As extraordinárias descobertas científicas até então nunca vistas em tal dimensão deixaram muitas inteligências deslumbradas. Vários literatos e homens bem pensantes passaram a tecer os maiores elogios à ciência e a depositar nela a maior confiança. "No limite, a ciência substitui a religião. Institui-se, ela própria, como religião. É assim que o zoólogo alemão Ernst Haekel, inspirado nos trabalhos de um Lavoisier, de um Robert Mayer, de um Darwin, tenta criar uma 'religião laica' que sintetizaria as leis da conservação da matéria, da conservação da energia, da evolução das espécies. É assim que o físico e académico francês Leprince-Ringuet define o cientista como uma espécie de 'padre laico', também ele habilitado a transpor a barreira que repara a aparência da essência, também ele um contemplativo, também ele investido de um missão espiritual. Entre a vocação científica e a vocação religiosa - assegura Leprince-Ringuet em Les Rayons cosmiques (Paris, Albin Michel, 1945) - há diversos pontos comuns, nomeadamente, a esperança e o desejo de descobrir, de levantar um pouco mais o véu da oculta criação" (1).
Com efeito, um número significativo de intelectuais e gente ligada ao campo do conhecimento vão abandonar a religião tradicional em nome do iluminismo, do racionalismo, do panteísmo, do ateísmo e de muitos outros ísmos em voga nesta época e transferem a sua fé religiosa para a ciência e para o poder da razão humana, vistas agora como as tábuas de salvação da humanidade. As ideologias sociais, políticas e económicas começaram a despertar os maiores entusiasmos e esperanças. Acreditava-se no advento da humanidade perfeita, da sociedade sem defeitos, na solução de todos os problemas dos homens. As ideologias assumiam características religiosas para aqueles que diziam que os homens não precisavam da religião. Antero de Quental ilustra-nos bem esse ambiente intelectual:
"Quem é o moderno estado-livre? A ciência do poder. Quem é o mundo-económico? A ciência social. Quem são essas máquinas, essas fábricas, o vestido que nos cobre, o pão que nos alimenta, o trem que nos leva, a vida nos seus mais pequenos detalhes? A ciência industrial... O céu, se o queremos ver, aprofundar-lhe os mistérios, ler-lhe a palavra soberana traçada nesse espaço pelo dedo de Deus em letras harmoniosas de luz, quem nos aponta o céu, o explica, nos ergue a face para cima, senão a ciência, divina só por si mais do que mil teologias, a Astronomia? E esse outro céu realizado na terra, o belo, quem nos faz brilhar ante os olhos da alma os seus astros de poesia senão a Arte, a ciência da beleza? Em vão estendo as mãos para todos os lados do horizonte: é sempre ela, é sempre o seu bafo doce e tépido que eu sinto refrescar-me a face. Ela é o mesmo ar da vida, a atmosfera moral do universo. " (2)
A Igreja Católica tornou-se o bode expiatório de todas as críticas do movimento liberal e progressista, pois era vista como uma instituição emblemática do Antigo Regime e símbolo do atraso das mentalidades. Deste modo, a intransigência de ambas as partes foi-se agudizando e os ataques mútuos demorarão décadas a apaziguar-se. Ainda hoje se notam os reflexos e os estilhaços das disputas entre religião e ciência, a um século de distância.
Ao passarmos os olhos pelas encíclicas de Pio IX Qui Pluribus e Quanta Cura , saídas a lume em 1846 e 1864 respectivamente, podemos coleccionar uma multidão de ideologias, correntes de pensamento e movimentos que pululavam nos mais diversos campos, a saber, o panteísmo, o naturalismo, o racionalismo absoluto (possibilidade do homem escolher a sua religião de acordo com a sua razão), indiferentismo, latitudinarismo, socialismo, comunismo, sociedades secretas, sociedades bíblicas, sociedades clérico-liberais, entre outras menos ou menos relevantes (3). É realmente este o cenário bem expressivo deste século, onde, em nome da liberdade, muitos homens navegaram ao sabor do seu pensamento.
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(1) José Rebelo, "Introdução", in O Regresso do Sagrado, Lisboa, Livros e Leitura, 1998, p. 8.
(2) Antero de Quental, Defesa da Carta Encíclica de Sua Santidade Pio IX contra a chamada opinião liberal, Coimbra, 1865, pp. 10-11.
(3) Cf. H. Denzinger, Enchiridion Symbolorum, Barcelona, 1946, pp. 477-490 |