Segunda profecia de Daniel
Não é cousa nova em Deus quando revela cousas grandes, significar por repetidas visões o mesmo mistério e por diferentes figuras a mesma revelação. Assim mostrou antigamente a José suas felicidades, primeiro no sonho das paveias dos onze irmãos que adoravam a sua, e depois no do Sol e nas estrelas que lhe faziam a mesma adoração. Assim mostrou a El-Rei Faraó os sete anos da fartura e os outros sete da fome, primeiro no sonho das sete vacas robustas e sete fracas, e depois no das sete espigas gradas e sete falidas. E assim nos tempos em que agora imos, depois de revelar Deus a Daniel o secreto do Quinto Império, no sonho de Nabucodonosor e na visão daquela estátua, em outro sonho e em outras figuras lhe fez segunda vez a mesma representação, nada menos misteriosa e cheia de circunstâncias, que a primeira, antes mais portentosa em tudo e mais notável.
Passados 47 anos depois daquela visão (que foi o ano 54 do último cativeiro de Babilônia), reinando já nela Baltasar, que sucedeu a Nabuco no Império dos Assírios ou Caldeus, viu o Profeta Danie1 em uma visão de noite, (ou fosse dormindo e em sonhos, como tem a opinião mais comum dos Doutores, ou fosse, como outros suspeitam, acordado, velando) viu, digo, que os quatro ventos principais se davam batalha no meio do mar e levantavam uma horrível e furiosa tempestade; mas o mar assim perturbado e temeroso não era mais que o teatro em que haviam de sair a representar quatro figuras horrendas, a que o, profeta chama bestas grantes: ...et ecce quatuor venti coeli pugnabant in mari magno, et quator bestiæ grandes ascendebant de mari diversæ inter se.
«Saiu a primeira besta semelhante a uma leoa com asas de águia; pôs o Profeta nela os olhos, e não levou assim muito tempo, até que lhe foram tiradas ou arrancadas as asas. E logo levantou as mãos da terra e se pôs em pé e ficou em figura de homem.», Vejam lá os leões se lhes tira Deus as asas para [que] sejam homens! Prima [bestia] quasi leæna et alas habebat aquilæ; aspiciebam donec evulsæ sunt ale ejus, et sublata est de terra, et super pedes quasi homo stetit, et cor hominis datum est ei.
«Saiu a segunda besta semelhante a um urso, firmou-se sobre os pés e parou; tinha três ordens de dentes, entre os quais trazia três bocados, e diziam-lhe que comesse e se fartasse de carne» Et ecce bestia alia similis urso in parte stetit; et tres ordines erant in ore ejus, et in dentibus ejus, et sic dicebant ei: Surge, comede carnes plurimas.
«Depois desta saiu a terceira besta semelhante a leopardo, e tinha quatro asas como ave e quatro cabeças; e foi-lhe dado grande poder.» Post hæc aspiciebam, et ecc alia quasi pardus, et alas habebat quasi avis, quatuor super se et quator capita erant in bestia et potestas data est ei.
Durava ainda a noite, diz o Profeta e por fim de todas entrou «a quarta besta, horrível, espantosa e muito forte. Tinha os dentes de ferro grandes com que comia e despedaçava tudo o que lhe caía da boca ou não queria comer pisava com os pés. Era mui diferente de todas as outras bestas, e tinha na testa dez pontas». Post hæc aspiciebam in visione noctis, et ecce bestia Quarta terribilis atque mirabilis, et fortis nimis, dentes ferreos habebat magnos, comedens atque comminuens, et reliqua pedibus suis conculcans: dissimilis autem erat ceteris bestiis, quas videram ante eam, et cornua decem.
Enquanto tudo isto notava, Daniel via que de entre as dez pontas da quarta besta saía uma ponta menor que as outras, a qual obrou grandes estragos e outras cousas prodigiosas, cuja narração e mistérios pertencem ao Livro V desta nossa História, para onde o reservamos, como também outras circunstâncias desta mesma visão que expenderemos em seus lugares.
E continuando o que pertence a este, «levantou Daniel os olhos ao céu e viu que se armava um tribunal de juízo, cheio com grande aparato de horror, grandeza e majestade. Trouxeram-se cadeiras e assentou-se em um alto trono um velho de venerável ancianidade, a quem o Profeta chama Antigo dos dias, cujo cabelo era todo branco, e brancas as roupas de que estava vestido, aquele como arminhos, estas como neve; a matéria do trono era fogo, umas rodas sobre que o trono estava levantado também fogo, e de fogo também um rio arrebentado que da boca lhe saía. Os ministros que lhe assistiam de uma e outra parte eram milhares de milhares; assentaram-se os conselheiros ou juizes assessores; vieram os livros e abriram-se». Este é o aparato daquele tribunal e juízo, descrito ou construído ao pé da letra, como fazemos, para maior crédito da verdade em tudo o mais que imos referindo, e por isso repetimos as palavras do texto: Aspiciebam donec throni positi sunt, et Antiquus dierum sedit: vestimentum ejus candidum quasi nix, et capili capitis ejus quasi lana munda. Thronus ejus flammæ ignis: rotæ ejus ignis accensus. Fluvius igneus, rapidusque egrediebatur a facie ejus. Millia millium ministrabant ei, et decies millies centena millia assistebant ei: judicium sedit, et libri aperti sunt.
A primeira sentença ou execução que saiu deste juízo foi que à primeira, segunda e terceira besta se tirasse todo o poder, limitando-se a cada uma o tempo determinado de sua duração, o qual acabado, acabaram. Acabou também a quarta besta. porque «viu o Profeta que fora morta violentamente, e que todo aquele grande corpo perecera, e que fora entregue ao fogo para ser queimado», não ficando de tanta grandeza e bravosidade mais cinzas.
