Há um comboio
que
me atravessa o corpo
e como um sopro
faz-me percorrer paisagens
até ao norte de tudo
Há uma vertigem
que me suspende a respiração
e como uma raiva
revive um rosto
alucinado
Há um desejo
que me consome
e que furiosamente
me parte
desesperado
Querer ser a engrenagem
das rodas que me levam aí
ou o silvo que me anuncia
Leva-me ó comboio
da minha imaginação
Comboio das curvas lentas
Comboio das altas velocidades
Comboio das encostas
aos solavancos
Comboios marginais:
só esses sabem a morada
que o sonho de ti lembra
Heia! Engrenagens primitivas
engrenagens sofisticadas
Heia! Destinos partidas
gares das grandes movimentações
Heia! Comboios à beira rios
chaminés das cordilheiras
horizonte das planícies
Levai-me comboios!
: estradas do meu metabolismo
: estalagens da minha vadiagem
:
pousadas do meu cansaço
Heia! Monstruosas centrais
e delicados apeadeiros
Quero outra vez fazer
dentro de vós a minha cama
encher os olhos do vosso exotismo
esquecer a exaustão da viagem
nas vossas lajes frias
Heia! Gares da minha marginalidade
Quero percorrer-vos os corredores
de madrugada
à procura dos lavabos
e encontrar nos cantos
das sombras psicadélicas
as enfermidades da europa que conheço
Ser o voyeur do vosso espectáculo
Boa-noite ó vagabundos prostitutas
proxenetas drogados das duras e das leves
boa-noite ó desalojados
velhos d’Austerlitz:
saúdo-vos e às folhas de jornal
que vos servem de cama
Boa-noite ó mafiosos de Roma Terminal
Boa-noite ó yankees de Veneza Sta. Lúcia
onde dormis para a fotografia
que os vossos tios verão em Minneapolis
Illinois
Ó africanos de Marselha
Fugitivos dos cães polícia
Ó bêbados de Est e SudMenhoif
Boa noite: boa-noite Sta. Apolónia
da única Lisboa que conheço
Boa-noite etarra de Donostia
que lias poesia para não adormecer
Heia! Mil vezes heia!:
A todos vos saúdo e a todos vos quero
Ó gares ó comboios ó estradas
da minha casa ao ombro
Heia! Peregrinos para Kerouac
vocês que me fizeram
companhia na Midi de Bruxelas
E que no intervalo de uma fumaça
Dizíeis je m’en fous para os palácios
comunitários
Heia! destinos dos trabalhadores sazonais
vocês que a única consciência que têm
é a de terem consciência
e de não serdes conscienciosos
de modo nenhum
Heia! Excessos dos encontros fugidios
Heia! Olhares a duzentos à hora
Heia! prostituta de Poitiers
pedia vinte francos que eu não tinha
Heia! finlandesa que querias tocar num moreno
Saúdo-vos cheiros adocicados
nos corredores dos expressos
O meu cérebro solidariza-se
com a fragrância colorida
do haxixe clandestino
no expresso para ocidente
Lembro-me de ti francesa de Paris
e do pó branco no interior
das peças de xadrez
Gostei do teu lance à Capablanca
e do teu sorriso de turista maravilhada
Gostei da tua elegância treinada
pelos passaportes falsos
Não reconhecerei o teu nome na French connection
Não te esqueci Pablo andaluz
e que ganhaste pela noite
uma cicatriz na face esquerda
Se um dia voltares para casa
sabê-lo-ei
Saúdo-vos companheiros da marginalidade
Saúdo-vos a vós e às plataformas
e aos carris trepidantes
e aos subterrâneos e às fronteiras
-
especialmente à fuga das fronteiras –
Saúdo-vos a vós que em todas as gares
sabeis o que é partir e não chegar
a vós que na estrada apenas sabeis
o que é seguir em frente
e que mudais de destino
como se muda de língua
porque é preciso
a vós que conheceis o esperanto
a vós párias amantes
do
nacionalismo universal
a vós que conheceis a bastonada da polícia
mas também o amor dos homens e mulheres de ocasião
a vós depravados dementes
fugitivos da clínica europeia
a vós imunodeficitários antes da sida
Por vocês plantarei flores na lua
saúdando-vos deste modo
de vos ver como quero
Levai-me comboios
Levai-me para a única morada
que conheço
que é a do mostruário das partidas
seguintes
e de seguida ser despejado
por falta de bilhete
Ó comboios que partis
Levai-me
Fazei de mim uma partida constante
atravessai a terra e o meu corpo
e inventai o silvo que me anuncia
Oh mecanismos-bichos!
comboios-cobra comboios-delírio!
comboios-possessão comboios-escrita!
