EÇA DE QUEIRÓS - PROMOVENDO A INTERROGAÇÃO


IN: ANNABELA RITA
NO FUNDO DOS ESPELHOS
Incursões na Cena Literária, Porto, Caixotim, 2003

Definitivamente, o olhar assume a lente que reconfigura o visível, esteticizando-a a ponto de hesitar entre três visibilidades que assim se oferecem.
Imagens fortemente contornadas e manipuladas: inscrições tão incisivas que esfumam as suas molduras. No romanesco, elas sucedem-se e encaixam-se em jeito fotogramático numa combinatória suportada no olhar onde E. se oculta e que as indecide.
Imagens fortemente contornadas e manipuladas: inscrições tão incisivas que esfumam as suas molduras. No romanesco, elas sucedem-se e encaixam-se em jeito fotogramático numa combinatória suportada no olhar onde E. se oculta e que as indecide.


IMAGENS E MOLDURAS (1)

As Conferências do Casino, em 1871, foram ocasião para um grupo se unir em torno de um programa estético e de acção que enunciou clara e inequivocamente, programa de que lhe adveio uma identidade e que, depois, lhe justificou a nomeação: a Geração de 70. Diversas foram as idades, as origens, as experiências, as tendências, as opções e os percursos existenciais, mas a proclamação desse ideário juntou-os e garantiu-lhes cumplicidade. Eça de Queirós desenvolveu a sua obra de acordo com as coordenadas mais óbvias desse programa, facto que lhe confere um efeito de coerência e de redundância lógica, mas a ironia que lhe informa o discurso confere-lhe uma singular dimensão paródica, insinua nela a imprevisibilidade sedutora, a complexidade estética, o ludismo.

Que o projecto realista de observação e de análise sistemáticas do Portugal da época motiva e informa a escrita queirosiana é visível, quer na cronística, quer no romance.

No primeiro caso, lembro o título de uma longa crónica com que colaborou no primeiro volume de As Farpas (1871/72), lançando, com Ramalho, as bases da série periódica, crónica com que abriu a sua recolha Uma Campanha Alegre, cerca de vinte anos mais tarde: “Estado social de Portugal em 1871”.

No segundo caso, recordo o modo como Eça concebeu, seis anos depois, o seu políptico “Cenas da Vida Real” ou “Cenas Portuguesas” Em Outubro de 1877, apresentou-o ao editor, dizendo-lhe:

Eu tenho uma ideia, que penso daria excelente resultado. É uma colecção de pequenos romances, não excedendo de 180 a 200 páginas, que fosse a pintura da vida contemporânea em Portugal: Lisboa, Porto, províncias, políticos, negociantes, fidalgos, jogadores, advogados, médicos, todas as classes, todos os costumes entrariam nesta galeria.
A coisa chamar-se-ia Cenas da Vida Real ou qualquer outro título genérico mais pitoresco.”(2)

E, ao público português na contra-capa de As Farpas de Janeiro de 1878 (3ª série, I tomo), anunciou-o assim:

“CENAS PORTUGUESAS

As cenas portuguesas são uma série de 12 estudos sobre a vida contemporânea em Portugal. Cada romance tem uma acção própria e um desenvolvimento próprio, mas os 12 volumes formam no seu todo uma análise geral da moderna sociedade portuguesa.
Os volumes são publicados mensalmente e constam de 200 páginas cada um.
Estão em preparação:
I A capital
II O milagre de Vale de Roriz
III O conspirador Matias.

Tal projecto acabou por ter duas consequências incontornáveis no desenvolvimento da obra do autor e no seu xadrez : na escrita cronística e na relação que ela manterá com a romanesca. Vejamos, em síntese, cada uma delas.

