REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências

 

 

 

 






.JOSÉ EDUARDO FRANCO

 

UMA ODISSEIA LITERÁRIA
O MAIOR FEITO EDITORIAL DA HISTÓRIA DA EDIÇÃO 

Entrevista a José Eduardo Franco, Autor do Projeto e codiretor da Equipa “Vieira Global”  

 

Qual a sensação de ter terminado com êxito este projeto hercúleo? 

Nós somos o que fazemos. Como pregou Vieira no sermão das exéquias do seu padrinho de batismo, o Conde de Unhão, “[...] nem todos os anos, que se passam, se vivem: uma coisa é contar os anos, outra vivê-los; uma coisa viver, outra durar. Também os cadáveres debaixo da terra; também os ossos nas sepulturas acompanham os cursos dos tempos, e ninguém dirá que vivem. As nossas ações são os nossos dias: por elas se contam os anos, por elas se mede a vida: enquanto obramos racionalmente, vivemos; o demais tempo duramos.”

Nestes anos de trabalho exigente, vivemos intensamente.

 Hoje experimentamos a gozoso sentimento do dever cumprido. Valeu a pena termos arriscado tudo para realizarmos, num cronograma tão apertado, este projeto que muitos vaticinaram ser impossível concluir em tão pouco tempo.  Foi de facto a primeira vez na história da edição em Portugal, desde do século XV, que se preparou e editou uma obra desta dimensão e complexidade em tão curto espaço de tempo. É um feito que se deveu a uma grande equipa que aceitou trabalhar abnegadamente e concertadamente, dia e noite, para o conseguir, fazendo jus a quem nos apoiou e acreditou que, no nosso país, quando há vontades fortes as realizações grandes acontecem.

 Assim, foi possível colmatar uma grave lacuna da nossa cultura, disponibilizando ao grande público toda a obra do maior orador português de todos os tempos. Fez-se uma espécie de primavera cultural com esta edição que agora também está a ser publicada integralmente no Brasil a partir da matriz portuguesa, inclusive com a nossa matriz gráfica.  

 

O senhor coordenou um volume com o teatro e a poesia de Vieira. Poderia dizer de maneira sintética como era o seu teatro? Quais os temas que ele trata com mais frequência? 

O teatro de Vieira foi composto para efeitos pedagógicos quando o Padre Vieira desempenhou a funções de professor no Brasil. Era um teatro para formar o carácter dos jovens estudantes e assimilarem melhor os valores morais.

A poesia barroca de Vieira  trata de temas devocionais, celebra a amizade, canta as virtudes e as grandezas de figuras do seu tempo que pretendia exaltar, mas também aponta as misérias do tempo  que pretendia castigar.

 

"A Chave dos Profetas" é considerada a obra magna de Vieira. Qual é a sua visão particular sobre os três livros que compõem a obra? 

Esta foi a obra que se tornou objeto das suas maiores, mais longas e mais ponderadas preocupações intelectuais. Dedicou-lhe longos anos e acabou por deixar-nos como uma espécie de testamento, um testamento-utopia para o seu povo, para o Brasil, para Portugal e para o mundo.  À luz de uma fé inabalável em Cristo e no seu Evangelho idealizou um mundo novo, uma sociedade humana nova, uma terra nova habitada por homens e mulheres capazes de viver em concórdia, em fraternidade e de praticar a justiça em harmonia com Deus e com a natureza. Preocupado que estava com as fraturas que se tinham aberto no seio da Cristandade europeia com os movimentos da Reforma e da contrarreforma e das subsequentes guerras religiosas dos 30 Anos, com o estender dos conflitos europeus entre as potências coloniais à escala global, com o aumento da intolerância no seio do catolicismo, nomeadamente com a consolidação do poder da Inquisição e a perseguição aos Judeus, Vieira quis propor uma via alternativa, quis revelar e afirmar que havia uma promessa de um mundo novo inscrita na genuína herança espiritual do cristianismo e desejada desde sempre por todas as culturas humanas. O padre Vieira traduziu essa utopia na ideia de Quinto Império, uma utopia proto-ecuménica, onde teriam lugar as culturas e ritos dos diferentes quadrantes da humanidade, inclusive as dos seus queridos e muito perseguidos cristãos-novos de origem judaica e os próprios judeus que ainda não se tinham convertido. Raymond Cantel, estudioso francês de Vieira, classificou a utopia consignada nos seus escritos proféticos, particularmente na História do Futuro e n’ A Chave dos Profetas, uma das mais generosas e mais globais utopias de sempre, pois abarcava toda humanidade e fazia do planeta terra no seu todo o palco da sua realização. Por isso, este estudioso francês afirmou que o projeto de Quinto Império de Vieira foi precursor da ONU erguida no século XX.

