Nova Série

 
 

 

 

 

 

DIVAL G. COSTA....
A maldição do crematório

Em uma cidade no planalto central do Brasil residia o que sobrara de uma família de classe média-média, composta por um casal de velhos cujos filhos se casaram, rumaram a outras plagas e ocasionalmente apareciam em visita.

Ele, Sebastião D´Artagnan de Morais e Silva, conhecido pela vizinhança como seu Tião, aposentado pela Previdência Social, elegera como seu particular cavalo-de-batalha, a contragosto de sua mulher e de quem ousasse discordar, a redução progressiva de seus proventos, embora houvesse contribuído sobre dez salários, mensalmente, por mais de trinta e cinco anos.

Assim, por achar injusta a ´mão de rato desse governo`, sua típica expressão ao debater o assunto com antigos companheiros, também pensionistas, não ficava nisso; ia mais longe. Mesmo, de antemão, sabendo-se derrotado, volta e meia, talvez para encher seu tempo e o saco de quem se incomodasse, comparecia ao balcão de atendimento do órgão previdenciário, reclamava e, como sói acontecer, não havia nada de novo. Saía como entrara, com as já conhecidas e incompetentes explicações do funcionário que o atendia. À exceção de quando aceitava a companhia do vizinho Osias, sujeitinho insignificante e meio maluco que a tanto se prestava pelo prazer em ver os quase apopléticos reclamos de seu Tião. Ocasião em que o tal Osias dizia ´Eu não disse?! Não avisei?! Necas de pitibiriba!`, seguido do inexorável convite para virarem uma cervejinha. Naturalmente, à custa de seu Tião. 

Ela, Dona Chiquinha (nascida Francisca Cordeiro Peixoto, natural de Icó dos Breves, vilarejo situado na discutível fronteira da Paraíba com o Ceará), professora primária aposentada do Estado, a minorar os aborrecimentos do marido, recebia o salário integral, uma vez que era estatutária. O que não a impedia de, conquanto dedicada às tarefas domésticas, reclamar da carestia dos produtos necessários à família, da inflação e dos impostos cobrados pelo governo. ´Uma danação sem tamanho!`, na sua moderada e comedida apreciação do avanço das despesas e o consequente prejuízo às condições básicas da população.

Felizmente, de tempos em tempos, na dependência de uma ou mais aves arribadas pousarem apressadas, o casal reforçava o gasto na feira, reunia-se às filhas e filhos, genros, noras e netos e desfrutavam momentos de fartura e alegria, enquanto seu Tião, audiência garantida, reclamava dos programas de TV, especialmente das novelas com imoralidades escancaradas pra todo mundo ver, inclusive as crianças. Para ele, os programas que valiam a pena eram os jogos de futebol e os noticiários. E acrescentava: ´A imprensa, que agora deu para chamar de mídia`, palavrinha forasteira e descabida, de um modo geral, só mostra corrupção, assassinatos, estupros e vandalismo. 

Seu Sebastião, homem de hábito simples e distante de qualquer religião (um certo pudor o impedia de se proclamar ateu ou agnóstico), aos domingos, ao invés de entregar-se às pregações e pedidos de óbolos por parte de padres ou pastores, comprazia-se em assistir, pela televisão, o seu time jogar (o Vasco), emocionando-se nas vitórias e deprimindo-se nas derrotas.

Enfim, um dia, sem específica razão e em gozo de aparente boa saúde, resolveu providenciar seu testamento, lavrando-o de modo informal, a bico de pena e nos termos que quis e a ninguém perguntou, após o qual o envelopou e deixou-o em local de fácil acesso a D. Chiquinha.  

TESTAMENTO 

Podendo suceder que eu faleça repentinamente, ou em condições de não poder exprimir as minhas últimas vontades, deixo escritas estas instruções, cuja execução recomendo às pessoas de minha família e cujo cumprimento rogo às pessoas estranhas, entre as quais, por acaso, eu venha a falecer.

Desejo ser levado ao crematório mais próximo do lugar onde eu faleça, sem honras civis ou religiosas de qualquer espécie.

Em nenhuma hipótese, faleça eu onde falecer, o meu corpo será embalsamado ou conservado por qualquer outro processo. Minha família não deverá fazer anúncio ou convites para o meu enterro, nem tampouco mandará dizer missas ou qualquer cerimônia religiosa conforme o cobrado pela sociedade. Na minha qualidade de agnóstico e livre pensador, renuncio aos sufrágios da igreja católica romana e de qualquer outro credo.

Não quero armação de nenhuma peça na minha casa, nem de palavras de louvor, despedidas etc., ainda que alguém se ofereça para isso.

Findo o prazo legal, as minhas cinzas devem ir para um terreno comum, sem honras e sem firulas.

Meus bens deverão ser divididos entre os herdeiros legais e respectivos sucessores. Não tenho outros descendentes.

Estas são as minhas disposições testamentárias.

Brasília, julho de 2035. 

Sebastião D´Artagnan de Morais e Silva 

Tempos depois Tião não acordara cedo, como era costume, e dona Chiquinha já coara o café e esperava o marido, que poderia estar no banho. Chamou-o repetidas vezes, sem resposta. Dirigiu-se ao quarto do casal e, ao abrir a porta, deparou-se com o corpo inerte e frio sobre o leito. O choro e o desespero invadiram-lhe, o que a impediu momentaneamente de agir.

