|
Um
Subitamente, ele foi interrompido por um pequeno raio de lembrança.
Ele desabou, explodiu e incendiou sua mente, fazendo-o mastigar o
café da manhã com um entusiasmo que parecia tê-lo abandonado para
sempre. O entusiasmo da febre da juventude - ele sempre chapinha na
ignorância acerca das coisas que realmente formam o mundo; tem a
imprudência dos que se apaixonam por uma rosa, não percebendo que
para apanhá-la correm o risco de muitos espinhos.
Sem
nenhum esforço, nas condições em que se encontrava, aquela
inesperada intromissão parecia ter o poder de conseguir expressá-lo.
Mas, ao mesmo tempo, também parecia ter entrado em cena mais para
reforçar seu infortúnio do que para trazer-lhe alguma alegria,
deixando bem claro que não havia mais esperança, dobrando seus
joelhos para que se resignasse à própria impotência.
Tudo
talvez se conformasse a uma espécie de consolo apoiado na analogia.
Conseguia ver no outro o que acontecia com ele. Tudo acabava
reduzido a variações em torno do mesmo tema. Sem que ninguém movesse
um dedo, a História se repetia, acomodando suas repetições às
circunstâncias de tempo e lugar.
Aquilo
seria um descalabro para muitos, principalmente, para os que
costumavam tapar o sol com peneira, tentando, em seu desespero,
esconder-se como um débil avestruz. Oferecia vantagens duvidosas.
Não ia muito além duma lucidez sinistra. Dependendo da resistência
do freguês, teria meios implacáveis para deixá-lo ainda mais
desiludido e deprimido do que já se encontrava. Era uma provocação a
um colapso nervoso. Era um convite à próxima janela ou a um tiro na
cabeça.
Mas
para ele emergia como uma espécie peculiar de Graça Divina.
Dizia-lhe silenciosamente que, apesar de condenado, ainda estava
vivo e fazendo o que sempre fizera, desde que descobrira suas
tendências e caminho. Morreria pensando, mesmo que faltasse papel e
lápis. Provavelmente, até na hora em que fosse recolhido, como todos
estavam sendo, estivesse na companhia daquele agente provocador
intermitente. Ele sempre o predispunha a descobrir alguma coisa
nova, fazendo com que se deliciasse com as conclusões achadas, mesmo
que não pudesse dividi-las com quem quer que fosse.
Relato
nº01
“O anti-semitismo, assim como o anticomunismo, foi um elemento
fundamental no programa de Hitler. Anti-semitismo foi o nome dado à
fórmula mágica com a qual ele interpretou todos os males sociais e
conquistou as massas desorientadas politicamente. Foi através do
anti-semitismo que ele desfez o Parlamento, instituiu a ditadura e
envolveu o povo alemão em seu crime”
Gerhard Schoenberner
Dois
Ele
não conseguia perceber a tela em sua totalidade estupefaciente.
Fragmentos dela insinuavam-se pela memória como as ruínas duma vila
secular, encontradas ao acaso, durante um passeio pelo campo. As
cores também desfilavam incertas pelo embaralhado que, aos poucos,
ia tomando viço e forma, recompondo-se como um quebra-cabeça
desfalcado. O nome do pintor também lhe escapava.
Onde
vira aquilo? Eram tantos museus naquela época. Tantas paredes.
Tantos quadros fixos nas paredes dum número excessivo de museus.
Talvez fosse o Louvre. Com certeza fora no Louvre. Foi
onde vira as cenas mais interessantes. E, muitas vezes, elas
pertenciam a pintores desconhecidos – infelizes talentosos sem a
sorte da posteridade. Nunca esteve interessado em pintura, mas nas
cenas que muitas concentravam, contando alguma coisa. No Louvre,
gastara muita energia e solas de sapato, palmilhando quilômetros num
vai e vem assistemático, sempre coordenado pelo deslumbramento e
pela curiosidade. Mal tinha quinze anos.
E
aquele quadro causara-lhe forte impressão, tanto que jamais o havia
esquecido, a ponto dele voltar a atormentá-lo, contaminando sua
mente, sem pedir permissão ou mandar aviso, passando a latejar em
seu imaginário, trazendo-lhe certo alívio, encaixando-se como uma
luva em sua vida, por aqueles dias de incerteza e nervosismo sem
trégua. Dias nas pontas dos pés.
Mas ele tinha certeza de que o
importante era que captava sem censura um instante febril de
Saint-Lazare.
A tela fora deixada ao mundo com a incumbência de registrar uma
mônada do
Terror.
Era histórica, jornalística, sem abandonar sua condição de
obra-prima.
Relato nº 02
“As leis racistas de Nuremberg e seus 20 decretos posteriores
arruinaram milhares de famílias e levaram inúmeros inocentes a
julgamento. Uma família judaica que empregasse uma doméstica
cristã poderia ser condenada por profanação de raça, da mesma
forma que um ‘ariano’ que se casasse no exterior com uma mulher
judia depois da promulgação das leis. Não se tem o número exato
de condenações da justiça alemã proferidas com bases nas Leis de
Nuremberg. Der Stürmer estima 558 condenações somente no ano de
1936. Após o cumprimento de diversos anos de reclusão
penitenciária, sucedia, automaticamente, a transferência para um
campo de concentração.” Gerhard Schoenberner
Três
O
que nunca fora apagado de sua cabeça era o escritor recostado no
canto direito da parte inferior da tela, numa atitude de absoluto
abandono e alheamento à aflição e ao desespero que o circundava. Ele
fazia parte daquelas horas contadas. Também não seria poupado. Era
tudo uma questão de comboio, espaço na próxima carroça. Mas ele agia
como se estivesse na tranqüilidade dum gabinete. Aquilo talvez fosse
uma forma meio desastrada de ter esperança, espantar o medo,
procurando um jeito de distrair-se até que chegasse o momento
inapelável.
