Mostra-se a Quinta Monarquia com a 1.a profecia de Daniel
Já dissemos que os futuros livros ou contingentes (qual é o Império que prometemos) só são manifestos a Deus e a quem os quer revelar. E assim, para fundarmos bem a esperança deste grande futuro, devemos recorrer principalmente aos que a Fé nos ensina que foram verdadeiros profetas, entre os quais, como também deixamos dito, tem o primeiro lugar Daniel, não ,pelo espírito de profecia que foi tão superiormente ilustrado, mas porque o fez Deus particular profeta dos reinos e das monarquias. Será pois a primeira pedra deste edifício uma grande profecia de Daniel.
No ano antes de Redenção do Mundo 450, Nabucodonosor, um dos últimos reis imperadores de Babilônia, que era, como fica dito, o Império dos Assírios, desvelado uma noite com os pensamentos da sua monarquia, em prêmio ou conseqüência deste cuidado mereceu que Deus lhe revelasse, sendo gentio, o sucesso de muitas cousas futuras, assim como outros príncipes que têm fé e desmerecem por sua negligência e descuido até o conhecimento natural dos presentes. Viu pois Nabuco em sonhos uma visão admirável e portentosa, com cuja apreensão e assombro acordou de tal maneira perturbado e contuso, que somente se lembrava que acabava de sonha- cousas prodigiosas, grandes e prenhes de mistérios, mas totalmente se esquecia quais foram. Assim, estimulado igualmente do desejo e do temor que a mesma lembrança lhe causava, mandou logo chamar os maiores sábios dos seus reinos, os magos, os aríolos; os caldeus, que eram os que pela observação das estrelas e outras professavam a ciência das cousas futuras, e depois de trazidos à sua presença, lhes declarou por si mesmo tudo o que lhe tinha sucedido, e mandou-lhes seriamente que não só lhe haviam de dizer logo a significação do sonho, senão também o que tinha sonhado. Responderam os sábios que, se o rei lhes manifestasse o que sonhara, eles se obrigavam a declarar a significação de tudo, porque isso era a sua profissão e o mais a que se estendia a ciência humana; mas que adivinhar qual houvesse sido o sonho era segredo impossível de alcançar aos homens e reservado somente à sabedoria dos deuses. Falaram assim, porque todos eram gentios.
Não se aquietou Nabuco com esta resposta dos sábios, antes os argüiu com ela de falsos, enganadores e indignos de crédito; porque, se não podiam saber o sonho, que era cousa passada, como haviam de conhecer a significação dos futuros, e somente lhes haviam de dar crédito no segundo e mais dificultoso, se no primeiro e mais fácil eles mesmos confessavam sua ignorância? Que se resolvessem a dizer logo uma e outra cousa, senão que ele e sus famílias morreriam todas. E como os tristes sábios respondessem outra vez que não sabiam nem podiam satisfazer ao rei no que deles queria, irado grandemente Nabuco, mandou que os levassem de sua presença e que neles e em todos os professores das mesmas artes se executasse logo a sentença de morte. Tão violentos são os apetites do poder supremo, e tão arriscado não satisfazer aos reis até no impossível!
Achava-se neste tempo em Babilônia Daniel, onde fora levado com El-Rei Joaquim no primeiro cativeiro ou transmigração dos Hebreus. Oro a Deus, ele e seus três companheiros, ,que também entravam no número dos condenados, porque tinham estudado, por mandado do mesmo rei, as ciências de Caldeia; folhe revelado pelo Céu o sonho e a interpretação dele, e quando já a multidão dos sábios, rodeados de rústicos e tumulto popular, começavam a caminhar para o lugar do suplício, faz parar a execução Daniel. Oferece-se a declarar o sonho; pede que o levem a Nabucodonosor, e posto em sua presença e na dos maiores príncipes de Babilônia que o acompanhavam, depois de confessar a insuficiência sua e de todo o saber humano, e mostrar como só o Deus verdadeiro, a quem ele servia e que fora o autor daquele sonho, o podia revelar e a significação dele, primeiramente com assombro e pasmo do rei lhe contou muito miudamente por sua ordem a história do que tinha sonhado, e depois com igual admiração e espanto de todos lhe foi explicando parte por parte os mistérios e segredos futuros que tão prodigiosa visão em si encerrava.
