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CECÍLIA BARREIRA
Corte de costura:
As Mulheres e o Simbólico (fim)

Freud

Contudo, se partisse com ela, seria para bem cedo se debater no indizível horror de um nojo físico.

E que lhe restaria então, morta a paixão que fora a desculpa do crime, ligado para sempre a uma mulher que o enojava - ... Mas, tendo por um só dia dormido com ela, na plena consciência da consanguinidade que os separa, poderia recomeçar a vida tranquilamente? Ainda que possuísse frieza e força para apagar dentro de si essa memória.

O desejo único desse homem seria atirar-se aos pés de um padre, aos pés de um santo, implorando-lhes a doçura de uma misericórdia. Ou, então, amar e amar ainda mais, a irmã/esposa/amante.

Maria Eduarda

Só quando o soube meu irmão é que o amei, deveras. Quando me penetrava sentia-me útero eu própria, dentro de um outro útero: o da mãe que nos tinha gerado.

Freud

Será que amar é a possibilidade de exceder os infinitos em todos os interditos.

Maria Eduarda

Então, o desejo não é sempre o mesmo, esteja o objecto presente ou ausente? Interessa-me sempre o ausente pelo discurso da sua ausência; situação estranha, na verdade; o outro está ausente como referente, presente como interlocutor.

Freud

Falar apaixonadamente é gastar sem termo, sem crise; é manter uma relação sem orgasmo. Existe talvez uma forma literária para este coitus reservatus : é a afectação.

Maria Eduarda

Dor ou felicidade, atrai-me por vezes o desejo de me destruir.

Freud

O sopro da destruição pode resultar de uma dor, mas também de uma fusão: morremos juntos de tanto nos amarmos: morte aberta, por diluição no éter, morte encerrada no túmulo comum.

Maria Eduarda

No túnel nos resguardemos do frio.

Freud

Quando amo, sou muito exclusivista. Ciumento, sofro quatro vezes: porque sou ciumento, porque me censuro de o ser, porque temo que o meu ciúme fira o outro, porque me deixo submeter a uma banalidade: sofro por ser exclusivista, agressivo, louco e vulgar.

A mecânica da vassalagem do amor exige uma futilidade sem fundo. Pois, para que a dependência se manifeste na sua pureza, impõe-se que se faça sentir nas circunstâncias mais irrisórias e se torne inconfessável à força de pusilanimidade: esperar um telefonema é, de certo modo, uma dependência muito grosseira; tenho de a purificar, sem limites: impacientar-me-ei, assim, com a tagarelice das comadres que, na farmácia, atrasa o meu regresso ao aparelho a que me estou escravizado; e como este telefonema, que não quero perder, me dará nova oportunidade de me escravizar, dir-se-ia que actuo energicamente para preservar o próprio esforço da dependência de modo a permitir que esta dependência se realize: fico louco com a dependência e, pior ainda - outro sobressalto, - fico humilhado com esta loucura.

O discurso de amor não está desprovido de cálculos: medito, por vezes conto, seja para obter tal satisfação, para evitar tal mágoa, seja para impor interiormente ao outro, num movimento de humor, o tesouro de artifícios que delapido para nada em seu favor (ceder, esconder, não ferir, divertir, convencer, etc.).

Com a mágoa vou ferindo a escrita.

Relatório III. Augusta.

Com lento amor olhava os dispersos tons da tarde. Comprazia-se em brincar com os espelhos, e limpava-os à semelhança de esferas de cristal. Sonhava muito e raramente se resguardava no real. Augusta fazia do leito a sua vida; quando se deitava já se não levantava mais.

Sofria de prisão de ventre e espreguiçava-se com uma violência de rara beleza. Não sabia ler nem escrever, o que lhe dava uma especial habilidade auditiva. Quando o amante a deixou, consultou-me por causa de uma hipotética gravidez. Os sintomas pareciam denunciadores: a falha da menstruação, os vómitos, o ventre proeminente. Contudo, não era um feto o que ela trazia no ventre, mas a abortada relação de paixão e morte com um homem que a não estimava. Parecia ter olhos de mágoa num corpo macerado, corajosamente vivido.