 

As cartas de Vieira foram todas publicadas nos cinco volumes da Espitolografia ou foram encontradas outras?

Publicámos mais de 100 cartas inéditas ou parcialmente inéditas. Algumas estavam em latim por traduzir e editar. Todas foram levantadas, transcritas, traduzidas e editadas nesta obra completa. Até mesmo as cartas e outros textos apócrifos estão editados em anexo nos volumes respetivos.  

 

O volume 3 do tomo IV reúne os escritor de Vieira sobre os índios. A posição de Vieira sobre as tribos indígenas do Brasil era bastante progressistas para a época. Qual é o aspecto mais marcante da relação entre Vieira e os nativos, na sua opinião?

           

Vieira um pensador precursor, avant la lettre, na linha dos pensadores chamados da Escola de Salamanca ou bem cognominada Escola Ibérica da Paz,  como Francisco Suarez e Domingo Sotto. Este grupo de pensadores foram precursores de uma reflexão que favoreceu a assunção de uma consciência moderna  em favor de um novo humanismo, à luz de um direito universal de fundo jusnaturalista, para a globalização das relação entre os povos em curso. Podemos mesmo designar esta reflexão uma espécie de proto-proclamação dos direitos humanos sem que assim fossem designados.

Nesta linha, não só valorizou tanto a soberania simbolizada na coroa de penas de um chefe de uma nação ameríndia em comparação com a soberania tutelada por um monarca coroado de ouro, como defendeu a humanização do trabalho Manuel, do operariado do seu tempo, que eram as comunidades de escravos negros e índios que gemiam sob o chicote dos senhores.  No Voto do Padre António Vieira sobre as dúvidas dos moradores de São Paulo acerca da administração dos Índios data de 1694, na sequência de um forte debate sobre a liberdade e autonomia política das nações ameríndias, em que interveio, é peremptório no seu parecer que destoava da opinião dominante na sociedade colonial do tempo:  

“O que não são, sem embargo de tudo isto, é que não são escravos, nem ainda vassalos. Escravos não, porque não são tomados em guerra justa; e vassalos também não, porque assim como o espanhol ou genovês cativo em Argel é  contudo vassalo do seu rei e da sua república, assim o não deixa de ser o índio, posto que forçado e cativo, como membro que é do corpo e cabeça política da sua nação, importando igualmente para a soberania da liberdade tanto a coroa de penas como a de ouro, e tanto o arco como o cetro.” 

Por seu lado, ao ousar comparar o sacrifício dos escravos aos supremo sacrifício de Cristo no calvário, exarou uma crítica forte às condições sub-humanas a que estavam votadas as populações escravas.  Fez da escravatura uma alegoria atualizada do calvário. Ousa comparar as chagas dos escravos às chagas de Cristo ou mesmo as chicotadas dadas aos escravos às chicotadas dados pelos soldados romanos a Cristo.

Num dos seus célebres sermões antiesclavagistas feitos a uma Irmandade dos Pretos, Vieira interroga esta tamanha experiência de desigualdade e desfavor humanos: “Os Senhores poucos, os Escravos muitos; os Senhores rompendo galas, os Escravos despidos, e nus; os Senhores banqueteando, os Escravos perecendo à fome; os Senhores nadando em ouro, e prata, os Escravos carregados de ferros; os Senhores tratando-os como brutos, os Escravos adorando-os, e temendo-os, como Deuses; os Senhores em pé apontando para o açoite, como Estátuas da soberba, e da tirania, os Escravos prostrados com as mãos atadas atrás como Imagens vilíssimas da servidão, e Espetáculos da extrema miséria. […] Estes homens não são filhos do mesmo Adão, e da mesma Eva? Estas Almas não foram resgatadas com o sangue do mesmo Cristo? Estes corpos não nascem, e morrem, como os nossos? Não respiram com o mesmo ar? Não os cobre o mesmo Céu? Não os aquenta o mesmo Sol? Que estrela é logo aquela, que os domina, tão triste, tão inimiga, tão cruel?”