Este é o prólogo da primeira profecia de Daniel, e todo este aparato de circunstâncias com o Texto Sagrado descreve o sucesso dela, as quais porventura puderam parecer menos necessárias ao nosso argumento, mas nós as quisemos resumir brevemente aqui, para crédito natural da mesma profecia; pois não só nos obrigam a que a creiamos por fé os que somos cristãos, mas se podem convencer com elas por discurso até os mesmos Gentios.
A história do sonho, pelas palavras com que Daniel a referiu, é a seguinte: Tu, Rex, cogitare coepisti in strato tuo quid esset futurum post hoec; et qui revelat misteria, ostendit tibi que ventura sunt. Tu, Rex, videbas et ecce quasi statua una grandis: statua illa magna et statura sublimis stabat contra te et intuitus ejus erat terribilis, etc. , usque ad implevit universam terram. Hoc est somnium. «Começaste a cuidar, ó Rei, deitado no teu leito, diz Daniel, o que havia de suceder depois do tempo presente, e o Deus que só pode revelar os mistérios e segredos ocultos, te mostrou naquela visão tudo o que está para vir nos tempos futuros, e o que eu agora te direi, não por arte ou ciência minha, se não por revelação sua. Parecia-te que vias defronte de ti uma estátua grande, de estatura alta e sublime e de aspecto terrível e temeroso. A cabeça desta está tua era de ouro, o peito e os braços de prata, o ventre até os joelhos de bronze, dos joelhos de ferro, os pés de ferro e de barro. Estando assim suspenso no que vias, viste mais que se arrancava uma pedra de um monte, cortada dele sem mãos, e q, dando nos pés da estátua, a derrubava. Então se desfizeram juntamente o barro, o ferro, o bronze, a prata, o ouro, e se converteram em pó e cinza, que foi levada dos ventos, e nem aqueles metais apareceram mais, nem o lugar onde tivessem estado; porém a pedra que tinha derrubado a estátua cresceu, e fazendo-se um grande monte, ocupou e encheu toda a terra».
Até aqui a relação do sonho, a qual Nabuco de novo ia ouvindo e reconhecendo, lembrando-se outra vez de tudo pela mesma ordem com aquela espécie de memória a que os filósofos chamam reminiscência.
Seguiu-se à história do sonho a interpretação dele, de que nós diremos agora somente o que pertencer ao ponto em que estamos, reservando o de mais (que é muito) para seus lugares. Disse pois Daniel que aquela grande estátua significava a sucessão do Império do Mundo, e os diferentes metais de que era composta as mudanças que o mesmo Império havia de ter em diferentes tempos e para diferentes nações. A cabeça de ouro significava o Império dos Assírios, em que Nabucodonosor naquele tempo reinava; e porque este Império, como deixamos notado, foi o primeiro e o princípio de todos os Impérios, por isso estava representado na cabeça, que é o princípio do corpo, e no ouro, que é o primeiro entre todos os metais.
A prata, que é o segundo metal, significava o Império dos Persas, que foi o segundo depois dos Assírios, e que se seguiu a eles, assim como o peito e braços se seguem à cabeça.
O bronze, que é o terceiro metal, significava o Império dos Gregos, que foi o terceiro depois dos Persas e se seguiu depois deles, assim como o ventre se segue depois do peito.
O ferro finalmente, que é o quarto metal, significava o Império dos Romanos, que foi e é o quarto Império, que sucedeu aos três primeiros; e assim como as pemas e pés são a última parte do corpo humano, assim este é e há-de ser o último Império dos que naquela estátua se representavam.
