Freud
Senão a ele.
Madalena
Dúvida de fiel servidor, esperança de leal amigo, que diz com o coração dele, mas que tem atormentado o meu. E então sem nenhum fundamento, sem o mais leve indício: a que se apegava essa fiel credulidade de sete... e hoje mais quatorze... vinte e um anos?
Freud Às palavras, às formais palavras daquela carta, escrita na própria madrugada do dia da batalha, e entregue a Frei Jorge, que vos teria trazido - "vivo ou morto" rezava ela - "vivo ou morto...". Não lhe esqueceu uma letra daquelas palavras: e ele sabia que homem era D. João de Portugal, para as escrever em vão "vivo ou morto, Madalena, hei-de ver-nos pelo menos uma vez neste mundo". Não seria assim que dizia?
Madalena
Seria.
Freud
Vivo não veio... E morto, a sua alma, a sua figura...
Madalena
Credo!
Freud
Bem sabia que não. Queria-lhe muito e a sua primeira visita, como de razão, seria para si. Mas não se ia sem aparecer ao velho aio.
Madalena
Valha-me Deus. Conheço que desarrazoais, e contudo as vossas palavras metem-me um medo... Não façais mais desgraçada.
Freud
Não era feliz na companhia do homem que amava, nos braços do homem a quem sempre quisera mais sobre todos? Que o pobre do D. João de Portugal... respeito, devoção, lealdade, tudo lhe tivestes, como tão nobre e honrada que éreis... Mas amor!
Madalena
Não está em nós dá-lo, nem quitá-lo.
Freud
Assim é. Mas os ciúmes que D. João de Portugal não teve nunca - tinha-os ele, o aio, tinha-os ele pelo amo. Não podia ver... e desejava, queria, forcejava por se acostumar, mas não podia. Manuel de Sousa... o senhor Manuel de Sousa Coutinho era um guapo cavalheiro, honrado, fidalgo, bom português... mas, mas não era, nunca haveria de ser, aquele espelho de cavalaria e gentileza, aquela flor dos bons...
Madalena
Teria razão o aio. Mas eu resolvi-me por fim a casar com Manuel de Sousa; foi do aprazimento geral das nossas famílias, da própria família do meu primeiro marido, que bem sabia quanto a estimava; vivíamos seguros, em paz e felizes... há quatorze anos. Tínhamos essa filha, essa querida Maria, que era todo o gosto e ânsia da nossa vida. E o aio que pretendia ter-lhe mais amor que nós mesmos.
Freud
Teria?
Madalena
Talvez. Era ele, no entanto, que continuamente e quase por acinte, andava a sustentar essa quimera, a levantar esse fantasma, cuja sombra, a mais remota, bastaria para enodoar a pureza daquela inocente, para condenar a eterna desonra a mãe e a filha...
Andava sempre em contínuos agouros, de desgraças iminentes por acontecer, excitando a curiosidade daquela criança, aguçando-lhe o espírito - já tão perspicaz, a imaginar, a descobrir... quem sabe se a acreditar nessa prodigiosa desgraça, em que vós mesmo não acreditais que me tenha acontecido. Não credes, mas achais um doloroso prazer em ter sempre viva e suspensa essa dúvida fatal.
Freud
E que desgraças teria sido essas?
Madalena
Quando Manuel de Sousa disse que as coisas eram já indignas de nós. Que a nossa desculpa até então, para com Deus e para com os homens, estava na boa Fé e seguridade das nossas consciências. Que essa acabara. Para nós já não haveria senão mortalhas e a sepultura dum claustro. A resolução era a única possível.
Freud
Seria, mesmo?
Madalena
Pedi-lhe um momento mais. De amor. Não de prece. Porque de preces se haveria de preencher os nossos quotidianos a partir de então. Ele olhou-me com infinda tristeza, e partiu no nevoeiro, com a capa negra esvoaçando, louca, num vento de norte ou de sul, já me não lembra.
Freud
Amar é uma penitência. A cura é o intervalo em que sorvemos ar. Montai o meu cavalo e partamos para a chuva.
Madalena
A chuva? Qual? A de dia ou a de noite?
Freud
A que amanhece no que nos vai acontecendo e anoitece no que nos seduz.
Freud
Nunca durmo: vivo e sonho, ou, antes, sonho em vida e a dormir, que também é vida. Não há interrupção em minha consciência: sinto o que me cerca se não durmo ainda, ou se não durmo bem; entro logo a sonhar desde que deveras durmo. Assim o que sou é um perpétuo desenrolamento de imagens, conexas ou desconexas, fingindo sempre de exteriores, umas postas entre os homens e a luz se estou desperto, outras postas entre os fantasmas e a sem-luz que se vê, se estou dormindo. Verdadeiramente, não sei como distinguir uma coisa da outra, nem ouso afirmar se não durmo quando estou desperto, se não estou a despertar quando durmo.
