Quando caía a noite, milhares de perguntas povoam a mente
de Moína, uma formosa menina de oito anos. Do mesmo modo que uma cobra
se enrosca lentamente em um tronco de árvore, assim a garota vai se
achegando aos pés da avó para que ela lhe coce a cabeça e acaricie os
longos cabelos indígenas.
A anciã conhece o jeitinho suave da neta, sempre sedenta por
entender o sentido da vida e a razão do existir. A conversa começa
sempre como uma pergunta infantil como esta:
- Vovó, por que eu sou criança?
- Você é a transformação – responde pacientemente a sábia
senhora índia -. Você é a vida em um mágico movimento crescente. É a
razão de viver de seus amados pais. Veja o tamanho de seu pé, não é o
mesmo de quando você tinha quatro anos de idade! Lembra-se de seus
cabelos? Como cresceram! Hoje, suas perguntas não são diferentes das de
ontem! Você está mudando todo o dia e assim: é a transformação da vida,
a bênção dos céus.
- Mas agora eu estou com sono, vovó. Conte-me uma história,
quero ter sonhos bonitos.
- Está bem, vou contar... Preste atenção. Muitos e muitos
anos atrás a mentira, a maldade e os vícios invadiram uma aldeia de
nossos antepassados, que beirava o grande oceano azul. As mulheres
adoeceram e ficaram tristes, não cantaram mais nem pintavam o corpo.
Os homens competiam, cada um querendo ser melhor do que os
outros e possuir maior quantidade de bens materiais, alimentos e cabras.
A colaboração, a bondade, a coleta da água, a divisão do leite de cabra,
da farinha e do peixe, tudo o que era bom, sumiu daquela aldeia.
Quando os homens bebiam, ficavam violentos e agrediam as
mulheres. As mães batiam nas crianças e elas acabavam maltratando os
animaizinhos de estimação.
Os animais sofriam, a terra ficou
triste e ressecada, árida, dura, e quebradiça, porque o grande Criador
não mandava mais chuva. O manguezal secou e os caranguejos e ostras
sumiram.
Até os alimentos ficaram tristes por não poderem servir mais
aos humanos de forma coletiva e aprazível. Acabaram fugindo para não
serem consumidos. As águas corriam mais rápidas do que o normal pelos
leitos dos rios porque não queriam mais matar a sede de ninguém naquela
aldeia. Quando eram recolhidas, choravam até evaporar.
- Mas por que isso aconteceu, vovó?
- Porque os estrangeiros maus só queriam lucro e encheram a
terra com algodão, dominaram os antigos guerreiros índios e os fizeram
escravos e ai de quem não os obedecesse! Aqueles estrangeiros traziam
sua própria água e usavam adubo e maquinários agrícolas na terra.
Nossa região foi manchada de sangue indígena pela
brutalidade de estrangeiros insensíveis, covardes e dominadores que
impuseram os vícios, a maldade, a mentira, a cobiça, a competição, o
egoísmo e trouxeram sofrimento e divisão para as famílias que ali
nasceram.
Os espíritos dos antepassados observavam a infelicidade da
terra, a divisão entre as pessoas e o sofrimento daquelas que se
submetiam ao plantio de algodão e das outras, que não concordavam de
forma nenhuma e até fugiam para não serem mortas.
- E as crianças, vovó?
- As crianças, no meio de tanto sofrimento, só choravam.
Choraram muito, mas muito mesmo. Era tanto choro que não se ouvia mais o
bater das ondas do mar na praia, os cânticos dos pássaros nem o vento
nas folhas dos coqueiros, mangueiras, mangabeiras e cajueiros. As
lágrimas infantis e inocentes encharcaram a terra ressecada e invocaram
os espíritos dos curandeiros e das curandeiras de um passado ancestral
muito antigo.
- Os ancestrais ouviram os soluços das crianças?
- Ouviram, sim. As lágrimas das crianças trouxeram de volta os
espíritos dos curandeiros e com eles, voltaram também o amor, a paz, a
saúde, o trabalho e a música. Outras forças que orientavam a cultura
daquele povo foram surgindo e os espíritos dos anciãos e das anciãs do
passado, do presente e do futuro tomaram a forma de milhares e milhares
de passarinhos que sobrevoaram as terras indígenas e cantaram as músicas
mais sagradas do planeta Terra.
Aquela força musical permaneceu através das danças sagradas
que em círculos de amor, cultuam as forças ancestrais. As músicas e as
danças são dons dos curandeiros ancestrais invocados pelas crianças,
quando elas choraram alto pelo sofrimento da terra e pelas feridas do
mundo.
- E as mães não bateram mais nelas?
- Não. As mães indígenas cuidaram das feridas do mundo e as
crianças transformaram a terra e a vida daquele povo num lugar tão feliz
como antes. A cura daquela terra foi cura para todo o nosso grande
planeta azul.
- E as crianças de agora podem fazer a mesma coisa?
- Claro! As crianças podem mudar o mundo, porque são rápidas
como os coelhos, enxergam com os olhos do gavião e voam espiritualmente
com as asas das araras. As crianças quando nascem herdam os
conhecimentos dos avós, bisavós e tataravôs. A maior gratidão das
crianças pelos mais velhos e mais velhas é o respeito e o reconhecimento
dessa herança ancestral. Por isso você é criança e a criança é o
movimento, a mudança do tempo e a transformação do mundo.
- Que bom, vovó! Agora eu vou dormir e sonhar com o Planeta
Azul.
- Durma agora, Moína e imagine o que você pode mudar. Quando
encontrar algo errado que a faça sofrer, lembre-se que é através dos
sonhos que a gente cria, recria e promove a cura da terra. |