Tudo o que até aqui fica dito é de fé, ou se segue imediatamente dela, porque, ainda que Daniel na sua explicação do sonho não nomeou as três nações de Persas, Gregos e Romanos, disse porém expressamente que os três metais significavam três reinos, que sucessivamente se haviam de continuar uns aos outros, sinalando-os nomeadamente por primeiro, segundo e terceiro reino: Et post te consurget regnum aliud minus te argenteum, et regnum tertium aliud oereum [...] et regnum erit velut ferrum; e consta pela experiência e pelo testemunho ,de todas as histórias, não só humanas, senão também das sagradas e divinas, que os três reinos e impérios que sucessivamente se seguiram ao dos Assírios foram o dos Persas, o dos Gregos e o dos Romanos: ou, por o dizer com mais propriedade e certeza, consta que o mesmo Império que primeiro foi dos Assírios, vencidos estes por Ciro, passou aos Persas, e o mesmo Império dos Persas, vencidos estes por Alexandre, passou aos Gregos, e o mesmo Império dos Gregos, vencidos estes por vários capitães de Roma, passou e se incorporou no Império Romano. E este é o verdadeiro, certo e indubitável sentido de interpretação de Daniel, recebido, aprovado e seguido por todos os Padres e expositores deste lugar, em que não há discrepância nem dúvida alguma.
A razão ou mistério por que o Império Romano se representou no ferro, diz particularmente Daniel que foi porque, assim como o ferro lima, bate, corta e doma os metais, sem haver algum que lhe possa resistir, assim o Império Romano e o poder invencível de suas armas havia de abater, desfazer, sujeitar e dominar todos os outros impérios. Et regnum quartum erit velut ferrum; quomodo ferrum comminuit et domat omnia, sic comminuet et conteret omnia hoec. E quadra maravilhosamente no Império Romano a figura das duas pernas e pés da estátua em que foi representado; não só porque, assim como os pés da estátua sustentavam e tinham sobre si o peso e grandeza de toda ela, assim o Império Romano teve sobre si e em si o peso e grandeza de todos os outros impérios que nele se uniram e ajuntaram, mas porque o mesmo peso e grandeza, como acima vimos, foi causa de que o Império Romano se dividisse em dois impérios ou duas partes iguais do mesmo, com a qual divisão, pondo um pé no Oriente outro no Ocidente, um em Roma outro em Constantinopla, ficaram verdadeiramente sendo estas duas partes do Império Romano como duas colunas naturais de ferro, sobre as quais toda a máquina daquele portentoso colosso se sustentava. Mas não parava aqui a propriedade da semelhança. Assim como, na divisão de uma e outra perna da estátua se representava a divisão do Império Romano nos dois impérios, assim os dez dedos, uns maiores outros menores, em que se dividiam, significavam dez reinos, em que a grandeza do mesmo Império Romano, na sua última declinação, se havia de dividir. Para cuja inteligência se deve notar que tudo o que hoje possuem os príncipes cristãos na Europa, e tudo o que na Europa, na África e na Ásia possui o Turco, são umas divisões ou ,retalhos do Império Romano, e as partes ou membros de que aquele vastíssimo corpo na sua maior grandeza e potência se compunha, as quais lhe foram tirando as mesmas nações que ele tinha sujeitado, restituindo-se outra vez a sua primeira liberdade e soberania, como hoje estão, sem reconhecerem sujeição nem obediência alguma ao Império Romano. Ad extremum (diz Perério) ex uno duplex factum est Imperium Romanum: alterum Latinorum seu Occidentis, allerum vero constantinopolitanum, Græcorum seu Orientis. Adjice, quod omnia regna quæ nunc sunt apud Christianos, et sub Imperio Turcorum, partes sunt Imperii Romani tanquam rami ex una illa Imperii arbore decisi. E é tão verdadeira e tão antiga esta interpretação dos dez dedos da estátua, que já antes dos tempos de S. Hierónimo em que o Império Romano estava íntegro e potentíssimo, sem ter perdido cousa alguma sua grandeza, era opinião comum (como diz o mesmo santo) de todos os escritores eclesiásticos que o Império se havia de dividir em dez reinos.