Começo pela cronística, mais rigorosamente, pela conformação da crónica (3)

Na “Chronica” d’ O Distrito de Évora (1867), caracteriza-a do seguinte modo:

“A crónica é como que a conversa íntima, indolente, desleixada, do jornal com os que lêem: conta mil coisas sem sistema, sem nexo: espalha-se livremente pela natureza, pela vida, pela literatura, pela cidade: fala das festas, dos bailes, dos teatros, das modas, dos enfeites: fala em tudo baixinho, como se faz ao serão ao brazeiro, ou ainda de verão, no campo, quando o ar está triste: ela sabe anedotas, segredos, histórias de amores, crimes terríveis: espreita, porque não lhe fica mal espreitar. Olha para tudo, umas vezes, melancolicamente, como faz a lua, outras vezes, alegre e robustamente, como faz o sol: a crónica tem uma doidice jovial, tem um estouvamento delicioso: confunde tudo, tristezas e facécias, enterros e actores ambulantes, um poema moderno e o pé da imperatriz da China: ela conta tudo o que pode interessar pelo espírito, pela beleza, pela mocidade; ela não tem opiniões, não sabe do resto do jornal; está aqui, nas suas colunas, cantando, rindo, palrando; não tem a voz grossa da política, nem a voz indolente do poeta, nem a voz doutoral do crítico: tem uma pequena voz serena, leve, clara com que conta aos amigos tudo o que andou ouvindo, perguntando, esmiuçando.” (4)

Isto basta para percebermos que, se, por um lado, a crónica reivindica independência em relação ao espaço onde graficamente se inscreve, independência que a coloca entre jornalismo e literatura, por outro lado, ela ainda parece estar em busca de uma identidade textual, genológica, busca que a faz recorrer sistematicamente à comparação (e ao confronto, quando o outro termo são as outras secções do jornal) para se definir ao leitor, ao mesmo tempo que assume como modelo a conversa (seduzindo e desintimidando por isso, além de tudo poder tratar). Não esqueçamos que a “Chronica” do Distrito de Évora constituía um jornal dentro do jornal, uma secção do jornal ao lado de outras como “Critica de literatura e de arte”, “Revista crítica dos jornais”, “Ciências históricas”, “Ciências económicas”, “Interesse provincial”, etc., secção que o representava abreviadamente: a fragmentos que se sucediam entrelaçando a notícia, o comentário, a nota lúdica, o agradecimento, etc. seguiam-se subsecções intituladas, por sua vez, “crimes e delitos”, “movimento do gado...”, “proclamas de casamento”, “obituário”, etc., tendendo algumas delas a emancipar-se desse corpo polimorfo e a constituir-se depois em secções. Nesse jornal dentro do jornal, o olhar queirosiano ainda percorria aleatoriamente o real, procurando dizer-lhe o quotidiano, descrever-lhe o presente, cumprindo a vocação que a sua própria etimologia lhe incutia.

Com As Farpas (1871/72), e sob o impulso do programa da Geração de 70 que as Conferências do Casino proclamaram, a crónica define a sua identidade, a sua personalidade genológica.

O projecto realista definido nas Conferências orientou esse olhar no sentido da busca da imagem mais significativa e expressiva da compreensão desse mesmo real, o encontro entre ambos foi um casamento que As Farpas consagraram em texto coeso e que a escrita queirosiana passou a viver plenamente. À fase da cronística a fragmentária e heterogénea informada por um olhar inquiridor e ávido, mas incerto e inseguro de critérios, que percorre e faz folhear o real, segue-se a de um olhar ponderado que se detém num objecto desse real e que nos faz considerá-lo num texto também já estruturado e depurado, centrado nesse objecto e circunscrito nos seus limites, olhar que, irresistivelmente preso ao objecto tal como no-lo apresenta na crónica, o conduzirá ao romanesco.

Por implicação, registo uma direccionalidade argumentativa que se exprime num movimento mental e criativo de sistemática especificação, concretização e exemplificação que a ficção encena. Dois exemplos ao serviço desta tese: a relação entre a primeira e longa farpa e as restantes; a relação entre a série e algum romanesco, com destaque para O Primo Basílio (1878), dentre outros.

