Em julho de 1997 foi promovida na Assembleia da República uma cerimónia
homenagem, unanimemente aplaudida por todos os partidos, ao Padre António
Vieira no quadro da comemoração do terceiro centenário da sua morte.
Discursaram membros de todos dos partidos com assento parlamentar, assim
como o Presidente da Assembleia da República e o Presidente da República,
louvando em uníssono o alto legado literário e o arguto pensamento de uma
génio que tinha sido no século XVII pregador real, embaixador e
conselheiro de Estado de Portugal. Muitas figuras ilustres,
nesse ano de homenagem de depois repetido em 2008 com diversas
iniciativas comemorativas do quarto centenário do seu nascimento,
reclamaram a urgência de ser concretizado definitivamente o projeto de
edição da Obra Completa de Vieira, a importância que teria lhe ser
edificada uma estátua em Lisboa e ainda lhe ser dedicada uma grande
avenida da capital portuguesa. Passaram mais de 15 anos sobre estas
comemorações e pedidos insistentes. Cumpriu-se pelo menos uma das mais
graves lacunas da Cultura Portuguesa: preparou-se nos últimos anos e
publicou-se a totalidade todos os textos do Padre António Vieira em 30
grossos volumes numa edição sequencial em Portugal e no Brasil.
“Vieira Global” é como que se intitula o gigantesco projeto de
investigação liderado pelo CLEPUL da Faculdade de Letras da Universidade
de Lisboa para disponibilizar ao grande público a obra toda e o
conhecimento nacional e internacional do legado intelectual do Padre
António Vieira. O volumoso resultado da primeira fase deste projeto em 30
volumes, levada a cabo e
concluída em tempo recorde por uma equipa luso-brasileira de especialistas
e investigadores, foi razão para a Reitoria da Universidade de Lisboa e o
Reitor em exercício, António Cruz Serra, assim como o Reitor Honorário,
António Nóvoa, liderarem uma comitiva para oferecer esta
opera omnia ao Papa Francisco no
dia 4 de março deste ano com a realização nesse mesmo dia de uma sessão
solene de apresentação pública no Instituto Português de Santo António em
Roma.
Na verdade, o leitor amante da cultura, da criação literária, da ciência e
da beleza começa a dispor, a
partir de agora, da obra toda de um dos maiores e mais proficientes
oradores e escritores da Língua Portuguesa de todos os tempos.
O pregador, o conselheiro régio, o diplomata e o missionário jesuíta Padre
António Vieira contribuiu para aperfeiçoar, de forma significativa,
a língua portuguesa nos diferentes usos que fez da nossa língua ao
longo do século XVII em que viveu e encheu com as seus altos ideais e ação
apaixonada.
A preparação cuidada e sistemática da obra completa do Padre António
Vieira tem sido reivindicada e tentada desde há mais de século e meio por
estudiosos importantes da vida e do pensamento deste orador
luso-brasileiro.
Na verdade, não se pode avançar com estudos abrangentes sobre a
complexidade de uma vida e de uma obra tão vasta como a de Vieira sem
primeiro realizar o trabalho preliminar e essencial de levantamento e
edição total do legado escrito que chegou até nós e que se encontra
disperso por muitos arquivos e bibliotecas portuguesas, brasileiras e de
outros países, onde a produção escrita deste autor encontrou acolhimento.
Projetos desta dimensão exigem um financiamento significativo e a reunião
de equipas de investigadores qualificados em várias áreas e de vários
países, assim como exigem um entendimento de base quanto a metodologias a
respeitar e prazos a cumprir.
A dimensão do legado pluriforme dos escritos de Vieira e a sua dispersão
em diferentes arquivos e bibliotecas de Portugal e do estrangeiro obrigada
a recrutar, de facto, uma grande e qualificada equipa de carácter
interdisciplinar para realizar
o seu levantamento sistemático e exaustivo em ordem ao seu subsequente
tratamento pré-editorial e editorial.
Em vez de apostarmos numa pequena equipa, como aconteceu com os projetos
anteriores, decidimos reunir uma grande equipa de mais de meia centenas de
investigadores e especialistas em estudos vieirinos e áreas afins,
fundamentalmente de universidades portuguesas e brasileiras, que aceitaram
o desafio de trabalhar em conjunto, de forma concertada, dos dois lados do
atlântico para levar a bom termo este projeto. Além do concerto de
vontades e de métodos conseguido em intensivas reuniões de trabalho, foi
necessário garantir um financiamento suficiente. Primeiro conseguimos
pequenos apoios de alguns instituições beneméritas, mas que estavam a ser
manifestamente insuficientes na fase de arranque do projeto, correndo o
risco de fazer perigar o andamento da obra. Até que a Santa Casa da
Misericórdia de Lisboa, na pessoa do seu Provedor Dr. Pedro Santana Lopes,
decidiu, com uma extraordinária visão e sensibilidade, tornar-se mecenas
principal e dar o apoio decisivo
e substancial para que este projeto fosse bem sucedido. Assim
aconteceu. As pessoas que já estavam a trabalhar no projeto estiveram à
altura de corresponder à confiança depositada através de um financiamento
suficiente para que o projeto não deixasse de se concretizar-se por falta
de recursos financeiros, como tinha acontecido nos noutros casos.