Ele
não tinha muita certeza, mas talvez houvesse um facho de luz num
amarelo pardacento tripartindo-se, triangularizando três
possibilidades de estados de espírito, três pontos de vista, fazendo
daquele quadro um instantâneo febril a respeito da incerteza de
nossa posição no mundo das formas. Ele iluminava um oficial da
Revolução que talvez atuasse como meirinho trazendo as
condenações da hora. Ele permitia que o escritor roubasse a cena
pondo-o em primeiro plano, mesmo que estivesse jogado num canto. Mas
também não poupava uma mulher ebúrnea, vestida de branco, no alto
dos degraus duma escada cor de lama. Se o poeta tentava escrever em
seus últimos instantes, ela se apavorava com o que ouvia, contorcia
o corpo, quase desfalecendo, recusando-se a deixar o lugar, mesmo
que estivesse sendo empurrada na direção de sua sorte, enquanto que
o suposto meirinho cumpria seu dever – o que poderia significar amor
à causa, legítima defesa em relação à própria pele ou vingança de um
passado consumido por humilhações.
Relato nº03
“Quando Treblinka fica superlotada, abandonam-se os vagões
lacrados durante dias sobre os trilhos, até que todos os
ocupantes morram sufocados” Gerhard Schoenberner
Quatro
Naquela manhã cinzenta e fria, quem
sabe prometendo chuva, fumando seu primeiro cigarro após o café da
manhã, sem saber se almoçaria na própria casa, nada o impedia de
sentir-se como um
André Chénier
atirado na postura dum saco de batatas num canto de Saint-Lazare,
tentando extrair versos das circunstâncias.
E,
pelo que conseguia lembrar, ele estava tenso como uma corda dum
Stradivarius. Mas tenso por motivos mais elevados do que
simplesmente debater-se como um peixe agônico, recém tirado duma
rede, mendigando por mais alguns minutos de permanência neste mundo
sempre hostil. A perturbação de seu rosto não enganava. Deixava
evidente que eram motivos mais íntimos, dotados duma integridade que
talvez se confundisse com egoísmo para alguns. Mas, acima de tudo,
eram motivos ensangüentados na própria vontade de impor-se ao mundo
mais pelo que ele fazia do que pelo que provavelmente fosse.
Egoístas, talvez, mas eles transbordavam idiossincrasias pelos póros,
deixando bem claro a quem visse o quadro que estava na presença de
alguém que sabia o que desejava da vida, estando disposto a pagar o
preço que lhe fosse cobrado.
Incomunicável em sua bolha de evasão, indiferente ao burburinho de
gente aflita que se espremia e se debatia, em meio à sujeira e à
promiscuidade, sob pouca luz e nenhuma esperança, ele conseguia
reduzir o apelo mendicante pela vida a um gesto insano e vulgar.
Espiritualizava-se.
Talvez, em seus ouvidos, ainda ecoasse
uma
DuBarry
protestando contra seu veredicto,
deixando bem claro que ainda era muito cedo, fazendo das tripas
coração para procrastinar o momento fatídico. Em desespero de causa,
a amante de Luís XV, sua última favorita, deixou juízes e
jurados atônitos com sua verborragia desesperada, literalmente,
meretrizando a corte com a inconveniência de seu apelo pela vida.
Agressiva e indignada, ela fugia à regra, resistindo a uma sentença
desfavorável, sem a resignação habitual dos que passavam cabisbaixos
por ali diariamente. O poeta talvez ainda lembrasse que ela, da
Conciergerie à praça da Revolução, conseguiu transformar as ruas de
Paris num grande fiasco, assustando a todos com seus lamentos e
uivos, além do fato de contorcer-se e debater-se, sem descanso, como
se estivesse subjugada por estertores mediúnicos, desafiando a
escolta, a ponto dos carrascos encontrarem muita dificuldade em
contê-la, fosse na carroça, fosse já no cadafalso. A DuBarry
berrava pela vida, berrava que era inocente, berrava que podia
comprar a própria liberdade, berrava que sempre pertencera ao povo.
Com seu estardalhaço mendicante, ela conseguiu até espantar a ralé,
coisa meio difícil num dia de espetáculo, que assustada, manteve-se
silenciosa, sem ânimo para proferir ofensas ou blasfêmias,
retirando-se respeitosamente em seu instante definitivo. Seu
desespero era tamanho que ela teve prioridade na hora da execução,
como um doente em estado grave numa emergência de hospital.
Provavelmente, a única forma encontrada para acabar com aquela
ladainha sinistra que punha todos sobressaltados e entregues a um
desconforto intraduzível. Enfim, a DuBarry só sossegou o pito
e calou a boca quando o cutelo desceu, deixando pelo cesto a imagem
tenebrosa dum rosto tenso, marcado pelo pavor e pelo ressentimento.
Ele
não conseguia recordar muito bem, mas, apesar do desespero ao redor
do poeta insano, em alguns poucos ainda havia gesto e silêncio
significativos, impregnados de discrição, deixando escapar sutis
sinais apreensivos. Se não lhe falhava a memória, havia um par de
supostos aristocratas, não muito bem iluminados, que, em pé,
escutavam as novas que lhes chegavam, agindo com certo desdém à
ordem que desabava sobre suas cabeças ainda empoadas.
Relato nº04
“Certa vez, quando eu caminhava ao longo do
muro, me meti numa ação das crianças contrabandeando.
Aparentemente, a ‘ação’ propriamente já tinha terminado. Restava
algo a fazer. O menininho judeu, do outro lado do muro, teria
que passar por um buraco trazendo o último saque. O corpinho já
estava visível quando ele começou a gritar. Simultaneamente,
vinham do lado ‘ariano’ xingamentos altos em alemão. Corri em
auxílio à criança e quis puxá-la rapidamente através da fenda.