Na farpa I, a meio de um levantamento de vários aspectos da situação do país, uma presença faz-se sentir espectacularmente, não se deixando ver, em jeito de Hitchcock:

"E assim se passa, defronte de um público enojado e indiferente, esta grande farsa que se chama a intriga constitucional. Os lustres estão acesos. Mas o espectador, o País nada tem de comum com o que se representa no palco; não se interessa pelos personagens e a todos acha impuros e nulos; não se interessa pelas cenas e a todas acha inúteis e imorais. Só às vezes, no meio do seu tédio, se lembra que para poder ver, teve que pagar no bilheteiro.
Pagou – já dissemos que é a única coisa que faz além de rezar. Paga e reza. Paga para ter ministros que não governam, deputados que não legislam, soldados que o não defendem, padres que rezam contra ele. Paga àqueles que o espoliam, e àqueles que são seus parasitas. Pagam os que o assassinam, e paga os que o atraiçoam. Paga os seus reis e os seus carcereiros. Paga tudo, paga para tudo.
Em recompensa, dão-lhe uma farsa.
No entanto, cuidado! Aquele pano de fundo não está imóvel: agita-se como impelido por uma respiração invisível. Alguém decerto está do outro lado. Enquanto a farsa se desenrola na cena, alguém, por trás do fundo, espera, agita-se, prepara-se, arma-se talvez...
- Quem é esse alguém? As vossas consciências que vos respondam./.../"(5)

Ora, sensivelmente na abertura da farpa, o cronista (a dupla Eça e Ramalho), convidara: Aproxima-te um pouco de nós, e vê (6).

Com as farpas, portanto, o espaço do real fragmenta-se em 3 áreas: a do observador, a do observado e a da observação.

Para a primeira área, o cronista procura conquistar, através do riso e da espectacularidade, a cumplicidade do leitor-espectador até aí indiferente.

A segunda área é a do país encarado nos seus diferentes aspectos, realidade a analisar sistematicamente. Em rigor, conjugam-se aqui duas imagens: a da informação e a da sua elaboração. Aquela é comentada por esta, que a interpreta, amplificando-a, caricaturando-a, personificando-a ou simplesmente animizando-a, parabolizando-a, efabulando-a, etc.. E, apesar de a crónica nos fornecer a segunda imagem, permite perceber com nitidez os contornos de ambas, distinguir o factual do interpretativo e comentativo: de um aos outros, há uma trajectória intelectiva que se deseja tornar clara para o leitor, como se o texto também fizesse ver à sua margem, ao seu lado.

Abro parênteses para recorrer a um exemplo expressivo: a farpa dedicada ao partido reformista. Recordemo-la:

"O partido reformista apareceu um dia, de repente, sem se saber como, sem se saber porque. Era um estafermo austero, pesado, de voz possante. Ninguém sabia bem o que aquilo queria. Alguns diziam que era o sebastianismo sob o seu aspecto constitucional; outros que era uma seita religiosa para a criação do bicho-da-seda. Corriam as mais desvairadas opiniões. Apresentava-se tão grave, tão triste, tão intransigente, que no Chiado afirmava-se ser um personagem da história romana – empalhado!
Ninguém se aproximava dela, no meio da imensa impressão que causava aos moços de fretes. Por fim, pouco a pouco, alguns jornalistas mais curiosos foram-se chegando, começaram a tocar-lhe com o dedo, a ver se era de pau. Era de carne, verdadeiro. Percebeu-se mesmo que falava. Então os mais audaciosos fizeram-lhe perguntas.
- Senhor – disseram, espalhou-se por aí que vindes restaurar o país. Ora deveis saber que um partido que traz uma missão de reconstituição deve ter um sistema, um princípio que domine toda a vida social, uma ideia sobre moral, sobre educação, sobre trabalho, etc. Assim, por exemplo, a questão religiosa é complicada. Qual é o vosso princípio nesta questão?
- Economias! – disse com voz potente o partido reformista.
Espanto geral.
- Bem! E em moral?
- Economias! – bradou.
- Viva! E em educação?
- Economias! – roncou.
- Safa! E nas questões de trabalho?
- Economias! – mugiu.
- Apre! E em questões de jurisprudência?
- Economias! – rugiu.
- Santo deus! E em questões de literatura, de arte?
- Economias! – uivou.
Havia em torno um terror. Aquilo não dizia mais nada. Fizeram-se novas experiências. Perguntaram-lhe:
- Que horas são?
- Economias! – rouquejou.
Todo o mundo tinha os cabelos em pé. /.../
/.../
Foi necessário reconhecer, com mágoa, que o partido reformista não tinha ideias. Possuía apenas uma palavra, aquela palavra que repetia sempre, a todo o propósito, sem a compreender. O partido reformista é o papagaio do constitucionalismo."(7)