Na sequência, ousa comparar as correntes, as chagas, os açoites impostos aos escravos àqueles que foram infligidos a Cristo no seu Calvário. Nesta cristificação dos escravos, sacrificados como o Redentor do mundo, não pode deixar de ser vista, no contexto mental do tempo apesar de Vieira não chegar a defender o fim da escravatura negra mas apenas da ameríndia, como uma corajosa defesa de humanização deste ambiente laboral que também chegou a comparar a um autêntico inferno e a conferi-lhe sentido espiritual.

Aos que garantiam o sustento material dos sectores superiores da sociedade e eram o motor da economia social do tempo, Vieira exigia um tratamento digno da parte dos que eram mais oprimidos pelo trabalho duro. Ao mesmo tempo, procurava imprimir um sentido transcendente ao sacrifício das massas anónimas de escravos que viviam sem liberdade e sem as comodidades e respeito dos homens livres. As analogias e as metáforas, tendo por referência Cristo ou os santos mártires são uma estratégia para fazer uma leitura espiritual deste esforço humano aparentemente sem sentido e contraditório com o ideal de sociedade cristã. Aqui podemos encontrar em  Vieira a proposta de uma espiritualidade laboral, ou melhor, uma  espiritualidade do serviço.

Embora não descurasse nem tivesse em conta a importância da prática da escravidão para as economias coloniais das várias potência europeias em concorrência, chegou avançar com a proposta de abolição da escravatura a começar pela escravatura ameríndia, embora condescendendo, em nome do seu realismo política, com a manutenção como um mal menor da escravatura dos negros afrodescendentes.

 

E no volume II do IV tomo da Obra Completa editaram-se os escritos sobre os Judeus e a Inquisição com inéditos também. 

Vieira defendeu maior equidade social, exigindo, entre outras reformas, o fim da descriminação entre cristãos-velhos e cristãos novos, que estatuía uma desigualdade de tratamento no acesso a cargos, a regalias e a  outros direitos sociais. Assim escreve Vieira em Proposta que fez ao Rei Dom João IV a favor da gente de Nação: “que não haja divisão nem distinção entre cristãos-velhos e cristãos-novos, nem quando ao nome, nem quanto aos ofícios e isenções, por ser esta divisão causa de grandes danos, assim públicos, como  particulares (...).”

Em linguagem do nosso dias, Vieira combateu a existência de cidadãos de primeira e cidadãos de segunda categoria com tratamento diferenciado e discriminação negativa de uns em relação aos outros.

Usando do seu magistério crítico destemido fez do Tribunal do Santo Ofício o seu principal inimigo. Fez um análise muito severa dos estilos de atuar da Inquisição e propõe um reforma das práticas judiciais deste tribunal, em particular a proteção dados aos denunciantes pela capa do anonimato e o confisco prévio dos bens dos acusados antes de qualquer  julgamento.

Sob pena de ser acusado de amigos de judeus e judaizante numa sociedade marcada por uma mentalidade antijudaica dominante, Vieira lamentou a expulsão dos Judeus de Portugal, dispensando perdulariamente uma das elites mais empreendedoras do ponto de vista económico em benefício de países que os acolheram e dos quais beneficiavam para se tornarem ricos e novos potência ameaçadoras como era o caso da Holanda. Não teve dúvidas, por isso, em advogar o seu regresso às terras lusitanas para que Portugal pudesse voltar a contar com esta comunidade geradora de riqueza para tornar o país mais forte num tempo de verdadeira emergente em que se encontrava que era o tempo da restauração da afirmação da independência face a Espanha. As proposta de Vieira bem aceites pelo Rei D. João IV acabaram por ser torpedeados pela Inquisição. Só um século depois o Marquês de Pombal com força a do poder absoluto de que dispunha pôs fim a este desigualdade no século das Luzes. Neste e noutros aspectos Vieira, por mais estranho que parece, foi percursor do Marquês de Pombal!