Desgraçadamente, o quadril do menino ficou agarrado à abertura.
Com as mãos e toda força, tentei puxá-lo para dentro. Ele
continuou gritando terrivelmente. Do lado de lá do muro
ouviam-se as violentas pancadas dos policiais. Quando finalmente
consegui puxá-lo pela fenda, estava agonizando. Sua espinha
dorsal estava esmagada.” W.
Szpilman
Cinco
Pelo
que ia conseguindo reconstituir, o oficial da Revolução
encontrava-se de pé, exuberante no corpo e na função que ocupava,
com inúmeras folhas de papel. Ele lia das listas, que segurava com
as duas mãos, os nomes dos escolhidos que iam saltar direto da
prisão para o cadafalso, sem a perda de tempo dum julgamento, para
que Saint-Lazare se esvaziasse, pois, com toda certeza, em
poucas horas, estaria transbordante novamente, até que todos os
inimigos da causa estivessem dizimados.
Enquanto
isso, a ralé se espremia, gesticulava e vociferava, como se o mundo
lhe pertencesse, quase satisfeita, exigindo mais sangue, vendo
aquela gente presa como aves gordas se debatendo numa gaiola de
cozinha, prometendo o jantar daquela noite ou o almoço do dia
seguinte.
Os julgamentos excessivamente sumários
assumiam-se como satisfações a suas imprecações e blasfêmias
imperiosas. Quem sabe, matutava ele, recorrendo a um segundo
cigarro, se as execuções não estivessem tão rápidas, a mulher
pálida, vestida de branco, encontraria tempo suficiente para que
suportasse o mesmo destino da
Princesa de Lamballe,
que fora, algum tempo antes, simplesmente reduzida pela população a
pedaços sangüinolentos, oferecendo às ruas uma procissão delirante e
devastadora...
Ele
via aquele passado como uma época de irrupções intermitentes de
assassinatos cruéis e sádicos. Eles chegavam a se confundir com
espetáculos bacantes. Deixavam sempre um rol exaustivo de
personagens imolados em nome do prazer pela destruição. Embora
houvesse a camuflagem duma Revolução, e nelas, ele sabia
muito bem, seria sempre impossível conter o excesso de violência e o
derramamento de sangue, enquanto a temperatura ainda estivesse muito
alta.
Hoje, entretanto, e isso muito o
assustava, as coisas corriam em linha de montagem. Era como se a
energia destrutiva se encontrasse sob controle. Era como se tivessem
visto em
Adam Smith
um grande achado. E ela, aquela
energia insalubre, só era ativada quando se fizesse preciso. O que
não deixava de ser uma espécie muito peculiar de evolução.
Sofisticavam-se os meios devastadores, mas a barbárie, embora
objetivada, mantinha-se incólume, sem sofrer nenhum arranhão em sua
essência, sempre a postos, a serviço do mal que nunca descansava –
sua grande fornalha sempre encontrava alguém que a alimentasse. Não
era agradável deixar-se convencer que o mal predominava no mundo.
Relato nº05
“Na retaguarda do Exército, foram liquidados 10.000 judeus
sem a minha deliberação, embora tal eliminação sistemática tenha
sido projetada por nós. Na cidade de Minsk foram liquidados
10.000 judeus, nos dias 28 e 29 de julho. Dentre eles, 6.500
judeus russos – a maioria velhos, mulheres e crianças; o
restante eram judeus incapacitados ao trabalho, que foram
mandados para Minsk por ordem do Führer. Vieram de Viena, Brünn,
Bremen e Berlim, em novembro do ano passado.”
Wilhelm Kube - Generalkommissar
Seis
Alguns anos depois, ficaria sabendo
que o escritor era André Chénier, morto em 1794, sob o tacão
de
Robespierre,
apesar dele, ironicamente, quarenta e oito horas após sua
decapitação, ter sucumbido à mesma sorte, com a agravante de
entregar sua cabeça já com um maxilar quebrado. Nunca se dera ao
trabalho de ler seus versos - nunca gostara de poesia, embora
devorasse romances. Mas nada o impediu de deixar-se apanhar pela
atitude do sujeito momentos antes de subir o cadafalso.
E
assim, com papel e lápis sobre a coxa esquerda, mal ouvindo a voz
cidadã, arrolando mais trabalho para Mlle. Guillotine,
recostado num banco rústico, de costas para a realidade febril que o
impelia para a morte, insensível aos ratos e ao cheiro de
excrementos, num cantinho da tela, mas de frente para o público que
observaria sua atitude escapista ou sua forma peculiar de liberdade,
André pensava a possibilidade de mais versos.
Com
seu ar insano, ele se torturava pelo incomunicável do mot juste
- uma pedra idiossincrática, específica, insubstituível, que deveria
se incrustar na frase, oferecendo o efeito desejado. Mas ele também
deveria saber que, geralmente, a defasagem, que existe entre o que
um escritor imagina e aquilo que ele consegue escrever, sempre
pisoteia no resultado, insatisfazendo o artífice. Se muitos se
agarravam à Virgem, ele punha sua vida nas mãos das Musas. Se não
fosse neste comboio, iria no próximo. O certo era que o nome estava
na lista. O único receio da carne que talvez ainda lhe restasse era
que a lâmina, que tanto trabalhava, não mais estivesse afiada quando
descesse sobre seu pescoço. Nem sempre ela dava conta do recado,
tamanha a demanda que lhe consumia o fio, sabotando aquilo que
deveria ser rápido e indolor, permitindo que se transformasse num
suplício, pois a execução transformava-se num jogo de tentativas.
Agora vai! Não, ainda não! Mais uma vez! Agora! Mais uma vez! Mais
uma! Agora! Ainda não! Ufa! Até que enfim! A próxima!