Enroscai-vos ao meu pescoço
sufocai-me fazei de mim a vossa vítima
dilarecerai-me estropiai-me
Recrio a presença da europa moribunda
europa do TGV europa vertiginosa
europa dos trilhos clandestinos
Quero ser o batedor da desgraça que rola
Sim! Sim a isto tudo
Não a isto tudo
Não isto tudo
Mais do que isto tudo o que é nómada
O que escorre o que desliza o que rola
O que me assalta nas esquinas
e nos portais citadinos
O que me seduz na ostentação do vício
As bermas as Margens os Recantos
Aí a escrita encontra o seu território
Aí tudo rola
Rola o desejo de me ver com todos vocês
Rola o desejo de sentir de novo
o cansaço do turbilhão dos terminais
Rola o desejo de não saber onde estar amanhã
Rola o desejo de me abandonar
nas bifurcações de todas as estradas
Nas bermas de todos os caminhos
Rola o desejo de rolar
Pulo uivo grasno
rosno selvaticamente
O sangue escorre ansioso
na expectativa da partida
Quero juntar-me à vagabundagem do mundo
Quero correr à minha frente!!!!!!
Espero o piar do mocho
o sinal citadino
que me persegue pela sombra crepuscular
nas vitrinas comerciais dos metros
Sopra na pele a aragem
desses territórios subterrâneos
Povoa-se a minha alma
dos sonhos torpes obscenos fantásticos
desses recantos
públicos e nocturnos
Lugar mitológico das multidões ausentes
Habita-vos o que não recordais do sonho
Habita-vos a outra face do sono que deseja
Habita-vos o rosto dos desejos sufocados
Habita-vos o tempo das máscaras
que a cidade reinventa
Habita-vos a profundidade
que
o meu olhar envolve
Habita-vos as fronteiras
do medo futuro
Por isso os diurnos vos invejam e temem
- ó subterrâneos do futuro europeu –
Habita-vos o delírio
do meu corpo que teme
Eufórico entro no transe de vos possuir
tremo arquejo soluço
Quero desesperadamente
tudo o que me leva para lado nenhum
Acelero o passo corro
a minha imaginação recria-se
nos corredores diabolicamente oscilantes
A loucura acompanha os ritmos do mundo
que desliza
Ó pirotecnia do movimento!
Ó linhas obscuras do meu pensamento!
Ó agulheiros da minha mente delirante!
Ó gares do meu corpo febril
Suo esperneio relincho
espasmodicamente
Os meus olhos salivam
A minha boca resseca-se muda
Sou uma fera enjaulada
e espero a lua cheia da libertação
Cavalgo pela escuridão intempestiva
A chuva impiedosa que cai
perfura-me os olhos
Ecoa o grito que é da
minha boca feita terra
Resfolego pelos charcos enlameados
As nuvens carregadas da minha raiva
Abrem-se a esta visão furiosa
Quero ser o lobisomem
deste desejo mórbido
A natureza desvairada
diz que sim com os gritos
dos bichos enlouquecidos
e o tranvia da minha escrita
sente-se ultrapassado pelo que quer à frente
Antecipo Antevejo Antemostro
Quero-me lúcido na antecâmara
da morte
Quero-me lúcido desta loucura
Vagueio entre o céu e o inferno
aguardando o grifo
que a minha inquietude inventa
Levai-me aves! A brisa
orienta-me o regresso oculto
A madrugada surge cadenciada
e os comboios-possíveis retardam
a visão da proximidade
do oriente para lá do oriente
O sol rasga as janelas obscurecidas
da mutação nocturna
Regresso cansado porque
os regressos são sempre por cansaço
Estendo-me na relva
que os vagões deixaram crescer pela noite
e recordo as viagens
que o meu corpo desmente
O céu e o inferno é o lugar
que nos habita para a morte
e a manhã sempre imprevista
é o sinal que a anuncia.
Fernando Martinho Guimarães
f_guimaraes@sapo.pt
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