Visivelmente, na origem, temos um partido novo, cujo aparecimento repentino e injustificado provocou surpresa e perplexidade. No fim, na última frase, temos a opinião incisiva do cronista. Entre estes dois pólos, legitimando e justificando a relação entre eles, o discurso cronístico desenvolve uma efabulação caldeada entre o modelo de uma entrevista e o desenvolvimento lógico da figura absurda, porque ontologicamente indefinida, de um partido animizado em “estafermo” “de carne”, coisificado em “aquilo”, animalizado pela voz. O leitor reconhece com clareza os factos, a opinião e a interpretação argumentativa efabulatoriamente formulada, ou seja, a lente que filtra a observação, transformando o visível, elaborando-o até o outrar.

Fecho o parênteses e retomo o curso expositivo.

Quanto à terceira área em que as farpas fragmentam o real, a da observação, é a que a crónica materializa e modeliza em jeito de lente, impondo-se ela própria como objecto a observar.

Nas farpas, vejo, pois, a escrita cronística conjugar os recursos retóricos mais simples (a comparação, o paralelismo, a repetição, a hipérbole, etc.) para modelizar a análise do real e a sua identidade textual, manipulando e monopolizando o olhar do leitor.

Daí um texto cuja evidência (do procedimento analítico e da sua estruturação) lhe garante uma natureza a um tempo pedagógica e teatral : trata-se de um texto que demonstra como ler o real, apresentando-o em jeito de episódio teatral (faz ver de determinada maneira) e geometrizando-se de modo a também se fazer observar, esteticizando-se.

E, se o desejo de observação e análise para um público alargado promoveu esta conformação da crónica queirosiana, motivou, igualmente, uma abundante produção cronística, dessa escrita que procurava comentar quase tudo para o maior número possível.

Quanto à segunda consequência desse projecto realista, lógica e natural, consistiu ela na centralidade da cronística no conjunto da obra queirosiana, centralidade que contraria uma certa secundarização a que tem sido votada, visível na simples ponderação da bibliografia crítica do autor, secundarização que pode entender-se no quadro de uma tendência tradicional de hierarquização genológica e de uma inexistente reflexão sistemática sobre a crónica em geral, texto, aliás, de acesso nem sempre fácil, maioritariamente disperso em periódicos. Acresce a estas dificuldades o hibridismo específico da crónica oitocentista da autoria de escritores, texto cuja natureza participa da literatura, mas não pode alhear-se em absoluto do jornalismo, onde se hospeda.

Eça cultiva a crónica, quer por ser ela o espaço de eleição para observar sistematicamente a realidade, desmontando-a em partes/elementos que pondera caso a caso (tratava-se de rentabilizar e de materializar essa actividade), quer pelo facto de a sua brevidade favorecer a experimentação de processos de escrita e, até, a fácil verificação dos seus efeitos (no texto e no público). Em suma, para Eça, a cronística constituiu um excelente laboratório (sic) de escrita.

Daí a circulação de temas, motivos e figuras (ficcionais e retóricas) na obra queirosiana, da cronística para a ficção. Certo repertório de ideias, de temas e de recursos retóricos, assim como algumas figuras da galeria de personagens configuram uma obra coesa e uma identidade autoral fidedigna.

Por exemplo, quem, ao ler a farpa citada acima, não evoca o posterior episódio da avaria do fonógrafo do conto “Civilização” (1892), de cujo “bocarrão” saíu a “voz rotunda e oracular” de Pinto Porto perguntando retoricamente “- Quem não admirará os progressos deste século?”, repetindo-a até à rouquidão abafada e à fuga dos ouvintes “espavoridos”?

Ou, como não recordar tudo o que Eça diz nas suas farpas sobre a educação feminina e o modo como ela favorece o adultério (8) quando lemos O Primo Basílio (1878), em cuja história vamos reconhecendo a efabulação ao serviço de uma tese já exposta com clareza? Emergindo assim da cronística, o romance surge emoldurado por ela, elaboração ficcional de um elemento ou hipótese da crónica, demonstrando nesse processo um trabalho eminentemente estético do discurso sobre o discurso, distanciando-se do real invocado pelo projecto realista e pelo do políptico romanesco. Como não sentir, à medida que vamos evocando esse enquadramento cronístico, diferentes implicações de leitura, uma re-semantização do universo ficcional desse “Episódio doméstico” que parecia explorar um fait divers social?

