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.JOSÉ EDUARDO FRANCO
O CRISTIANISMO E O PROGRESSO
A Resposta de D. António da Costa a Antero de Quental
 
Considerações preliminares
 

O séc. XIX pode ser considerado um dos séculos, de que há memória, que mais espantou a humanidade em termos de inovação e progresso pelo uso cada vez mais febril das possibilidades da razão humana. Se é verdade que os homens de Oitocentos lançaram as bases e abriram caminho para o espectacular progresso científico e tecnológico que se regista actualmente, não é menos verdade que no mesmo século nasceram as mais controversas ideologias, as mais irreverentes correntes de pensamento que devastaram, em grande medida, os valores sacrossantos da cristandade e abalaram os bastiões que asseguravam a organicidade do tecido social informado pela mundividência definida pela teologia judeo-cristã.

A Revolução Francesa inaugurou uma nova era norteada por valores que se diziam opostos aos valores tutelados pela Igreja Católica. De facto, à revolução política que a Revolução Francesa começou por ser, sucederam uma série de revoluções nos campos cultural, social e até religioso. E também não restam dúvidas que a Igreja Católica foi a grande vítima destas revoluções porque identificada como aliado e legitimadora do Antigo Regime deposto a seguir à tomada de Bastilha. "Liberdade, igualdade e fraternidade: com esta trilogia, os deputados franceses de 1789 substituíram a velha monarquia absoluta por um regime constitucional, em que o poder viria do povo através dos seus representantes e em que à liberdade política se juntariam a de pensamento, de escrita e de crença; em que os homens se distinguiriam apenas pelas próprias virtudes cívicas; e em que a solidariedade brotaria espontaneamente do coração dos homens livres (1)". Efectivamente, como bem destaca Manuel Clemente, a liberdade era considerado o valor supremo que conduziria todo o agir humano quer no plano individual quer no plano social. A este valor de contornos quase míticos, juntar-se-ia outro que, sendo mais o resultado do esforço da criatividade humana, se tornará um valor de importância obrigatória: o progresso.

A liberdade aliada ao progresso são dois conceitos emblemáticos do séc. XIX que desencadearam uma forte e longa controvérsia em torno e no próprio seio da Igreja pouco preparada para dialogar com as realidades novas que despontavam tão vertiginosamente na sociedade de então. Por outro lado, a Igreja acostumada que estava a ser a grande definidora da conduta dos homens e das sociedades sentia-se lesada com a reivindicação destes valores novos considerados, pelos seus jerarcas, como perigosos para a secular tradição cristã e para a sobrevivência da própria instituição eclesial. Daí que a reacção oficial à então chamada civilização moderna foi altamente condenatória e antematizante. A publicação em 1864 da carta encíclica Quanta Cura e do seu célebre apêndice conhecido pelo nome de Syllabus errorum, que enumerava os ditos erros modernos para condená-los, são bem a expressão da intolerância do magistério eclesiástico em relação à possibilidade de consenso com a modernidade, ou melhor, da dificuldade deste magistério lidar com os novos desafios que os diferentes modos de pensar, estar e de olhar a relação dos homens entre si e com o transcendência impunham à Igreja (2).

Este breve estudo situa-nos no mar alto desta polémica acesa do século XIX entre a Igreja e o mundo moderno. Chamo à colação um intelectual católico interessante do panorama cultural de Oitocentos, figura que considero relevante a vários títulos pela profundidade do seu pensamento, pela vastidão da sua cultura, pela sua militância católica, pela sinceridade da sua fé e pelo significado da sua intervenção política. Trata-se de D. António da Costa, um católico liberal, que de uma forma muito subtil e com audácia intelectual, tentou ensaiar a conciliação teórica entre o cristianismo e o progresso. Ele tentou encetar este diálogo que intuiu ser decisivo entre a religião cristã e os valores novos do progresso moderno.

D. António da Costa e o seu pensamento é bem o reflexo da sua época e merece ser muito mais conhecido e reconhecido.

 
 

(1) Manuel Clemente, "Os católicos portugueses e os príncipios de 89", in Communio , 3, 1989, pp. 251-264.

(2) Cf. António Matos Ferreira, "A constitucionalização da religião", in Carlos Moreira Azevedo (dir.), História Religiosa de Portugal, Vol. 3, Lisboa, Círculo de Leitores, 2002, p. 40.