Como quem visita um lugar onde passou a juventude, consigo, com um cigarro barato, regressar inteiro ao lugar da minha vida em que era meu uso fumá-los. E através do sabor leve do fumo todo o passado revive-me.
Há momentos em que a vacuidade de se sentir viver atinge a espessura de uma coisa positiva. Nos grandes homens de acção, que são os santos, pois que agem com a emoção inteira e não só com parte dela, este sentimento de a vida não ser nada conduz ao infinito. Engrinaldam-se de noite e de astros, ungem-se de silêncio e de solidão. Nos grandes homens de inacção, o mesmo sentimento conduz ao infinitesimal; puxam-se as sensações, como elásticos, para ver os poros da sua falsa continuidade bamba.
E uns e outros, nestes momentos, amam o sono, como o homem vulgar que nem age nem não age, mero reflexo da existência genérica da espécie humana.
Escrevo-me demorando as palavras.
Relatório II. Maria Eduarda.
O olfacto é uma vista estranha. Evoca paisagens sentimentais por um desenhar súbito do subconsciente.
Tenho sentido isto muitas vezes.
Mas nunca como em relação a Maria Eduarda. Uma sensualidade súbita que rompia no local mais inesperado, numa mão que alindava os cabelos, num sorriso, num modo de se acomodar no sofá. Quando falava sorria, entregando-se num género de perfídia e de ingenuidade fálica.
Apareceu no consultório, assim, num dia não. Bela, grande, forte, parecia desafiar-me com a linguagem dos olhos.
Que o pior eram os desmaios, o flato e a sensação de desfalecimento. Medi-lhe a tensão arterial.
Ainda a primeira conversa. De que país? Portuguesa. Aquele ar eslavo não se coadunava às impetuosidades da raça latina. Ela tomara de sobre a mesa e abrira lentamente um grande leque negro pintado de flores vermelhas. Depois ela falou da sua viagem, que fora muito agradável. Como achara Lisboa? Gostava bastante, achava muito bonito esse tom azul e branco de cidade meridional! Mas havia tão poucos confortos! A vida tinha aí um ar que ela não pudera perceber ainda - se era de simplicidade ou de pobreza.
Maria Eduarda queixara-se sobretudo das casas, tão falhas de comodidade, tão despidas de gosto, tão desleixadas.
Mas, afinal, o objectivo da sua visita, qual fora?
Maria Eduarda
Acontecera-lhe uma paixão antiga de que se não conseguira recuperar. Carlos Eduardo, meio irmão, mas de que ela desconhecia esse laço consanguíneo.
Já então lhe percebera uma aproximação arrepio; já naquela noite, deitado junto dela, que adormecera cansada, o pressentira, apoderando-se dele, com um primeiro frio de agonia.
Era, surgindo do fundo do seu ser, ainda ténue mas já perceptível, uma saciedade, uma repugnância por ela, desde que a sabia do seu sangue!... Uma repugnância material, carnal, à flor da pele, que passava como um arrepio. Fora primeiramente aquele aroma que a envolvia, flutuava entre os cortinados, lhe ficava a ele na pele e no fato, o excitava tanto outrora, o impacientava tanto agora - que ainda na véspera se encharcara em água-de-colónia, para o dissipar. Fora depois aquele corpo dela, adorado sempre como um mármore ideal, que de repente lhe aparecera, forte de mais, musculoso, de grossos membros de amazona bárbara, com todas as belezas copiosas do animal de prazer. Nos seus cabelos de um lustre tão macio, sentia agora inesperadamente uma rudeza de juba. Os seus movimentos na cama, ainda naquela noite o tinham assustado como se fossem os de uma fera, lenta e ciosa, que se estirava para o devorar... Quando os seus braços o enlaçavam, o esmagavam contra os seus rijos peitos túmidos de seiva, ainda decerto lhe punham nas veias uma chama que era toda bestial. Mas, apenas o último suspiro lhe morria nos lábios, aí começava insensivelmente a recuar para a borda do colchão, com um susto estranho: e imóvel, encolhido na roupa, perdido no fundo de um infinita tristeza, esquecia-se pensando talvez numa outra vida que podia ter, longe dali, numa casa simples, toda aberta ao sol, com uma mulher, legitimamente sua, flor de graça doméstica, pequenina, tímida, pudica, que não soltasse gritos lascivos e não usasse aquele aroma tão quente! |