Mergulhado em si mesmo, Chénier
também não percebia que estava na mira dum sans-culotte
mal-encarado, às voltas com seu
cachimbo. Ele conseguia lembrar-se que o dedão de seu pé direito
muito se assemelhava à cabeça duma naja. Ele ostentava uma unha suja
e encascurrada, provavelmente povoada por fungos. Talvez fosse um
dedão que apontasse porque acusava sua indignação de nunca ter sido
lembrado pela vida durante séculos, portanto, um dedão revoltado que
se fizera jacobino mais por vingança do que por justiça. Ele
e seu dono pareciam loucos para mastigar Chénier, talvez
irritados com seu silêncio eloqüente.
E ele, em sua inocência de quinze
anos, ávido e curioso, pois Paris realmente fora sua festa, subindo
e descendo escadarias que talvez também tivessem sido trilhadas por
Catarina de Médicis,
Ana da Áustria,
Luís XIV, até mesmo, pelo
Cardeal de
Richelieu,
nunca poderia imaginar que talvez estivesse na presença do próprio
futuro, quando descobriu aquele quadro no meio de tantos outros. Ele
se vira sem que soubesse que estava se vendo. Mas nunca era tarde
para que descobrisse coisas importantes. O vaticínio chegara com
certo atraso, mas a intuição se encarregara de entregar a carta
enquanto ainda havia tempo.
Relato nº06
“Contornei o monte
de terra e permaneci frente à imensa cova. As pessoas estavam
tão prensadas umas às outras que só suas cabeças eram visíveis.
De quase todas as cabeças escorria sangue sobre os ombros.
Alguns fuzilados ainda se moviam. Alguns deles levantavam os
braços e viravam a cabeça para mostrar que ainda estavam vivos.
Três quartos da vala estavam preenchidos. Pelos meus cálculos,
ali já continha perto de 1000 pessoas.” Hermann Friedrich Gräbe
– um engenheiro de construção
Sete
Enquanto arrumava suas malas, pensava que aquilo que atravessara
seus pensamentos lhe parecia óbvio, excessivamente banal, pois o
mundo sempre estivera comprometido com analogias e repetições.
E dúvidas mais práticas também corroíam-lhe as idéias. Embora alguns
tivessem deixado vazar que não perdesse tempo com aquilo. Parecia
que não passava de teatro. Todos eram sempre apartados de seus
pertences, mal chegavam a seu destino. Recebiam uniformes. As
cabeças eram raspadas. Perdiam-se na burocracia dum número. Um
volume no máximo. Roupas quentes.
Entretanto, algumas horas depois, quando a mala já estava pronta, e
ele recorreu a um terceiro cigarro e a mais uma xícara de café, sua
analogia assumira a forma orgulhosa duma descoberta, apesar dele
saber muito bem que não havia mais espaço para aquela espécie de
veleidade.
Mesmo
assim, esparramando-se pelo sofá de couro, ele persistiu. Agarrou-se
ao inesperado. Ficou durante longas horas numa espécie de dissecação
do achado, chegando à conclusão de que servia realmente
para
alguma coisa. Mesmo que já não servisse para mais nada.
Perscrutando suas mãos delicadas, que ele tinha certeza de que
talvez lhe trouxessem muitos problemas, ele conjeturava que, se
pensasse pela carne, estaria apavorado, perplexo, constrangido à
imobilidade. Pensar pela carne era sempre pensar pelo medo.
Principalmente, pelo medo da dor física. O medo conduzia sempre ao
pânico. Restavam sempre estátuas de sal.
Talvez
tivesse sangue de barata. Fosse o que fosse. Mas encontrara forças
para fugir do inevitável fazendo o que sempre havia feito. Pensar.
Ler. Pôr no papel o que extraía dos pensamentos. Apesar de sentir-se
fraco, porque vinha comendo muito mal.
Entretanto, ainda conseguia saltar da cama todas as manhãs,
lavar-se, vestir-se, ficar em dúvida quanto à gravata, salpicar
algumas gotas de sua água de colônia e caminhar na direção da sua
mesa de trabalho, como se estivesse perseguindo um grande projeto.
Era
como se estivesse na direção da universidade. Quando lhe era
permitido ir ao clube. Quando não lhe era negado ter seu nome no
catálogo telefônico. Quando podia publicar necrológicos no jornal.
Quando não havia nenhum inconveniente em manter uma empregada
ariana. Quando estava livre para casar com quem bem quisesse. Enfim,
quando não lhe era vetado encontrar seus alunos e perscrutar os
telhados em terracota e muitos campanários subjugados pela tela duma
bruma cinzenta, sempre empilhados em sua perspectiva irregular,
enquanto falava e caminhava pela sala de aula.
Naquela
época, sentia que era capaz de fazer alguma coisa pelo próximo.
Mesmo que seu auxílio não fosse além da idéia. No fundo, não passava
dum indicador bibliográfico, com direito também a oferecer
comentários sobre os livros prescritos. Mas era o que sabia fazer.
Aliás, apesar dos percalços, ainda não havia
esquecido o que sempre
fizera.
Relato nº07
“Após a primeira execução, a segunda chamada de judeus tinha que se
deitar sobre os corpos mortos, de tal maneira que as cabeças
ficassem em cima dos pés dos cadáveres. Em cada vala eram
jogadas umas 5 a 6 camadas de judeus. Chegava a 400 ou 500 o
número de pessoas em cada uma. As execuções foram realizadas ao
bel-prazer com armas de disparo rápido, carabinas e pistolas
automáticas. Antes, muitos foram espancados até a morte. Era
assombroso como os judeus entravam nas valas, apenas com
consolações recíprocas para se encorajarem e facilitar o
trabalho dos Comandos de Execuções.”