Ou, ainda, como não antecipar na “calva polida” do conselheiro Acácio d’O Primo Basílio, “cuja contemplação demorada estonteava [D. Felicidade] como um vinho forte” (9), a careca brilhante do conselheiro Gama Torres d’O Conde d’Abranhos (escr. 1879, publ. póst. 1925) que depois reconheceremos no Pacheco da Correspondência de Fradique Mendes (escr. 1888, publ. póst. 1900), assinalando com o mesmo lustro a mesma inteligência avaramente escondida e nunca denunciada? E como não ver nessa imagem que transita cintilando de texto para texto, deslizando no discurso e na imaginação queirosianos, um ludismo profundamente irónico, fetichista na ponderação de certos motivos em que se fixa e que contorna, divertido, deformado n’“o gosto perverso” que atribui, p. ex., à D. Felicidade, denúncia do seu olhar deliciado a observar um outro e através dele?

E os exemplos são inesgotáveis.

Resulta daí a impressão de uma obra em que cada elemento pode remeter para outro, em que os textos não se relacionam apenas pelo projecto de conjunto nem pelo programa estético sob cujo signo foram escritas, mas também por imagens que se vão repetindo e reelaborando, por expansão, deformação e encenação, antecipando desse modo o actual hipertexto que a informática desenvolveu, a ponto de promoverem reflexos de semelhança a nível do discurso e a nível dos universos ficcionais entre os diferentes textos. Nesse regime hipertextual, não apenas o leitor é induzido a um trabalho dinâmico, de permanente associação da imaginação à memória de leitura do seu Eça, contiguando universos romanescos, mas também essas imagens adquirem uma densidade e uma concretude tais que parecem independentizar-se dos seus contextos, polarizando a atenção do leitor, em cuja imaginação se movem e se confrontam em novas e inesperadas cenas. Regime de leitura em alternativa ao linear e conjugando-se com ele, ambos absorventes.

Apeteceria dizer que é possível seguir a trajectória de uma farpa através dos diferentes romanescos, na sistemática reconfiguração de motivos e imagens que a estes adensam e confere visibilidade metamórfica.

Essa coesão evidencia um procedimento em que radica a obra queirosiana e que conduz da observação do real, ao seccionamento e à elaboração cénica, simples, como na crónica, ou complexificada, como no romance. Tal dialéctica entre geral e particular, fazendo derivar este daquele, denuncia uma obra que se gera num movimento mental de sistemática especificação, concretização, exemplificação que a ficção encena. Na observação do real. Também a nível da composição da série: na relação entre a farpa I, grande painel do “Estado social de Portugal em 1871”, e as outras, tematizando aspectos ou elementos daquela. Na relação entre a série e muito romanesco, com destaque para O Primo Basílio. E igualmente entre a concepção do políptico das “Cenas da Vida Real” e cada um, ou, no interior de cada um dos romances, entre o segmento social e cada personagem que o representa.

Tudo isso parece garantir ao leitor uma familiarização com a obra queirosiana sustentada no reconhecimento reconfortante, formativo e pedagógico, ainda que a ironia o surpreenda nos interstícios desse familiar, se insinue subversivamente nas dobras desse tecido de palavras e o seduza esteticamente

Um pouco grosseiramente, podería falar, então, de uma obra onde a ironia resolve brilhantemente a tensão entre duas forças de natureza e consequências diversas: uma, racionalizadora, demonstrativa, argumentativa; a outra, lúdica e estética. A primeira confere-lhe a coesão e a solidez reconfortantes e necessárias para a formação do cidadão. A segunda confere-lhe a subtileza e a ambiguidade sedutoras para os seus iguais. Desconfortáveis e inquietos entre ambos os públicos, ficam os que fornecem matéria para a ficção queirosiana, sobre quem se fala, mas a quem todos afectam não falar.


Quando a imagem se desloca

Posto isto, interessaria observar o caso concreto. Por exemplo, O Primo Basílio (1878).