Assim se dizia e escrevia então, e assim o estamos vendo hoje, comprovando-se a verdade desta interpretação com a experiência e confirmando-se ser este o verdadeiro sentido da profecia com o cumprimento dela; porque, se bem contarmos os reinos em que hoje está dividido ou despedaçado o que antigamente foi e se chamava Império Romano, acharemos pontualmente que são dez reinos: Portugal, Castela França, Inglaterra, Suécia, Dinamarca, Moscóvia, Polônia e Estado ou Império Turco, e o mesmo Império Romano, que compreende Alemanha e Itália. E se uns reinos destes são maiores, outros menores, uns mais fortes outros menos, essa mesma é a propriedade dos dedos, como nota neste lugar o mesmo autor alegado, e depois dele outros muitos: por decem digitos partim ferreos et partim terreos significatur Romanum Imperium novissime iri in multa regna multosque reges, quorum alii maiores et potentiores, alii minores et imbecilliores futuri sint.
Ao diante dividiremos estes mesmos dedos da estátua em outras partes que temos por mais proporcionadas; por agora baste esta divisão que nós pusemos em primeiro lugar por ser mas fácil, e porque, com a notícia vu1gar que se tem do Mundo, pode ser entendida e percebida de todos. E posto que Daniel nesta profecia não declara com tanta miudeza que a divisão do Império Romano há-de ser ,pontualmente em dez partes ou dez reinos, em outra profecia, como depois veremos, especifica este número, e nesta diz clara e expressamente que os dedos dos pés da estátua significam a divisão do Império: Porro quia vidisti pedum et digitorurn partem testæ figuli et partem ferream: regnum divisum erit.
Passa finalmente o mesmo Profeta a declarar o mistério ou significação do barro de que os dedos eram compostos em uma parte juntamente com outra de ferro, e diz assim: ... quod vidisti ferrum mistum testæ ex luto. Et digitos pedum ex parte ferreos, et parte fictiles: ex parte regnum erit solidum, et ex parte contritum. Quod autem vidisti ferrum mistum testæ ex luto, commiscebuntur quidem humano semine, sed non adhærebunt sibi, sicuti ferrum misceri non potest testæ. Nas quais ,palavras diz Daniel que o barro dos pés dá estátua significava a debilidade e fraqueza a que o Império Romano, depois de tanta potência, havia de descair, principalmente na sua última idade e declinação, que é o estado em que o vemos. Adverte, porém, o Profeta que não eram os dedos totalmente de barro, senão compostos parte de barro e parte de ferro, porque nesse mesmo estado de sua declinação, debilidade e fraqueza conservaria o Império algumas partes sólidas em que permanecesse a dureza e fortaleza do antigo ferro de que todo antes era formado, que é, ao pé da letra, o que se tem visto e experimentado no Império Romano, desde o tempo de sua maior declinação a esta parte, em tantas ocasiões de guerras e batalhas contra Turcos, contra hereges e contra alguns príncipes cristãos, nas quais em defesa da própria e da Igreja têm pelejado os exércitos imperiais com grande valor, disciplina e constância, e alcançado de seus inimigos gloriosas vitórias. E a mesma oposição tão bizarra com que as armas do Império nas fronteiras de Alemanha e Hungria, e o mesmo Imperador em pessoa estão hoje resistindo às invasões do Turco e poder otomano, que outra cousa são ainda, senão partes e partes muito sólidas daquele mesmo ferro?
Mas vindo às partes de barro: estas são (diz Daniel) aquelas províncias e nações que, sendo partes do antigo Império Romano, se desuniram e tiraram de sua sujeição, e formaram novos reinos, os quais, ainda que em si mesmos sejam muito poderosos e fortes, e verdadeiramente se possam chamar partes de ferro, em respeito porém do Império de que se apartaram e que tanto desuniram e enfraqueceram com sua separação, não são nem se podem chamar senão partes de barro. E tal é hoje o Reino de França, o de Inglaterra e da Suécia, e o mesmo de Castela ou Espanha, em respeito do Império Romano. E porque não cuidasse alguém que a união que se perdeu pela separação das coroas se recuperou e supriu pela conjuração do sangue, casando os imperadores nas casas reais dos outros príncipes e os reis na dos imperadores, e sendo estes muitas vezes eleitos das mesmas famílias que do Império se apartaram, acode Daniel a esta objeção, dizendo: Commiscebuntur quidem humano semine «misturar-se-ão e ligar-se-ão no sangue», sed non adhærebunt sibi «mas nem por isso se unirão nem ligarão entre si», sicuti ferrum misceri non potest testæ, «bem como o ferro se não pode unir nem ligar com o barro.» A tanta miudeza como isto desceu o Profeta, acrescentando em todas estas circunstâncias novas e admiráveis confirmações à verdade da sua Profecia.