 

Como foi desta vez possível cumprir o que muitos tentaram várias vezes durante quase 200 anos sem sucesso? 

Com o meu colega Professor Pedro Calafeta que codirigiu este projeto comigo, aprendi muito com o conhecimento da história desses projetos anteriores coordenados por estudiosos de grande mérito. 

Projetos desta dimensão exigem um financiamento significativo e a reunião de equipas de investigadores qualificados em várias áreas e de vários países, assim como exigem um entendimento de base quanto a metodologias a respeitar e prazos a cumprir.

A dimensão do legado pluriforme dos escritos de Vieira e a sua dispersão em diferentes arquivos e bibliotecas de Portugal e do estrangeiro abrigava a recrutar, de facto, uma grande e qualificada equipa de carácter interdisciplinar  para realizar o seu levantamento sistemático e exaustivo em ordem ao seu subsequente tratamento pré-editorial e editorial.

Em vez de apostarmos numa pequena equipa, como aconteceu com os projetos anteriores, decidimos reunir uma grande equipa de mais de meia centenas de investigadores e especialistas em estudos vieirinos e áreas afins, fundamentalmente de universidades portuguesas e brasileiras, que aceitaram o desafio de trabalhar em conjunto, de forma concertada, dos dois lados do atlântico para levar a bom termo este projeto. Além do concerto de vontades e de métodos conseguido em intensivas reuniões de trabalho, foi necessário garantir um financiamento suficiente. Primeiro conseguimos pequenos apoios de alguns instituições beneméritas, mas que estavam a ser manifestamente insuficientes na fase de arranque do projeto, correndo o risco de fazer perigar o andamento da obra. Até que a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, na pessoa do seu Provedor Dr. Pedro Santana Lopes, decidiu, com uma extraordinária visão e sensibilidade, tornar-se mecenas principal e dar o apoio decisivo  e substancial para que este projeto fosse bem sucedido. Assim aconteceu. As pessoas que já estavam a trabalhar no projeto estiveram à altura de corresponder à confiança depositada através de um financiamento suficiente para que o projeto não deixasse de se concretizar-se por falta de recursos financeiros, como tinha acontecido nos noutros casos.

Por seu lado, também foi academicamente importante o apoio institucional da Universidade de Lisboa na pessoa do seu Reitor, António Sampaio da Nóvoa, e continuado pelo atual, António Cruz Serra, que colocaram este projeto sob a égide desta universidade onde decorria o projeto num dos seus maiores centros de investigação em humanidades: O Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias. Não menos relevante foi a disponibilidade revelada pelo Círculo de Leitores para apostar num projeto editorial desta grandeza e complexidade em tempo de grave crise no mundo editorial português, arriscando editar 30 volumes de um clássico do século XVII sem a certeza do sucesso do bom acolhimento dos leitores, que depois veio na verdade a verificar-se.

 

Quais as maiores dificuldades que enfrentaram e que estratégias usaram para que o projeto fosse bem sucedido e os prazos rigorosamente cumpridos? 

De algum modo, na condução do projeto preparatório da edição da obra completa experimentámos o melhor e o pior daquilo que Vieira diagnosticava em Portugal. Este projeto de Vieira tem sido para nós de algum modo uma metáfora de Portugal.

Vieira foi um empreendedor que tinha ideias claras e propostas concretas para operar reformas sociais e, acima de tudo, na mentalidade portuguesa, na sua dimensão mais atávica e imobilista que afetava negativamente as lideranças institucionais e políticas do nosso país marcado por práticas e protocolos “feudais”. Lamentava-se de que sempre que alguém em Portugal tentava fazer obra grande vinham logo as vozes da derrota maquinar para abatê-la. Assim como a última palavra dos Lusíadas é a “inveja” também Vieira nos  seus diferentes sermões, nomeadamente nos que dedica a Santo António, faz diagnósticos pertinentes e argutos, que ainda são atuais em muito aspectos. Acusava os protocolos feudais que aprisionam as nossas instituições, contrapondo que a verdadeira fidalguia está na ação; criticava a desvalorização que é feita em Portugal dos seus talentos e dos seus valores, sendo mais fácil quem nasce nesta terra encontrar reconhecimento e valorização no estrangeiro; acusava a mesquinhez e a maledicência sistemática que dificulta e desestimula quem empreende e faz o que deve ser feito. Vieira sofreu tudo isto na pele e, conhecendo outros países por onde viajou, condoía-se com o seu país que apelidava de “seminário de luz”, de canteiro de talentos, mas que era uma pátria boa para nascer, mas menos boa para permanecer. “Para nascer, Portugal, para morrer, o mundo”.