Entretanto, abrandada a aflição, pediu socorro à vizinhança e comunicou-se com os familiares, os mais próximos, que logo vieram atendê-la.  Chamaram o médico da família, que o consultava duas a três vezes por ano, e ele emitiu o atestado de óbito, após análise do caso.

Formalmente apegados às recomendações testamentárias, os familiares trataram de providenciar a funerária e o que mais se fizesse necessário.

A despedida no ambiente do crematório foi simples, sem pompas, discursos, ladainhas e flores, o corpo vestido com seu único terno, segundo o último desejo do falecido.

Conforme os procedimentos da funerária, no seguimento o corpo foi conduzido para o interior do crematório através de uma pequena janela com cortinas duplas e encerrada a cerimônia. Portas e janelas foram trancadas para evitar o acesso de curiosos.

Rapidamente os operários retiraram o corpo do ataúde, transportaram-no para uma mesa de concreto encimada por uma maca de ferro, retiraram-lhe a vestimenta e o introduziram no forno previamente aquecido. Após um período de duas horas um dos operários abriu a tampa do forno, averiguou o grau de assadura da matéria e, espantado, constatou que o corpo estava íntegro, rígido, de coloração cinza azulado e sem o menor indicativo de incineração das partes moles. Fechou a portinhola do forno, aumentou a temperatura em grau máximo por mais duas horas e tratou de, ainda assustado, comunicar o inexplicável fato aos demais operários e à gerência da empresa.

Decorrido o marcado tempo extra, abriram novamente a portinhola do forno e, para espanto geral, constataram que o corpo permanecia intacto, duro como uma liga de aço temperado. Apresentado e discutido, via telefone, o inédito acontecimento com especialistas do IML, decidiu-se providenciar o resfriamento do cadáver para ulterior decisão.

Paralelamente, o supervisor do crematório, suspeitando de alguma manobra protelatória dos funcionários, quiçá destinada a desmoralizar o estabelecimento, chegou ao recinto, acompanhado de ajudantes experientes em esquartejar corpos mais resistentes. Assim, franqueando-lhes ferramentas de uso restrito a casos especiais, orientou-os a usar a motosserra para degola, tendo em vista a resistência do corpo e a imediata resolução do insólito problema. Entretanto, ao ligar o aparelho e iniciar o trabalho, eis que a serra-corrente partiu-se e, voando, degolou o operário que estava no lado oposto do procedimento.

O alvoroço tomou conta do ambiente, as carótidas seccionadas do auxiliar decapitado alagaram a sala com sangue, sem impedimento de levarem os restos mortais exangues a outro compartimento e efetuarem uma limpeza geral. 

Ainda no comando, embora a palidez interferisse na continuidade das ordenações e exigências, o supervisor não titubeou em passar a novas mãos o prosseguimento da operação. Indicado o ´Prensa`, apelido pelo qual respondia o mais forte e preparado à lúgubre empreitada, a função de pegar a marreta de 5 quilos e mandar bala! Exagero de expressão, claro, porquanto o que ele quis dizer parava na obrigação de desferir, com máxima força, um certeiro golpe na cabeça do defunto. Recebida a ordem, o pau-mandado segurou o obtuso e pesado instrumento, mirou o centro da testa do cadáver e, pei-bufe, acertou no alvo e... cáspite! Não que tivesse errado o alvo, isso não, mas se deu mal porque a marreta resvalou no crânio-alvo e, no rebote, escapou do controle do fortão e partiu direto ao joelho do supervisor; despedaçando sua patela direita e prostando-o no chão a gemer de dor. Tragédia completada, nada a fazer que solicitarem imediato socorro ao serviço médico de urgência. No mais, diante do corpo ainda intacto do falecido Sebastião, cavaram um buraco fundo junto ao crematório com uma escavadeira e enterraram-no; comprometendo-se todos a guardarem absoluto sigilo dos acontecimentos aos empregados e diretores. Contudo, à meia-noite em ponto daquela data houve uma tremenda explosão que mandou o crematório pelos ares e enviou seus pedaços a cerca de três km de distância, segundo o testemunho de um insone e solitário frentista de posto de gasolina nas imediações. Na descrição feita pelo homem, parecia um foguete de lançamento de satélite que ultrapassou as nuvens e despejou uma chuva de granizo...

Segundo controversas versões de outros moradores nas redondezas, e de experts nas ciências ufológicas, o incidente resultara das ações bélicas de um OVNI empenhado em recolher um ET homiziado na Terra, na esperança de escapar da ingrata missão de continuar, indefinidamente, vagando pelo espaço sideral.

E isso foi tudo o que se soube desse estranho caso!

 
Dival Costa (Brasil). Médico aposentado (79), residente em Brasília-DF Brasil desde 1965. Membro da Acad. Maçônica de Letras do DF. Estuda piano há 4 anos, como terapia ocupacional. Autor da música para piano: Dreaming awake, Registrada EDA Biblioteca Nacional, Min. Cultura. Está à disposição dos interessados através de E-mail: divalcosta@gmail.comPhone: 55-61-99919330