Quantas vezes se intentou na Europa que entre os imperadores e reis da Cristandade se estabelecesse uma liga firme, interpondo-se para isso a autoridade dos Sumos Pontífices, e quantas vezes se liaram os mesmos príncipes entre si por meio de recíprocos casamentos, sem jamais se conseguir a união desejada! Que imperador ou que rei houve na Cristandade há muitos anos que, se gota por gota lhe distinguirem o sangue, não tenha cada um dos outros príncipes quase iguais partes nele? E que guerras vimos ou sabemos entre estas coroas, em que o sangue que de uma e outra parte se defende, e ainda o que se derrama, não seja o mesmo? Tão misturado anda o sangue nestas últimas relíquias do Império Romano, mas tão resumido sempre, e por isso o mesmo império tão enfraquecido!
Nasceu juntamente com Roma esta fatal desunião contra o respeito do sangue em Rômulo e Remo; viu-se no casamento de Pompeu com Júlia, filha de Júlio César, e no de Marco Antônio com Octávia, filha de Octávio, quão facilmente se desatam, antes, se amarram contra si, as ,mesmas mãos que- pelo matrimônio se uniram. Mas não são estes exemplos tão antigos os de que fala a profecia de Daniel, porque não são os dos pés da estátua ou os dos dedos dos pés. Significam os dedos dos pés da estátua as últimas extremidades do Império Romano e a sua duração, e, se eu me não engano, no mesmo dia em que isto estou escrevendo se está cumprindo esta profecia. Que casa real há no Mundo mais ligada com a do Império, que ramo há que seja mais próprio daquele tronco, e que sangue mais repetidamente unido por multiplicados casamentos que o de Áustria e Castela? E que pessoa real há também em que mais apertadamente estejam atados estes vínculos e mais dobrados todos estes respeitos que na de El-Rei Filipe IV, primo do Imperador, cunhado do Imperador, genro do Imperador? Considere agora o Mundo o estado em que o mesmo Imperador se achou no ano passado e em que se acha no presente, com os poderosos exércitos do Turco metidos dentro na Áustria, e quase, batendo às portas de Praga, corte do Império, os campos talados, as cidades destruídas, os homens barbaramente mortos a sangue-frio, as mulheres e meninos cativos e transmigrados para a Turquia, os templos e pessoas dedicadas ao templo em abomináveis sacrilégios profanados, e, depois de profanados, abrasados e feitos em cinzas; e neste mesmo tempo em que o ferro de Espanha se havia de unir todo ao ferro do Império, vemo-lo todo infelizmente convertido contra Portugal, mas por isso mesmo infelizmente! Se este ferro se unira ao Império contra o Turco, fora ferro, mas, porque se desune dele em tal ocasião e se converte contra Portugal, é barro.
Barro e barro quebradiço, foi o ano passado e, por mais que se mostre ou ameace ferro, barro há-de ser também no presente. Quanto melhor e mais católica ação fora, e quanto de maior exemplo para todos os príncipes católicos e de menor escândalo para os hereges e para os mesmos Turcos se o sangue espanhol, e tão valoroso, que de uma é outra parte se desperdiça, com lástima e lágrimas da Igreja, no campo de Portugal e Castela, se empregara com glória imortal de ambas as coroas em defesa da Fé, da Cristandade, da Religião, e da mesma cabeça dela, a quem tão de perto ameaça este golpe! Mas quando todo o poder de Espanha se havia de achar unido contra o Turco em socorro de Alemanha e Itália, despovoam-se os presídios de Itália, levantam-se os de Alemanha e chamam-se todos a Castela contra Portugal, para que triunfem nas bandeiras otomanas as luas de Mafoma, e se conquistem e sejam vencidas nas portuguesas - as chagas de Cristo!