Alfred Metzner
Oito
Ouvindo o carrilhão e observando uma ampulheta que se esvaía, ele
reiterava a sensação dos minutos e das horas que sempre custavam a
passar, embora décadas e séculos voassem, dando-lhe a certeza de que
não haveria um Império de 1000 anos. E não precisava pensar muito a
respeito. Bastava que alguém ouvisse a BBC e depositasse muita
confiança no inverno russo – eles não tinham aprendido coisa alguma
com Napoleão.
Apesar
do seu infortúnio, apesar de eles estarem no comando, não deixava de
ser perversamente divertido observar aqueles energúmenos agindo da
pior forma possível, como se fossem eternos e imortais. Os
miseráveis esqueciam que todos sempre morriam no mundo, pouco
importando se houve vitória ou derrota, riqueza ou pobreza, prazer
ou dor. E depois da morte, o corpo era sempre transformado num
exército de vermes famintos, cedendo seu espaço ao pó, sendo,
provavelmente, a maior prova desse movimento eterno, sempre berrando
silenciosamente que tudo o que é sólido se desmancha no ar.
Ele também
se deixava congestionar momentaneamente pelo fato de que ninguém era
inútil por inteiro, a ponto de não servir para coisa alguma. Ele
sabia que o bem e o mal não apresentavam a pureza maniqueísta que
tinha alimentado os contos de fadas e os folhetins. Quanto aos
supostamente virtuosos, ele tinha certeza de que também apresentavam
seus defeitos, uma vez que a virtude, sem flexibilidade e adequação
contextual, gerava tanto fanatismo e intolerância quanto soberba,
pois quem realmente era superior sabia compreender as fraquezas dos
circundantes.
Portanto, era bem provável que um péssimo caráter também fosse um
homem de qualidades, embora, em muitos casos, fosse difícil
garimpá-las. Assim pensava ele, quando ouviu o que sempre temera,
convicto de que era imprescindível abandonar qualquer preocupação
infundada com a pureza das coisas, porque somente o fato de alguém
estar aturdido pela pureza era um grave sintoma de que não a
possuía, estando, provavelmente, muito afastado da sua ilusória
conquista. Entretanto, para seu alívio momentâneo, eram os vizinhos
da frente, às voltas com a Lancia preta, sempre em alta
velocidade, percorrendo as ruas como uma exigência poética de
Marinetti.
Era um automóvel, mas o alarme era falso.
Relato nº08
“Cavar valas é o que demanda maior parte de tempo; a
execução, em si, ocorre rapidamente (100 homens em 40
minutos...) A princípio, meus soldados não ficam impressionados.
No segundo dia, porém, já se fez notável que somente um ou outro
não ficava com os nervos aflorados ao realizar um extermínio de
longo tempo. A impressão que tenho é que durante o extermínio
não se dá nenhuma inibição psíquica. Isto, porém, ocorre no
final do dia, quando reflete-se sobre isso em silêncio.”
Um
primeiro-tenente do exército chamado Walther
Nove
Cada
veículo que passava sob as janelas aumentava sua ansiedade.
Sobressaltado e indócil, naquela manhã, lá pelas tantas, viu-se
contando retângulos de vidro, parquês, livros, o que estivesse à
disposição de seu desconforto. A espera minava seu humor. O café
enjoava seu estômago. Os cigarros começavam a arranhar sua garganta.
Não sabia exatamente o que fazer com as horas que escoavam diante de
sua impaciência. De repente, sem transição ou titubeio, saltou do
sofá para sua Underwood, pondo-se a dedilhar pelo teclado,
com a destreza duma secretária padrão.
Relato nº09
“Os judeus a serem evacuados devem ser orientados com relação à
bagagem. Podem levar, no máximo, 25 quilos. Além disso, podem levar
alimentos para o período de dois dias. As autoridades policiais
locais têm que recolher a bagagem dos judeus no dia 28 de março de
1942, e guardá-la até a partida. Ela tem que ser pesada e vistoriada
rigorosamente antes da partida; não pode conter armas (armas de
tiro, explosivos, facas, tesouras, venenos, medicamentos etc.). A
bagagem acima de 25 quilos dever ser reduzida. Também é permitido
aos judeus levarem até dois cobertores, sendo estes incluídos,
porém, no peso máximo de 25 quilos..." Ordens elaboradas por
instruções do Departamento de segurança Nacional (RSHA)
Dez
Sentia-se como um colegial diante do calvário duma redação escolar.
Mas também saboreava a sensação que domina certos escritores, quando
vomitam pelo mistério branco duma folha de papel as primeiras
impressões dum futuro. Era o instante sagrado do que pode muito bem
ser chamado de versão emotiva daquilo que pretendem escrever. Nestes
momentos, não pensam em coisa alguma, exceto nas idéias que lhes
chegam. Elas devem ser registradas impiedosamente antes que a
memória se apague e eles percam os primeiros passos do que mais
tarde deverá ser recomposto e reformulado, até que atinja a força e
a forma que lhes satisfaça.
Relato nº10
“Embora pressionado por diversos lados,
segundo consta, o papa não se deixou comprometer com nenhuma
declaração demonstrativa contra a deportação de judeus de Roma.
Mesmo sabendo que teria que contar com o ressentimento de nossos
opositores, e que os círculos protestantes nos países
anglo-saxões usariam isso como meios propagandísticos contra o
catolicismo, o papa tudo fez para não sobrecarregar o
relacionamento com o governo alemão e com as autoridades alemãs
situadas em Roma, desviando-se dessa delicada questão. Como não
mais devem ser realizadas ações em Roma, com relação à questão
judaica, acredita-se que esteja liquidada esta desagradável
questão para a Alemanha e o Vaticano.”
