza no Céu, é porque a terá primeiro na Terra, no Céu consumada e perfeitíssima, como se deve ao estado do Céu. Desta maneira se concilia e concorda facilmente a opinião de Tertuliano e Tedoreto com a verdade da nossa; este é o mais ordinário sentir de todos os expositores de Daniel, os quais dizem que este Reino e Império de Cristo e dos Cristãos há-de ser incoado na Terra e consumado no Céu, mas com tanta discrepância de tempos, como veremos em seu lugar, que agora só trataremos qual seja em comum o deste Império.

Os termos da segunda visão de Daniel ainda são (se podem ser) mais evidentes. Regnum autem et potestas et magnitudo regni, quæ est subter omne cælum, detur populo sanctorurn Altissimi. «0 Reino ou Império que se há-de dar ao povo dos Santos do Altíssimo, que são os Cristãos, é o poder e grandeza de todos os reinos que há debaixo do Céu.»

Podia-se dizer cousa mais clara? Parece que estava antevendo Daniel que havia de haver quem interpretasse esta sua visão em diferente sentido do que ele a escrevia, dizendo que este Reino havia de ser no Céu e não na Terra, pois posto se entenda e saiba que não é assim, adverte e nota sinaladamente o Profeta que não é Reino do Céu, senão de debaixo do Céu: magnitudo regni, que est subter omne cælum, detur populo sanctorum Altissimi.

Nas palavras que se seguem a estas declara mais em particular Danie1 (ou o Anjo por ele) quem hão-de ser os súbditos deste Império, e diz em nova confirmação do que dizemos, que serão todos os reis do Mundo, os quais o hão-de servir e lhe hão-de obedecer: et omnes reges servient ei et obedient.

Se os reis hão-de servir e obedecer a este Império, bem se colhe que há-de ser Império da Terra e não do Céu, porque no Céu não se serve, nem se obedece, nem se merece, e só se goza o prêmio do que se obedeceu, do que se serviu e do que se mereceu na Terra. Da Terra é logo este Império, e na Terra é que há-de ser servido e obedecido e reconhecida de todos os reis dela, como bem advertiu Cornélio, comentando as palavras subter omne cælum, pouco atrás citadas: Non quæ est super, sed quæ est subter omne cælum, id est in omni terra, sive in omni plaga cælo subjecta.

Responder aos seus argumentos é igualmente fácil. Ao de Teodoreto dizemos que o texto de Daniel só fala das quatro monarquias representadas nos quatro metais da estátua, as quais nem cada uma por si nem todas juntas compreenderão nunca toda a grandeza da Terra; e quando se diz que ficaram desfeitas em pó e desapareceram, e foram voadas do vento, e não se achou mais o lugar onde estivessem, não quer dizer que as terras, cidade e gentes das ditas monarquias se haviam de acabar e extinguir totalmente (como há-de acontecer a todo o Mundo no Dia de Juízo) senão que havia de se acabar seu mando, seu poder, seu império, sua soberania, como verdadeiramente se acabou a dos Assírios pela sucessão dos Persas, e a dos Persas pela sucessão dos Gregos, e a dos Gregos pela sucessão dos Romanos e se acabará também a dos Romanos pela sucessão do Quinto Império. E isto quer dizer em frase da Escritura - non inventus est locus ejus-que «se não achou mais o seu lugar», porque sucederam outros nele, como se vê no exemplo de Judas, de quem fala a Escritura pelos mesmos termos, e consta que sucedeu em seu lugar S. Matias.

Ao argumento de Tertuliano que se fundava na eternidade do Quinto Império, já temos dito que a continuação dele no Céu há-de ser verdadeiramente eterna em toda a propriedade e largueza da significação desta palavra. Mas se entendermos o texto de Daniel da duração somente que o Império de Cristo e dos Cristãos há de ser neste Mundo, pela palavra eternidade não se entende rigorosamente duração sem fim, senão continuação e permanência de muito tempo, que depois veremos quanto há-de ser. Entretanto basta saber-se que a palavra eterno tem este mesmo sentido e limitação em muitos lugares da Escritura, como notou S. Agostinho na Questão 3I.a sobre o Gênesis, e mostraremos mais largamente quando escrevermos a duração do Quinto Império.

Mas para que tiremos todo o escrúpulo aos outros razão será não passe sem satisfação uma grande dúvida que, por ser fundada nas mesmas palavras do texto de Daniel, não só pode embaraçar a verdade da nossa sentença, mas confirmar na contrária os autores e seguidores dela. Aspiciebam (diz Daniel na segunda visão) donec throni positi sunt, et Antiquus dierum sedit vestimentum ejus candidum quasi nix, et capilli captis ejus quasi lana munda; thronus ejus flammæ ignis rotæ ejus ignis accensus, Fluvius igneus, rapidusque egrediebatur a facie ejus. Millia millium ministrabant ei, et decies millies centena millia assistebant ei; judicium sedit et libri aperti sunt, etc. E estas palavras por todas as circunstâncias do trono, do fogo, da assistência dos anjos, dos livros que se abriram e do mesmo nome de juízo, não só parece que significam, senão que estão demonstrando o vigor e majestade do juízo final, e assim o entendem mais ordinariamente os expositores desta visão. Logo, se o Reino e Império de Cristo e dos Cristãos há-de ser depois do juízo final, claramente se convence que ano é nem há-de ser Império desde Mundo, senão do outro.

Respondo que é certo falar neste lugar o Profeta de juízo, e juízo de Deus, e juízo rigoroso e de grande majestade, mas digo com a mesma certeza que este juízo não é o juízo final, em que Cristo há-de vir julgar os vivos e os mortos no fim do Mundo, senão um juízo particular, em que o Padre Eterno há-de tirar o Reino e Império universal do Mundo ao tirano ou tiranos que então o possuírem, e para meter de posse e o entregar a Cristo, seu filho, como legitimo senhor e herdeiro dele, e aos professores de sua fé e obediência, que são os Cristãos.