Este é o barro dos pés da estátua, esta é a fraqueza das extremidades do Império Romano, esta é a queixa que ,Daniel explica e pondera na mesma fraqueza, mostrando que a principal causa de toda ela é a desunião daquelas partes que por serem mais conjuntas em sangue e parentesco, tinham obrigação de ser mais unidas »— commiscebuntur quidem humano semine »— isto é, casará o Imperador Fernando com Maria, irmã de el-Rei Filipe IV; casará Filipe IV com Leonor, filha de Fernando; mas nas últimas extremidades do Império Romano e nos seus maiores apertos e trabalhos não se acharam parentes nem aderentes »— sed non adhærebunt sibi.
Temos visto até aqui, desde a cabeça até os pés da estátua, o primeiro, segundo, terceiro e quarto império; segue-se agora ver o quinto na mesma história do sonho de Nabuco e na mesma interpretação de Daniel, o qual, depois das palavras ultimamente referidas, continuou e concluiu desta maneira: In diebus autem regnorum illorum etc.... quæ ventura sunt postea. Quer dizer: aquela pedra, ó Rei, que viste arrancar e descer do monte, que derrubou a estátua e desfez em pó e cinza todo o preço e dureza de seus metais, significa um novo e quinto Império que o Deus do Céu há-de levantar no Mundo nos últimos dias dos outros quatro. Este Império os há-de desfazer e aniquilar a todos, e ele só há-de permanecer para sempre, sem haver de vir jamais por acontecimento algum a domínio ou poder estranho, nem haver de ser conquistado, dissipado ou destruído, como sucedeu ou há-de suceder aos demais. Estas são as cousas futuras que Deus te quis mostrar, ó Rei, e este é o sonho que tiveste e esta a verdade de sua interpretação -- et verum est somnium et fidelis interpretatio ejus.
Depois de contar Daniel toda esta prodigiosa história, acrescenta imediatamente o que Nabucodonosor lhe fez e o que lhe disse. O que lhe disse foi: Vere Deus vester Deus deorum est, et Dominus regnum, et revelans mysteria, quoniam tu potuisti aperire hoc sacramentum. «Verdadeiramente o Deus que adoras, ó Daniel, é o Deus dos deuses e a Senhor dos reis, e o que só conhece e revela as mistérios escondidos aos homens, pois tu, alumiado por ele, pudeste declarar este grande segredo e sacramento. O que fez Nabuco no mesmo tempo, e ainda antes de dizer estas palavras, refere o mesmo texto em as seguintes: Tunc rex Nabuchodonosor cecidit in faciem suam, et Danielem adoravit, et hostias et incensum præcepit ut sacrificarent ei. «Tanto que o rei acabou de ouvir a Daniel, prostrou-se diante dele e adorou-o com o rosto em terra, e mando que lhe oferecessem incenso e sacrifício.» Se isto fez Nabucodonosor a Daniel, quando lhe disse que seu império se havia de acabar e passar outros quatro, que faria se lhe dissesse ser e1e o senhor do quinto? Naquele tempo pagava-se a interpretação de uma profecia infeliz com adorações e sacrifícios hoje pagam-se as interpretações felicíssimas com opróbrios e calúnias.
Mas este ponto ficará para seu tempo e para seu lugar. O que deste somente quero recolher e deixa assentado é que, depois dos três impérios dos Assírios, Persas e Gregos, que já passaram, e depois do quarto, que ainda hoje dura, que é o romano, há-de haver um novo e melhor império que há-de ser o quinto e último. Esta suposição é de fé, porque assim o lemos nas Escrituras, é de experiência, porque assim o mostrou o sucesso dos tempos, e é de razão, porque assim se infere por bom discurso.
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