Tudo o que possuía dera ao amante: a alma, a ilusão, a beleza que nunca fora em demasia, o amor, a esperança.

Augusta

Manuel dizia-me quantas vezes que o invadia a infinita tristeza da existência, o tédio infinito da vida, dos homens e das cousas.

De uma mulher que conhecera falava dos olhos negros que nadavam em sensualidade; de como ela devorava os homens, adivinhando-lhes a configuração máscula do phalus. Perguntava-se porque se perturbava com a desvirtude das fêmeas.

Freud

Não a inspecciono para a não humilhar. E não reparo que a minha delicadeza ainda é mais humilhante. Ela treme como um pássaro agonizante. Na testa há nuvens e rugas sombrias. Quer falar e agita as mãos nervosamente. Finjo que nada percebo e deixo-a a soluçar caída no chão num ataque de choro convulso. Ouço o baque surdo e os soluços.

Augusta

Que olhos odientos e negros as pessoas nos lançavam quando saíamos juntos. Olhos de ódio e espanto.

Freud

A inveja é mais indigesta do que os marmelos crus.

Augusta

Habituei-me a este amor como quem se habitua a jantar todos os dias. Sinto um frio de medo, como se pressentisse que a monotonia seca e gelada viesse matar tudo isto, como se tudo isto fosse morrer como morre uma tarde de outono, devagar...

Freud

Crer em palavras falsas ou em palavras de verdade - é afinal a mesma felicidade, a felicidade de crer.

O horrível é a desgraça de duvidar, de ver nas palavras sempre a mesma música ilusória - e passageira.

Augusta

Passou a tarde comigo, conversando placidamente, tranquilamente, - fatigadamente, como criaturas que se não amam, nem se detestam. Ando adoentada, com nevralgias. Estou morta por um passeio largo ao longo da praia, vendo o mar e as rochas silenciosas. Ele quase me não houve. Fita-se a si próprio. Imploro-lhe para vir dormir comigo uma noite, toda que seja. Ele encolhe os ombros: um imenso tédio nos arrefece a alma.

Freud

É que - sabia-o bem - o homem é um animal muito triste. Muito triste.

Augusta

Sinto um desânimo infinito. A vida parece-me ilusória até à hora amarga do desengano. E eu pergunto de que serve ter-se ilusões, grandes e bela ilusões. Para as ver desfeitas. E digo que tenha inveja do M. que vê a vida pelo seu lado trivial. Queria ser assim. Não sofria tanto.

Freud

Também não gozava tanto.

Augusta

Abraço-o como a uma criança desprotegida. Ele abandona-se-me com a cordialidade distante de quem morre aos poucos. Lembro-me de lhe ter feito uma cena de ciúmes. Depois fizemos amor e molhámos a raiva que ambos sentíamos numa imensidão de sémen.

Freud

Biologicamente a nossa decadência é manifesta. Não se trata apenas duma desagregação da alma colectiva, trata-se duma dissolução mais funda, mais íntima, passada na alma de cada um.

Augusta

O amor extenua-me: sinto-me sempre suada depois do acto. Ele não me suporta. É-me indiferente a sua indiferença. A minha neurastenia não me dá uma hora de tranquilidade.

Freud

Quero dormir. Sinto-me sem coragem para o trabalho. Levanto-me aborrecido e fatigado. O ar que respiro é venenoso e amargo. A luz da tarde é azeda e glacial.

Augusta

Ele abandonou-me e nem sequer avisou como de costume.

Freud

Bem aventurados os que partem.

Augusta

Não me importa que vá ter com outra, porque prolongar este vão mundo incerto é tão louco como abandoná-lo.

Freud

E Deus criou as noites, que se armam de sonhos e as formas do espelho, para que o homem saiba que é reflexo e vaidade. Por isso nos alarmam.

Augusta

Os espelhos penetram-me fundo num orgasmo sem fim. Apetece-me ser de cristal para tilintar.

Freud

Que haja sonhos já é estranho. Mas que os espelhos se antecipem ao ilusório e recriem o espaço, isso é um absurdo.

Cecília Barreira