Uma carta do embaixador alemão junto ao
Vaticano endereçada a Ernst von Weizsäcker – Ministro do
Exterior (23 de outubro de 1943)
Onze
Ele sabia muito bem que em filosofia o que realmente interessava era
a supremacia da idéia, uma espécie de unidade mínima do pensamento,
enquanto possibilidade de matéria-prima, sendo reservado à linguagem
o papel de veículo. Surgia daí o impasse fundamental, pois ao
sucumbir ao uso, as idéias transitavam entre a verdade e a retórica.
A
verdade, ele tinha certeza disto, seria sempre inacessível à
cognição humana. O fato dos homens serem dotados de graus variados
de inteligência talvez fosse a principal causa desta incômoda
inibição. Isto fazia com que eles pensassem de formas variadas,
geralmente, antagônicas, permitindo-lhes, obviamente, valores
díspares.
Como
não tinham muitas luzes, enxergavam a curta distância, deixando-se
quase sempre apanhar pelo entrave do medo. Medo de tudo que fosse
estranho, que fugisse de seu potencial de compreensão. Esse medo,
supostamente protetor, incutia-lhes inevitavelmente a praga da
intolerância. Cada um teria, portanto, uma verdade, fazendo
com que a verdade sumisse do mapa. Um estado de coisas nestas
proporções só poderia gerar guerras e mais guerras. Nisto talvez
residisse a importância do mito da Torre de Babel.
Em vista
da indigência espiritual existente, haveria sempre espaço de sobra à
disposição da retórica. Ela, com seu apoio nas opiniões, estaria
sempre sob a dependência do potencial de argumentação de seus
usuários. Venceria quem melhor argumentasse, não quem estivesse
necessariamente com a razão. Ele sabia muito bem que se comprometer
com a retórica significava atuar muito mais no plano da emoção do
que no racional. Um número exaustivo e incompatível de
pseudo-verdades tinha perturbado o homem, desde longa data,
principalmente, quando elas se transformavam em ideologias.
Seu
tempo totalitário era a prova irrefutável disso.
Com bandeiras, música estridente,
promessas de resgate de glórias passadas, eloqüência de botequim e
preconceitos arraigados, a verdade fora jogada na sarjeta, vencendo
uma opinião sustentada pela violência. Um candidato que soubesse
tocar no que houvesse de pior na alma humana, fazendo com que isto
assumisse as proporções de lei, conquistaria sempre o poder. O jogo
retórico das aparências sempre suplantava o bom senso. A retórica
era a mãe das escolhas erradas. Era como deitar-se com uma
Joan Crawford
com sífilis.
Dar
aulas de filosofia, perdendo a voz por causa de Sócrates ou
Platão, era tão inútil quanto um padre bem intencionado, em
seu púlpito, tentando levar aos homens dominicais as palavras de
Cristo. Cristo tornara-se uma regra de etiqueta.
E aquilo parecia sinistramente
atemporal. Impunha-se ao mundo como um vestido preto de
Mme. Chanel.
Sem tempo para o desuso, o desgaste, o esquecimento. Sempre
confinado à resistência e à durabilidade inabaláveis dum
Modelo T.
Relato nº11
“Os campos de extermínio nasceram em solo polonês. Neles não vivia
nenhum prisioneiro além de um Comando de Limpeza. Eram eles:
Chelmno, Belzec, Sobibor e Treblinka. Aqui as pessoas eram
mortas imediatamente após sua chegada. Houve também campos
conjugados – de extermínio e de concentração – como Majdanek e,
sobretudo, Auschwitz-Birkenau, a maior companhia de trabalho
forçado no Reich de Hitler e, ao mesmo tempo, o maior matadouro
humano, que com quatro crematórios, alcançava uma ‘capacidade
diária’ acima de 9.000 pessoas mortas por gás e incineradas. O
assassinato em massa foi industrializado com as câmaras de gás.
Não era possível fuzilar todas as pessoas que chegavam. As
fábricas de mortes engoliram todas. Quem não era asfixiado no
gás, era morto por trabalho, e quem não estava morto ainda,
morreria dentro de três meses.”
Gerhard Schoenberner
Doze
O que ele ouviu de seu gabinete, interrompendo definitivamente o
fluxo de seus pensamentos e fazendo cessar o tique-taque da máquina,
enquanto gotas geladas de suor escorreram por suas costas,
tornara-se rotina a partir do outono de 1943. A faxina italiana
viera um pouco mais tarde, coincidindo com a frouxidão e a queda de
Mussolini. Embora, a partir de 1938, todos tivessem se
transformado em cidadãos de segunda categoria.
Metido em seu conforto, convicto de sua posição omissiva, silencioso
e covarde, carregando um queixo furado para onde quer que fosse,
Pio XII parecia muito satisfeito com
tudo o que estava acontecendo. Aliás, ele sempre preferira Hitler
a ter de se submeter a Stálin.
Relato nº12
“Assim o assassinato tornou-se um negócio. O sistema de
exploração e aproveitamento das pessoas foi sem falhas.
Roubavam-se suas roupas e seus objetos de valor, matavam-se seus
familiares incapacitados ao trabalho, utilizava-se sua força de
trabalho até o esgotamento físico total, ou mutilavam-se seus
corpos com experiências médicas; extraíam-se ainda dentes de
ouro dos defuntos e transformavam-se suas cinzas em
fertilizantes. Matavam-se as pessoas isoladamente e em série, e
contabilizava-se o assassinato, pois queria-se saber o que
estava sendo feito, porque os superiores tinham de estar a par
disso, e porque não se acreditava que isso pudesse terminar.”
Gerhard Schoenberner
Treze
E assim, dois automóveis pretos, quatro portas, em disparada
desnecessária, estacionaram, sem nenhum critério e bruscamente, na
frente do prédio. Desta feita, o alarme não era falso.
Deles, saltaram meia dúzia de brutamontes à paisana. Estes homens
sempre vestiam-se de escuro e portavam chapéus de abas largas.