Por isso, enfrentámos na realização desta obra alguns “trabalhos de Hércules” e de outros figuras mitológicas para que fosse bem sucedida, como acontece muitas vezes quando nos abalançamos a fazer alguma coisa de relevante em Portugal. Tivemos que enfrentar a Hidra da maledicência, o Minotauro das precedências e antecedências académicas,  a inércia dos bois de Gerião, o Leão do (in)cumprimentos dos prazos, o cão dos que não tendo feito obra nem querendo que seja feita, tentaram que ela se não fizesse. Acresce a isto o desafio maior que se enfrenta em Portugal quando os projetos dão certo: fazer o trabalho de Perseu, ou seja, cortar a cabeça da Medusa da inveja que tenta petrificar os que acreditam que vale a pena lutar pela cultura do nosso país.

Fundamental foi animar sempre os membros da equipa para manter a constância e fazer acreditar que os objetivos e as etapas iriam ser cumpridas em grande sintonia nos dois lados do  atlântico onde trabalhava a equipa luso-brasileira em ligação permanente.

 

 A coordenação da equipa implicou muitas negociação e acompanhamento? 

Houve aquilo que eu chamo uma epopeia de diálogos! Foi preciso ouvir muitas sugestões e depois negociar as tarefas e funções que caberia a cada membro da equipa no quadro dos diferentes volumes e respetivas áreas de saber. Não foi fácil, pois havia diferentes formas de ver o modo de levar a efeito este trabalho, assim como havia áreas e volumes da obra de Vieira preferidos por vários membros da equipa em simultâneo e outros menos apetecíveis que poucos queriam trabalhar. Com paciência, resiliência e bom senso tudo se conduziu a bom porto.

 

Houve setores e investigadores mais decisivos? 

A grande dificuldade que obrigou a um trabalho demorado de negociação para que se conseguisse um consenso fundamental foi a definição dos critérios de fixação dos textos e a sua moderada atualização a contento dos membros portugueses e brasileiros da equipa. Aqui o papel da nossa competentíssima supervisora linguística, Aida Sampaio Lemos,  foi decisivo.  Exigente e demorado foi o trabalho levado a cabo pelo nosso grupo de paleógrafas e paleógrafos no processo de transcrição dos manuscritos e a aferição da letra e letras de Vieira e dos textos apógrafos, supervisionado a par e passo por dois muito competentes colegas Joana Balsa de Pinho e Ricardo Ventura. Outra tarefa que exigiu muito rigor e competência especial passou pelo trabalho de tradução dos textos do latim para o português pelo grupo de latinista coordenado por José Carlos Lopes de Miranda, exímio tradutor e conhecedor do background cultural que este trabalho exige.

 

Havia muita documentação dispersa por vários países? 

Muitíssima! Os textos dos Vieira encontram-se em vários arquivos e bibliotecas públicas e privados de Portugal, mas também do Brasil, dos Estados Unidos da América, do México, da Espanha, da França, da Itália, de Inglaterra, etc. Foi preciso percorrer uma diversidade de fundos documentais para ficarmos com a certeza de que tínhamos vasculhado tudo e que a obra que agora publicamos é a mais completa que até hoje foi publicada de Vieira.

 

Encontraram alguma dificuldade na consulta dos arquivos? 

Não tivemos qualquer entrave à consulta dos arquivos onde quisemos pesquisar e transcrever os testemunhos mais antigos da obra de Vieira.

 

Esta é mesmo a obra completa de Vieira, finalmente? 