Et vidi quoniam interfecta esset bestia, et perisset cortus ejus, et traditum esse ad comburendum igni; aliarum quoque bestiarum ablata esset potestas, et tempora vitæ constituta essent eis usque ad tempus et tempus.
Torna a dizer o Profeta que «ainda durava a noite e viu vir rodeado de nuvens do céu um como filho do homem, o qual chegou ao trono do Antigo de Dias e o ofereceram em sua presença. E ele lhe deu o poder, a honra e reino de todo o Mundo, para que todos os povos e todos os tribos, e todas as línguas o obedeçam e sirvam. Este seu poder será eterno, eterno também o reino, porque nunca jamais lhe será tirado» Aspiciebam ergo in visione noctis, et ecce cum nubibus coeli quasi filius hominis veniebat, et usque ad Antiquum dierum pervenit; et in conspectu ejus obtulerunt eum. Et dedit ei potestatem et honorem et regnum; et omnes populi, tribus et linguæ itsi servient: potestas ejus, potestas æterna quæ non auferetur; et regnum ejus, quod non cortumpetur.
Esta é pontualmente a relação de todo o sonho ou história enigmática, representada nele. «Com a qual (diz Daniel) ficou o meu espírito assombrado e cheio de horror. E volvendo eu no pensamento que significariam aquelas cousas, cheguei-me a um dos ministros que ali assistiam, pedindo-lhe me quisesse declarar o verdadeiro sentido delas. E ele o fez assim e me ensinou a interpretação e mistérios de tudo o que tinha visto».
Até aqui o mesmo Profeta, o qual, porém, referindo a dita interpretação, passa em silêncio algumas circunstâncias dela, sem dúvida para não exceder a brevidade que no princípio deste capítulo tinha prometido. Daniel somnium vidit, et somninm scribens brevi sermone comprehendit; summatimque perstringens ait. E a razão de passar por aquelas circunstâncias tão brevemente ou foi porque as supôs bastantemente declaradas na visão do segundo capítulo ou sonho de Nabucodonosor que acabamos de explicar, ou certamente porque as julgou de menos importância ao seu interesse principal, que e a demonstração do Quinto Império, exprimindo com grande particularidade e miudeza tudo o que pertence a ele, como agora veremos.
Primeiramente diz Daniel (ou disse a Daniel o seu intérprete) que «aquelas quatro bestas grandes significavam quatro reinos ou quatro impérios, que sucessivamente se haviam de levantar no Mundo depois dos quais se havia de seguir outro quinto reino ou império, que o mesmo intérprete chama Reino dos Santos do Altíssimo, o qual não há de ter mudança nem variedade, nem outro reino algum ou império que lhe suceda, porque há-de durar para sempre. Hæ quatuor bestiæ magnæ quator sunt regna, quæ consurgent de terra. Suscipient autem regnum sancti Dei altissimi, et obtinebunt regnum usque in sæculum et sæculum sæculorum.
Esta é a interpretação em comum que deu o intérprete do Céu a toda a visão, sobre a qual nos explicaremos mais particularmente, declarando todas as figuras dela pela mesma ordem com que foram saindo, advertindo o que o Profeta e seu intérprete exprimiram, e suprindo com a exposição dos Doutores o que eles calaram, coligido porém tudo imediatamente do mesmo que dizem. Não declara Daniel que ventos fossem aqueles, nem que tempestades se levantaram no mar antes de sair nele as quatro bestas, mas todos os expositores concordam em que o mar significava o Mundo, e os ventos e tempestades que o alteram as alterações, movimentos, guerras e perturbações que se costumam experimentar no mesmo Mundo, quando nele se levantam novos impérios.
Mas, antes que passemos adiante, satisfaremos um argumento que nos fica no texto de Daniel, porque não deixemos o inimigo nas costas. Diz o texto que levantará Deus esta nova monarquia in diebus regnorum illorum, nos dias daqueles impérios. Logo, esta monarquia não é futura se não passada, porque dos quatro impérios já passaram totalmente os três, que são o dos Assírios, o dos Persas e o dos Gregos, e o quarto, que é o Romano, também está na última declinação. Respondo que o Profeta na sua interpretação se acomodou com grande propriedade à figura do enigma que declarava. Porque Deus, no sonho de Nabucodonosor, representou todos os quatro impérios, não como quatro corpos ou quatro indivíduos, senão como um só corpo ou um só indivíduo. Por isso viu o Rei não quatro estátuas senão uma só estátua; e assim como da quatro corpos dos quatro impérios se formou um corpo, assim das quatro durações dos quatro impérios se há-de compor uma só duração, donde segue que com toda a verdade se pode afirmar que sucederá nos dias daqueles Reinos o que sucede nos dias de qualquer deles. Exemplo: a vida de um homem compõe-se de muitas idades, e o que acontece em qualquer destas idades se diz com toda; propriedade e verdade que acontece nos dias daquele homem. Da mesma maneira a duração da estátua dos impérios era composta de diferentes idades. A sua primeira idade, que é o tempo dos Assírios foi idade de ouro, a segunda, que é o tempo dos Persas, foi idade de prata, a terceira, que é o tempo dos Gregos, foi idade de bronze, a quarta, que é o primeiro Império dos Romanos, foi idade de ferro, a quinta, que é este último tempo dos mesmos Romanos, é idade de ferro e barro. E basta que nesta última idade, como decrépita, daquela estátua ou daqueles reinos se haja de levantar o Quinto Império, para que com toda a verdade e com toda a propriedade se verifique havê-lo Deus de levantar nos dias daqueles reinos; in diebus regnorum illorum. Assim que o Império que promete Daniel não é império já passado, senão que ainda está por vir.
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