Muitas vezes, seus casacos eram de couro. Entretanto, o que cobria
seus corpos em serviço dava-lhes um distanciamento uniformizante.
Mesmo sem farda estavam fardados, sinalizando a quem os visse a
marca duma polícia destinada ao trabalho mais sujo.
Sisudos e arrogantes, entraram no edifício, subindo as escadas a
trote. Não chegaram a bater na porta com sua violência habitual. Ela
estava aberta à sua espera. Mesmo assim, conseguiram, na entrada,
derrubar uma pequena mesa, espatifando um
Gallé.
Indiferentes ao estrago, pisoteando
pelos cacos de vidro, encontraram-no de malas prontas, sentado numa
poltrona, fumando um cigarro recém aceso.
Fixos à rotina, leram seu nome na lista quilométrica. Sem
resistência ou indignação, ele os acompanhou aonde quer que o
estivessem levando, apesar da mala ter sido considerada como além
dos quilos permitidos, obrigando-o a selecionar ainda mais o que já
se encontrava racionado e resumido. Tinha certeza
de que seria um a mais
no depósito de carne que fora requisitado para o entulhamento.
Relato nº13
“Como estátuas de mármore, os mortos permanecem de pé nas
câmaras, comprimidos uns aos outros. Não teria lugar para cair,
e nem mesmo para inclinar-se à frente. Distingue-se as famílias,
mesmo mortas. Elas agarram-se e, após a morte, permanecem
fortemente entrelaçadas, de mãos dadas, o que exige um trabalho
penoso para separá-los, a fim de deixar as câmaras livres para a
próxima carga. Lançam-se os corpos para fora – molhados de suor
e urina, sujos de excrementos, sangue menstrual nas pernas.
Corpos de crianças voam pelo ar. Não há tempo.”
Primeiro-tenente da SS Kurt Gerstein
Quatorze
Ele deixou o papel na underwood.
Deitou um último olhar pela escrivaninha, pela lâmpada art deco,
pelos livros, pelos quadros, pelas cortinas, pelos sofás e
poltronas.
Apesar do prédio ser da época da Unificação, ele havia
conseguido deixá-lo internamente futurista, quase um objet
d’art, propício ao jazz, a romances norte-americanos dos
anos vinte, a cigarros e a muito gin-tonic.
Não se preocupara em queimar nenhum papel. Deixara tudo como sempre
estivera. Tinha certeza de que qualquer esforço teria sido inútil.
Naquele estado de coisas, qualquer um nas suas condições, bastava
estar incriminado numa daquelas listas para que já tivesse sentença
condenatória.
Desta feita, pouco lhe dizia respeito que as janelas ficassem
abertas. Muito menos, que um cigarro, recém aceso, tivesse
permanecido fumegante. Eventualidade que chamou a atenção dum dos
gajos, obrigando-o a limpar o cinzeiro.
Enquanto foi descendo, andar por andar, muitas portas abriram
frestas às suas costas, bisbilhotando o que sabiam que aconteceria,
mais cedo ou mais tarde, numa atitude de quem talvez acreditasse que
o prédio não mais corria riscos, e que seus moradores estavam livres
de perseguições e incertas dali em diante.
Da janela do Alfa-Romeo, que muito se assemelhava a um
escaravelho egípcio, ele viu as ruas vazias, como se a cidade
estivesse em estado de sítio. Acinzentadas pela bruma de novembro,
elas lhe pareceram mais belas do que nunca. Mas logo haveria sol. E
muitas folhas sujariam de dourado cada passeio. O terracota habitual
voltaria a reinar, sempre histórico e arqueológico. Apesar de tudo,
era como se a Idade Média e a Renascença permanentes
zombassem das circunstâncias, mantendo-se indiferentes a seus
invasores, observando-os como um cachorro convive com as pulgas
transitórias que tentam sobreviver pelo interior de seu pelo.
É claro que se houvesse bombardeios e os escombros surgissem, tudo
seria devidamente varrido do mapa. Mas talvez restassem pedaços
falantes e tudo fosse resolvido como Pompéia e
Herculano,
e o passado mais recente continuasse se impondo como marca
registrada duma cidade. Olhando os restos de Roma e da era
dos papas, a pretensa glória do Duce fazia com que sua
mancha ridícula de usurpador dos tempos modernos saltasse ainda mais
a seus olhos cansados. A Itália estava morta há muito tempo, mas ela
se recusava obstinadamente a aceitar sua condição de alma penada. A
Itália não passava dum grupo de aristocratas decadentes, com seus
punhos puídos, sobrevivendo às custas de glórias do passado.
Pelo menos seu livro escrito às pressas encontrava-se à salvo em
algum lugar pelo campo. Talvez tivesse sorte, e ele fosse editado
depois daquela chuva, pouco lhe dizendo respeito que não
estivesse mais lá para observar seus efeitos.
Deixava-se seduzir pela expectativa de que tudo fosse muito rápido.
Sim, a lâmina da guilhotina deveria estar bem afiada quando chegasse
sua hora, apesar do cheiro nauseante de sangue poluindo a atmosfera.
Entretanto, ele não se deixava iludir pela sorte que o esperava.
Sabia que a dor da carne estava apenas começando. Além dos boches
nunca terem sido muito delicados, havia certo prazer em impor muito
sofrimento desnecessário. Mas nada o impedia de gastar energia e
pensamento com as possibilidades de sobrevivência. Mesmo que lutasse
contra aquela onda de emotividade, aquilo era sempre muito mais
forte do que seu bom senso.
Relato nº14
“Duas dúzias de dentistas abrem as bocas com um gancho e
procuram ouro. Ouro à esquerda, e sem ouro à direita. Outros
dentistas arrancam dentes de ouro e coroas com boticão e
martelos...”
