EÇA DE QUEIRÓS
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Jantar alegremente numa horta, debaixo das parreiras, vendo correr a água das regas - chorar com os melodramas que rugiam entre os bastidores do Salitre, alumiados a cera, eram contentamentos que bastavam à burguesia cautelosa. Além disso, os tempos eram confusos e revolucionários: e nada torna o homem recolhido, conchegado à lareira, simples e facilmente feliz - como a guerra. É a paz que, dando os vagares da imaginação - causa as impaciências do desejo. Macário, aos vinte e dois anos, ainda não tinha - como dizia uma velha tia, que fora querida do desembargador Curvo Semedo, da Arcádia - sentido Vénus. Mas por esse tempo veio morar para defronte do armazém dos Macários, para um terceiro andar, uma mulher de quarenta anos, vestida de luto, uma pele branca e baça, o busto bem feito e redondo e um aspecto desejável. Macário tinha a sua carteira no primeiro andar, por cima do armazém, ao pé duma varanda, e dali viu uma manhã aquela mulher com o cabelo preto solto e anelado, um chambre branco e braços nus, chegar-se a uma pequena janela de peitoril, a sacudir um vestido. Macário afirmou-se e sem mais intenção dizia mentalmente que aquela mulher, aos vinte anos, devia ter sido uma pessoa cativante e cheia de domínio: porque os seus cabelos violentos e ásperos, o sobrolho espesso, o lábio forte, o perfil aquilino e firme revelavam um temperamento ativo e imaginações apaixonadas. No entanto, continuou serenamente alinhando as suas cifras. Mas à noite estava sentado fumando à janela do seu quarto, que abria sobre o pátio: era em Julho e a atmosfera estava eléctrica e amorosa: a rabeca dum vizinho gemia uma xácara mourisca, que então sensibilizava, e era dum melodrama: o quarto estava numa penumbra doce e cheia de mistério - e Macário, que estava em chinelas, começou a lembrar-se daqueles cabelos negros e fortes e daqueles braços que tinham a cor dos mármores pálidos: espreguiçou-se, rolou mòrbidamente a cabeça pelas costas da cadeira de vime, como os gatos sensíveis que se esfregam, e decidiu bocejando que a sua vida era monótona. E ao outro dia, ainda impressionado, sentou-se à sua carteira com a janela toda aberta, e olhando o prédio fronteiro, onde viviam aqueles cabelos grandes - começou a aparar vagarosamente a sua pena de rama. Mas ninguém se chegou à janela de peitoril, com caixilhos verdes. Macário estava enfastiado, pesado - e o trabalho foi lento. Pareceu-lhe que havia na rua um sol alegre, e que nos campos as sombras deviam ser mimosas e que se estaria bem vendo o palpitar das borboletas brancas nas madressilva! E, quando fechou a carteira, sentiu defronte correr-se a vidraça; eram decerto os cabelos pretos. Mas apareceram uns cabelos louros. Oh! E Macário veio logo salientemente para a varanda aparar um lápis. Era uma rapariga de vinte anos, talvez - fina, fresca, loura como uma vinheta inglesa: a brancura da pele tinha alguma coisa da transparência das velhas porcelanas, e havia no seu perfil uma linha pura, como de uma medalha antiga, e os velhos poetas pitorescos ter-lhe-iam chamado - pomba, arminho, neve e ouro. Macário disse consigo: É filha. A outra vestia de luto, mas esta, a loura, tinha um vestido de cassa com pintas azuis, um lenço de cambraia traspassado sobre o peito, as mangas perdidas com rendas, e tudo aquilo era asseado, moço, fresco, flexível e tenro. Macário, nesse tempo, era louro com a barba curta. O cabelo era anelado e a sua figura devia ter aquele ar seco e nervoso que depois do século XVIII e da revolução - foi tão vulgar nas raças plebéias. |