Por seu lado, também foi academicamente importante o apoio institucional
da Universidade de Lisboa na pessoa do seu Reitor, António Sampaio da
Nóvoa, e continuado pelo atual, António Cruz Serra, que colocaram este
projeto sob a égide desta universidade onde decorria o projeto num dos
seus maiores centros de investigação em humanidades: O Centro de
Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias. Não menos relevante foi a
disponibilidade revelada pelo Círculo de Leitores para apostar num projeto
editorial desta grandeza e complexidade em tempo de grave crise no mundo
editorial português, arriscando editar 30 volumes de um clássico do século
XVII sem a certeza do sucesso do bom acolhimento dos leitores, que depois
veio na verdade a verificar-se.
Oferecer ao grande público a obra completa dos criadores maiores que foram
construtores da nossa língua e da nossa cultura, dos que geraram o que há
de melhor no património imaterial das nossas comunidades de destino que se
expressam em língua portuguesa constitui um dos serviços mais importantes
à história literária de povos unidos pelo extraordinário veículo de
modelação identitárias e de criação de
afinidades e proximidades que é, com efeito, uso de uma língua
comum.
Vieira e a sua obra são um símbolo poderoso da força unitiva de uma
língua e do poder performativo, ou seja, criador e transformador da
Palavra dita e escrita. É Vieira “esse povo de palavras” (1) e toda
riqueza do seu legado definido magistralmente nesta muito significativa
expressão, que colocamos à nas mãos dos leitores numa edição de grande
dimensão.
A presente publicação cumpre um ideário de serviço à cultura e à
língua do mundo lusófono, mas também atende ao desejo de muitos
admiradores e cultores da obra de Vieira que, desde o tempo deste autor,
procuraram dar ao prelo a sua obra. A publicação dos escritos de Vieira
permitirão conhecer melhor aspectos da história e do pensamento do século
XVII, mas também os trânsitos da vida plurifacetada deste membro da
Companhia de Jesus na relação com a vida, as grandes questões e o
pensamento do seu tempo. (2)
Dele escreveu impressionado Álvaro Dória para afirmar que Vieira
representa por antonomásia o conturbado e ao mesmo tempo fascinante século
XVII: "Quando penetramos no estudo da história do século XVII português,
tão contraditoriamente
considerado por historiadores e pensadores, uma figura há que avulta
imediatamente aos nossos olhos, majestosa e absorvente: o Pe. António
Vieira. Efetivamente ele encheu aquele século; podemos aventar que ele é o
seu século, e também que este se encontra inteiro no grande Jesuíta." (3)
Vieira foi grande como eram as representações dos modelos feitas do homem
barroco. Foi excessivo, desmesurado tanto nas suas ideias e projetos como
até nas suas contradições. Mas também, no juízo de muitos, ressalta a
percepção de que o século português de seiscentos não esteve à altura do
seu génio incompreendido e, não poucas vezes, perseguido, ameaçado, preso
e condenado.
Os textos de Vieira ainda revelam uma grande atualidade, por exemplo, no
plano da sua reflexão sobre a coerência entre Fé e Vida, sobre os Direitos
Humanos, a paz, o
ecumenismo, a crítica à
corrupção, o diagnóstico
que faz aos problemas estruturais perenes de Portugal, as soluções
que apresenta para tornar o nosso país
mais empreendedor, assim como a
sua crítica às instituições de bloqueio do nosso progresso como o
caso da Inquisição, além da
análise certeira que realizou à mentalidade
atávica portuguesa, como a inveja, a maledicência sistemática e a falta de
incentivo político e social aos portugueses com talento e mérito, que
muitas vezes têm de sair da sua pátria para encontrar reconhecimento e
espaço para pôr a render as suas competências.
J. E.
Franco
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(1) Expressão utilizada pelo Presidente da República Portuguesa,
no discurso de homenagem a Vieira aquando das comemorações do III
Centenário da Morte de Vieira promovidas pela Assembleia da
República Portuguesa: “Em Vieira, no princípio, era o verbo e, no
fim, será ainda o verbo. Ele habitará sempre esse povo de palavras
com as quais confundiu a vida e fez a obra. É nelas – e não na
ordem do político, como alguns pensam – que as suas palavras se
cumprem. Esse império discursivo, essa catedral verbal, esse
teatro de eloquência, esse prodígio de ‘engenharia sintáctica’,
essa ‘grande certeza sinfónica’, como disse Fernando
Pessoa/Bernardo Soares, permanecerá como um monumento de palavras
que desafiará o tempo e a passagens dos homens. A obra de António
Vieira é, se será sempre, por isso, a confirmação da grandeza de
Portugal”. Atas da
Reunião Plenária de 18 de Julho de 1997, “Sessão Solene Evocativa
dos 300 Anos da Morte do Padre António Vieira”, in
Diário da Assembleia da
República, 2ª Sessão Legislativa, 19 de Julho de 1997, p.
3555.
(2)
Cf. Pedro Calafate, Da origem popular do Poder ao Direito de Resistência: Doutrinas
políticas no século XVII em Portugal, Lisboa, Esfera do Caos,
2012, p. 208 e ss.
(3)
A. Álvaro Dória, "António Vieira no seu Tempo", in
Revista Ocidente, Vol.
LXI, 1961, p. 101.
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