O Primo Basílio emerge como expansão e ficcionalização de uma hipótese cronística, uma das que as farpas enunciavam sob o signo da imaginação racionalizadora e analítica moldada pelos diversos “Vejamos” ou “Veja-se” que iam introduzindo os casos apresentados em jeito de micro-narrativas susceptíveis de efabulação. No plano da história e no do discurso que a elabora. A perspectiva é claramente espectacular:

"Se, porém, nos interrogam directamente sobre o adultério e os seus motivos, pedimos que observem o que se passa nos costumes.
O espectáculo é curioso."(10)

Assim radicado na teatralidade que a abertura das farpas emoldura, numa continuidade que a escrita tece vertendo-se em memória de leitura para o público ainda sob o efeito impressivo da série cronística, tudo parece indicar que a imagem do adultério e dos seus protagonistas se vai elaborando por reforço semântico da cronística ao romance.

Mas, em vez de ponderar a possibilidade de uma leitura assente na redundância, no reforço semântico, na concretização, enfim, na continuidade imaginativa, sinto-me tentada a considerar a hipótese oposta, de uma leitura dominada pela descontinuidade imaginativa, feita de clivagens e de fracturas.

Na primeira hipótese, eu estaria a valorizar uma intencionalidade sinedóquica e simbólica do olhar queirosiano, incidindo sobre a grande panorâmica do real e seccionando-o de modo a destacar o elemento mais estratégico para uma leitura dele. A imagem assim obtido seria trabalhada no sentido do seu adensamento semântico para potenciar a sua capacidade de dizer o que a envolvia antes e que tal processo omitia na versão final. Essa concentração de real fá-la-ia remeter sempre o leitor para ele, tornando inevitável esse movimento de reinscrição na origem, nessa vasta panorâmica de que a escrita a afastara.

Na segunda hipótese, valorizo uma intencionalidade estética do olhar queirosiano, olhar que busca no imenso real o elemento mais singular, mais susceptível de ponderação e de elaboração formal, mais capaz de atrair e de ocupar esse ginásio da imaginação do autor e do leitor por onde a faz movimentar-se, evoluir e transformar-se. Tal incidência do bisturi queirosiano denuncia uma vocação fragmentarista seduzida pela dimensão formal da imagem, pelo desenho cujo contorno, à medida que se acentua e se reelabora mais indefine e distancia o contexto original. Uma “estética do pormenor”, na expressão de Carlos Reis (11).

Enquanto a primeira hipótese vincula Eça a uma estratégia mais dominada pela indagação do real e pela pedagogia sócio-cultural, vocacionada a espraiar-se numa escrita romanesca, marcada pela continuidade e por um olhar criticamente centrado, a segunda revela-lhe já uma estratégia que o finisseculariza e moderniza, dominada pelo fragmentário, pela descontinuidade e por um olhar tão excêntrico como a imagem que nos oferece, oblíquo.

Vejamos o que nos diz a letra queirosiana sobre isto em alguns textos. Mais adiante, regressaremos a um deles, O Primo Basílio, mas observando-o de outro ponto de vista.

No início, a moldura

Regressemos às farpas, ponto de partida da imagem queirosiana do adultério d’O Primo Basílio.

Em primeiro lugar, registo a ambiguidade ontológica dessa imagem: emoldurada e, portanto, assim evidenciada ao olhar do leitor, ela hesita entre o real que a cronística diz observar e a ficção que o romance encena. A própria moldura paródica e operática da abertura das farpas participa desse hibridismo que, ora a impõe como “janela” para o mundo exterior ilimitado, delimitando-o, ora a sugere como signo estético. Em jeito de passe-partout que não deixa perceber se projecta a imagem para o fundo, em profundidade, ou para a frente, na nossa direcção...

E isto complicar-se-á quando eu considerar a “mais valia” adquirida por essa imagem no convívio com outras que a lateralizam, pictóricas, musicais, etc., às vezes também informadas de uma ambiguidade com que a contaminam.

Além disso, nas farpas, o confronto e a coexistência entre o real comum, a sua realidade textual e o corpo da crónica arrastam uma consequência inesperada, um efeito de leitura surpreendente: essas três imagens fantasmizam-se mutuamente, interferem na leitura umas das outras, monopolizando, cada uma delas por sua vez, a atenção do leitor.

