"O Romano Pontífice pode e deve reconciliar-se e colaborar com o progresso, com o liberalismo e com a civilização moderna" (1). Assim termina o famoso apêndice da Encíclica Quanta Cura , um dos documentos mais controversos e que mais desilusão causou nas alas vanguardistas da sociedade europeia do tempo. O Syllabus é uma colecção dos erros modernos, apresentados numericamente numa lista sucinta e breve pelo Papa. O último foi a pedra de toque do documento. Para muitos foi o desencantar de todas as hipóteses de conciliação entre a Igreja e o progresso. Nos meios conservadores do catolicismo cantou-se o Te Deum e viram a ameaça do modernismo anatematizada. Por seu lado, aqueles católicos que tentavam um diálogo e um bom entendimento com os liberais, ficaram perplexos. Houve tentativas de fazer uma leitura menos radical deste último número do Syllabus como, por exemplo, o Bispo de Orleães, Mons. Dupanloup que publica um opúsculo para explicar que o Santo Padre se referia apenas àquele progresso que ponha em causa a Igreja e as verdades da fé.
O que é certo é que os liberais mais intransigentes não perdoaram ao Vaticano e insurgiram-se contra a Igreja acusando o seu anacronismo e até o perigo que esta representava para a sociedade moderna em evolução.
Em Portugal, conhecemos uma reacção que se tornou paradigmática da ala liberal contra a Igreja, encabeçada por Antero de Quental na sua célebre Defesa da Carta Encíclica de Sua Santidade Pio IX , onde ridiculariza, pelo recurso à ironia, a encíclica papal. Neste documento, podemos ver reflectida a adesão dos sectores do liberalismo progressita em relação à ciência e ao seu indefectível antagonismo em relação à Igreja Católica. Antero vê confirmadas as expectativas dos intelectuais que não acreditavam numa eventual mudança de posição da autoridade eclesiástica suprema em relação a um possível diálogo e conivência com a modernidade. Nesta linha, o poeta declara o irreconciliação e anúncia o cortejo fúnebre da Igreja considerada já bem moribunda:
"No meio das convulsões tumultuosas deste mar desconhecido da revolução social, que há um século nos agita em todos os sentidos, o mais revolucionário foi o Papa, nesta hora presente, o único talvez, porque foi ele quem achou a palavra da situação, a chave do grande enigma, a solução efectiva do problema moderno: o cristianismo e o mundo actual são incompatíveis e inimigos (...) A Igreja pode morrer agora, se é que Deus lhe tem contado os últimos dias, porque morre pobre e honrada. A sua mortalha será a melhor página da história deste século." (2).
Efectivamente, este documento pontifício veio alargar o abismo entre a Igreja e a sociedade de então na sua vertente vanguardista. Possivelmente, foi um erro táctico do Vaticano a publicação deste documento tão intransigente. Segundo a análise crítica de Giacanno Martina acerca do contexto eclesiológico em que foi gerado este documento, Pio IX foi mal aconselhado. O Papa estava rodeado de indivíduos pouco preparados para lidar com questões tão delicadas como as questões científicas, o que resultou em reacções irrefletidas com consequências nefastas até mesmo no campo diplomático. (3)
Este documento só contribuiu, de facto, para tornar mais sombria a imagem que os liberais já faziam da Igreja. Todavia, fica o mérito de uma tomada de posição firme da Igreja em relação a certas correntes que, realmente, eram incompatíveis com a mensagem veiculada pelo cristianismo e que eram, por seu lado, um atentado à dignidade humana. Foi isto que muitos católicos tentaram salvaguardar, perante os críticos, deste afastamento da Igreja em relação à civilização moderna. |
(1) "Romanus Pontifex potest ac debet cum progressu, cum liberalismo, et cum recenti civilitate sese reconciliare et componere." Ibidem , p. 490.
(2) Antero de Quental, op. cit., p. 25.
(3) Cf. G. Martina, Pio IX (1851-1866), Miscellanea Historiae Pontificiae 51, Roma, 1986, pp. 287-349. |