Estamos convictos de que fizemos tudo  o que estava ao nossa alcance para reunir e publicar a Obra Completa de Vieira. Esta é certamente a mais completa de acordo com o estado atual da investigação. Todavia, a pesquisa deve continuar, como é apanágio da investigação científica nesta como noutras áreas, aliás, como escrevemos na nota final que encerra o volume 30 da obra completa: 

“Terminamos aqui a edição dos resultados deste imenso trabalho feito, mas não termina com esta publicação o nosso intento de pesquisa continuada dos escritos de Vieira. Durante a realização das próximas fases do projeto “Vieira Global” com a elaboração do Dicionário do Padre António Vieira e das traduções da sua Obra Seleta noutras línguas, será nossa obrigação continuarmos a investigação. Esta obra deixará de ser completa quando encontrarmos novos escritos de Vieira. Se tal acontecer, à luz do nosso ideário de trabalho de investigação progressivo e de atualização permanente, fica o nosso compromisso de preparar novas publicações em adenda a esta obra ou incorporando textos desconhecidos nos volumes depois de feitos acertos adaptativos do nosso plano de obra completa”. 

 

Não temeram, no andamento do projeto, que outros o fizessem primeiro que vós? 

Não tememos porque já tinha havido tentativas nesse sentido, mas sem o resultado pretendido por falta de recurso suficientes e de um plano concertado e eficaz.

Com efeito, o projeto de publicação da obra de Vieira já tinha sido ensaiado em vários países além do nosso, a saber, na Alemanha, no Brasil e em Itália. Todavia, não tiveram sequência. Apenas se publicaram alguns textos ou então os projetos ficaram pelo anúncio das suas boas intenções. De qualquer modo, o facto de ter havido um número significativo de projetos de edição de Vieira em vários países revela a importância deste autor e a consciência da necessidade de se fazer este trabalho de casa essencial que era publicar de forma sistemática e total os seus escritos de modo a tornar acessível ao grande público a grandeza  de uma obra que se sabia que era grande em profundidade e em volumetria.

Mas, em nosso entender, bom seria que aparecessem mais equipas e projetos para editar Vieira em diferentes formatos e à luz de outros critérios, como já se fez com grandes nomes da literatura europeia. A concorrência aqui como noutros campos é saudável. Na cultura como na política o que é mau e ostracizante é o “orgulhosamente sós”. Portanto, o nosso desejo é que outros possam fazer mais e melhor.  Nós apenas fizemos o que devia ser feito e que, gravemente, ainda não o tinha sido: o trabalho de casa de editar pela primeira vez a obra total de Vieira. Quem nos dera que outros continuem...

 

É verdade que tiveram de traduzir milhares de páginas de Vieira escritas em Latim? 

Obra inteiras como a A Chave dos Profetas, diversas cartas, poesias, pequenos tratados, além de citações e outros dizeres em latim que povoam toda a obra de Vieira obrigaram a um trabalho de transcrição e tradução intensivo que, na contagem global, ultrapassam as 3 mil páginas.  É uma das mais-valias desta obra, que além de ser completa, apresenta todos os textos de Vieira escritos noutras línguas (latim, espanhol e italiano) vertidos em português. É também uma extraordinárias mais-valia o imenso trabalho feito de anotação crítica que se expressa nos muitos milhares de notas explicativas de termos, conceitos e acontecimentos que hoje são desconhecidos do leitor não especializado. Assim, esta obra completa agora cabalmente editada, sem perder o rigor e a fidelidades às fontes primeiras, torna os escritos de Vieira acessíveis e compreensíveis para o grande público.

 

Em que aspetos Vieira ainda é atual?

Em muitos aspetos! Os textos de Vieira ainda revelam uma grande atualidade, por exemplo, no plano da sua reflexão sobre a coerência entre Fé e Vida, sobre os Direitos Humanosa paz, o ecumenismo, a crítica à corrupçãoo diagnóstico que faz aos problemas estruturais perenes de Portugal, as soluções que apresenta para tornar o nosso país mais empreendedor, assim como a sua crítica às instituições de bloqueio do nosso progresso como o caso da Inquisição, além da análise certeira que realizou à mentalidade atávica portuguesa, como a inveja, a maledicência sistemática e a falta de incentivo político e social aos portugueses com talento e mérito, que muitas vezes têm de sair da sua pátria para encontrar reconhecimento e espaço para pôr a render as suas competências.

 
 
 
 
Uma obra há muito esperada - A Obra Completa do PADRE ANTÓNIO VIEIRA oferecida ao Papa Francisco
JOSÉ EDUARDO FRANCO é ensaísta e historiador.