Segundo a Psicologia, a percepção é exclusivista. Edgar Rubin, analisando o fenómeno da ambiguidade do contorno comum, chamou a atenção para a consequente rivalidade de contorno, pela qual cada uma das figuras da composição luta pela supremacia, gerando uma tensão que faz o leitor oscilar entre duas leituras opostas que mutuamente se excluem, impedindo-o de se decidir por uma ou pela outra: a situação compositiva adquire, assim, reversibilidade (12). Recordo o célebre vaso de Rubin, perante o qual, ora vemos o vaso central, ora os dois perfis em confronto, nunca ambos simultaneamente. Estamos, pois, longe do fenómeno da anamorfose, em que a composição se organiza de modo a ser interpretada de um lugar determinado e de nenhum outro.

Eis-nos oscilando entre imagens que se impõem, que interferem ludicamente umas com as outras, fantasmizando-se mutuamente os contornos, vocacionadas para monopolizar, em alternância, a nossa percepção exclusivista. Hesitamos entre observar cada imagem confinada na materialidade do texto e expandida, ou pela continuidade da escrita queirosiana, ou pelo além que o real constitui.

Evoque a imagem um ponto de fuga real ou literário, ela denuncia sempre , no modo como metonimiza o seu plano e o outro, uma estratégia autoral de composição em perspectiva. Tal estratégia tem como efeito manter o leitor tensionado entre duas forças de sentidos opostos: a que deriva de um sistema cêntrico, cujo centro íntimo nos atrai; a que deriva de um sistema excêntrico, privilegiando um centro externo à própria composição e exógeno (o real e/ou o literário), motivando um movimento de fuga para ele (13)

Talvez seja de considerar a hipótese de a cronística promover três níveis de leitura, cada um deles correspondendo a uma dessas imagens: a do real comum, a da sua elaboração textual e a do corpo da crónica. Da primeira à terceira, realizar-se-ia um itinerário de esteticização progressiva da leitura que promoveria e que representaria a história da maturação do leitor e da leitura, história que a imagem queirosiana arrastaria consigo no seu trânsito para o romanesco, deixando-a pressentir.

A aceitarmos esta hipótese, podemos conceber que a série cronística “compacte” três outras que ao leitor caberia “descompactar”. Uma seria a da mera informação, esboçando metodicamente um panorama do Portugal da época, “folheado” na minúcia do quotidiano, na atenção jornalística, e esse panorama teria uma dupla entrada: a globalizante (da primeira farpa) e a particularizante (a das outras). A outra série seria a do divertimento, a do capriccio discursivo que conforma um autêntico e moderno “álbum de maravilhas”(14), exceptuando embora as crónicas efabulatórias e mais assumidamente comentativas. Finalmente, a outra série seria a dos esquemas analíticos e/ou processos retóricos cuja combinatória optimiza: em ambos os casos, estamos perante “instrumentos” a um tempo intelectivos, de compreensão do real, e estéticos, da sua elaboração. O que nos conduz a um entendimento do retórico como descritivo e modelizador do pensamento, dos processos mentais. E, com isso, à herança iluminista inscrita na obra queirosiana...

Comecei por falar de uma leitura tranquila e pacificada da obra queirosiana, assente numa vectorialidade lógica (até ensaística) e discursiva adensadora da imagem em trânsito, atenta à escuta de uma voz cujo timbre se mantinha reconhecível através das suas modulações do cronístico ao romanesco, e acabei por deslizar nestas minhas considerações para o reconhecimento da possibilidade de uma leitura instável e de progressiva tensão, oscilante entre imagens diversas e rivais, hesitante entre a natureza de cada uma delas, sensível à polifonia discursiva e capaz de decompor a “voz” ouvida em diferentes vozes (informativa, efabulatória, retórica). De um lado, a convicção de uma escrita dominada pela coerência e radicada num projecto cultural, mesmo com a incontornável ironia queirosiana; do outro, a percepção de uma escrita marcada pela carnavalização, suspensa num ludismo onde o aleatório se denuncia na descontinuidade, na conflitualidade perceptiva, na diferença. À leitura como relação cumulativa, de pesquisa que progride e se vai reforçando, parece opor-se a que sistematicamente se faz e se refaz, questionando-se, perturbada, dubitativa. E, se a littera queirosiana favorece esta dupla possibilidade e a combinatória de ambas... à chacun son choix...