EÇA DE QUEIRÓS
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O Peixoto, sim - disse-me ele, olhando gravemente para mim. Veio casar a Vila Real como antigamente se ia casar à Andaluzia - questão de arranjar a fina flor da perfeição. - À sua saúde. Eu evidentemente constrangia-o, porque se ergueu, foi à janela com um passo pesado, e reparei então nos seus grossos sapatos de casimira, com sola forte e atilhos de couro. E saiu. Quando pedi o meu castiçal, a criada trouxe-me um candeeiro de latão lustroso e antigo e disse: O senhor está com outro. É no n.º 3. Nas estalagens do Minho, às vezes, cada quarto é um dormitório impertinente. Vá - disse eu. O n.º 3 era no fundo do corredor. Às portas dos lados os hóspedes tinham posto o seu calçado para engraxar: estavam umas grossas botas de montar, enlameadas, com esporas de correia; os sapatos brancos dum caçador; botas de proprietário, de altos canos vermelhos; as botas dum padre, altas, com a sua borla de retrós; os botins cambados, de bezerro, de um estudante, e a uma das portas, o n.º 15, havia umas botinas de mulher, de duraque, pequeninas e finas, e ao lado as pequeninas botas duma criança, todas coçadas e batidas, e os seus canos de pelica-mor caíam-lhe para os lados com os atacadores desatados. Todos dormiam. Defronte do n.º 3 estavam os sapatos de casimira com atilhos: e quanto abri a porta vi o homem dos canhões de veludilho, que amarrava na cabeça um lenço de seda: estava com uma jaqueta curta de ramagens, uma meia de lã, grossa e alta, e os pés metidos nuns chinelos de ourelo. O senhor não repare - disse ele. À vontade - e para estabelecer intimidade tirei o casaco. Não direi os motivos por que ele daí a pouco, já deitado, me disse a sua história. Há um provérbio eslavo da Galícia que diz: “O que não contas à tua mulher, conta-lo a um estranho, na estalagem”. Mas ele teve raivas inesperadas e dominantes para a sua larga e sentida confidência. Foi a respeito do meu amigo, do Peixoto, que fora casar a Vila Real. Vi-o chorar, àquele velho de quase sessenta anos. Talvez a história seja julgada trivial: a mim, que nessa noite estava nervoso e sensível, pareceu-me terrível - mas conto-a apenas como um acidente singular da vida amorosa... Começou pois por me dizer que o seu caso era simples - e que se chamava Macário. Perguntei-lhe então se era duma família que eu conhecera, que tinha o apelido de Macário. E como ele me respondeu que era primo desses, eu tive logo do seu caráter uma idéia simpática, porque os Macários eram uma antiga família, quase uma dinastia de comerciantes, que mantinham com uma severidade religiosa a sua velha tradição de honra e de escrúpulo. Macário disse-me que nesse tempo, em 1823 ou 33, na sua mocidade, seu tio Francisco tinha, em Lisboa, um armazém de panos, e ele era um dos caixeiros. Depois o tio compenetrara-se de certos instintos inteligentes e do talento prático e aritmético de Macário, e deu-lhe a escrituração. Macário tornou-se o seu guarda-livros. Disse-me ele que sendo naturalmente linfático e mesmo tímido, a sua vida tinha nesse tempo uma grande concentração. Um trabalho escrupuloso e fiel, algumas raras merendas no campo, um apuro saliente de fato e de roupas brancas, era todo o interesse da sua vida. A existência, nesse tempo, era caseira e apertada. Uma grande simplicidade social aclarava os costumes: os espíritos eram mais ingênuos, os sentimentos menos complicados. |