Primeiro-tenente da SS Kurt Gerstein
Quinze
Ele
flanava numa nebulosa toda sua, estava muito longe de tudo e de
todos, inclusive, da satisfação, quando o Alfa Romeu foi
jogado bem na frente do que havia sido uma escola. Constrangido a
descer às pressas, foi escoltado pela calçada até o interior do
edifício. Subindo inúmeros lanços de escada, interrompeu seus passos
engrossando a fila que parecia perder-se na direção do andar
superior.
Doentes gemiam e tiritavam de frio,
atirados pelo chão em macas improvisadas. Velhos apoiavam-se em
muletas. Crianças mastigavam pedaços de salame, engordurando as
roupas de quem estivesse ao alcance de suas mãozinhas. Mulheres
perdiam qualquer espécie de inibição, oferecendo os seios a seus
bebês, sob o olhar atento de seus maridos. Garotas sardentas,
insensíveis ao perigo em que estavam metidas, flertavam
descaradamente com o par de calças que lhes evocasse Gary Cooper
ou
Ronald Colman.
Muitas grávidas sucumbiam ao vômito, enquanto alguns dos aleijados
se esvaziavam, resignados ao confinamento de suas macas de
improviso. Muitos ouvidos fixavam-se nos ruídos que subiam as
escadas. Muitos, perseguindo compensações simbólicas, mantinham-se
agarrados ao que restara de seus bens, recusando-se a descansar suas
malas no chão.
Sorrisos esboçavam-se entre estranhos. Perguntas nervosas e
sussurrantes, concentrando obviedades, ricocheteavam pelo imenso
corredor. Mesmo que um silêncio mortal fosse exigido, pequenos
sinais de cumplicidade burlavam a vigilância, anunciando alianças
ocasionais. A situação peculiar fazia com que a ansiedade comum
fosse derretendo aos poucos qualquer espécie de reserva. Logo ele
percebeu que boatos e ilusões alimentavam a expectativa do grupo.
Era
visível e patético constatar que muitos estavam convictos de que
logo voltariam para suas casas, crendo piamente que não sairiam dos
arredores da cidade. Entretanto, o silêncio cavo e os olhos de
tristeza de outros deixavam bem claro que não estavam alheios ao que
lhes estava reservado, embora conservassem suas certezas sinistras
para o fogo da própria desilusão.
Um
cheiro de mofo, de secreções múltiplas, desafiando a lei e a ordem
dos boches, misturado a pó de arroz e a perfume barato, empestava a
atmosfera. Era como se todos tivessem se arrumado às pressas, não
tendo tempo para um banho.
Enfim,
estática e buliçosa, chapinhando na impaciência, a fila era híbrida.
Entretanto, seu esnobismo latente o excluía como a rapa do tacho,
fazendo com que se sentisse metido no rebotalho da comunidade.
Perscrutando a fila com certo interesse desidratado, ele constatou
que nenhum rosto lhe era familiar. Encontrava-se definitivamente
sozinho, entregue ao sabor das ondas, preso num mundo que zombava
das suas escolhas. Aliás, ele sempre estivera convicto do estado de
solitude que acompanhava o homem do berço ao túmulo.
“...I
like large parties. They’re so intimate. At small parties there
isn’t any privacy.”
Sem querer, ele
se lembrava de
The Great Gatsby,
como que para aliviar a pressão. Fora um dos livros que mais
vezes lera em toda sua vida.
Um
homem gordo, a sua frente, com olhar desconfiado, respirava com
muita dificuldade e cheirava muito mal. Ele era simplesmente
repulsivo. Sua dispnéia e seu peito cheio de gatos davam-lhe nos
nervos. Ele estava cheio de camadas de blusas e casacos de lã por
baixo do pesado casacão de tweed. Seu último casaco fora mal
abotoado, agravando ainda mais sua aparência desagradável. Seus
sapatos não viam uma graxa provavelmente desde a visita de Hitler,
em 1938. Suas mãos gordas, peludas e obscenas suportavam dois
brilhantes tão grandes quanto uma azeitona portuguesa. Ele merecia
um bom taco de baseball na nuca. Ouvira dizer que os alemães
estavam fazendo sabão com gordura humana.
Mas nada se comparava à
Marlene Dietrich
subnutrida que não parava de pisar em seus
calcanhares. Metida num tailleur de lã e enrolada numa
raposa, ela fedia a
Coty,
oferecendo àquele mundo miserável seus incisivos manchados de batom
vermelho. Sugeria a possibilidade de já ter administrado um bordel.
Entretanto, para ele, cansando-se
naquela imobilidade compulsória, muito próxima duma tortura, pouco
importava, de repente, que aqueles cretinos tivessem ou não lido
Scott Fitzgerald
ou
Sinclair Lewis.
Independente disto ou daquilo, estavam todos no mesmo barco. As
diferenças imprescindíveis haviam sido derretidas.
Mas
houve um tempo, não muito distante, em que ele chegara a discriminar
as pessoas pelo gosto, pelos referenciais acumulados, pelas
maneiras, até mesmo, pela questão de berço, dando-se ao luxo de
impor a si mesmo critérios de exclusão que talvez fizessem a alegria
dum nazista. A compaixão e a tolerância nunca estiveram em sua
cartilha. Bastava que alguém ferisse uma de suas regras pessoais. Um
sapato sujo, uma gravata inadequada, uma nódoa de gordura pelas
bordas dum copo, enfim, estas coisas eram suficientes para que ele
declarasse sempre uma guerra silenciosa contra o faltoso, passando a
desprezá-lo com todas as forças de sua capacidade para desenvolver
preconceitos.
Inesperadamente, sentia-se traído por si mesmo, principalmente, na
presença duma igualdade pavorosa que reduzia todos a gado para o
matadouro. Sim, uma situação-limite atirava todos no mesmo barco.
Melhor dizendo, no mesmo porão do barco. Contorcendo a boca num
sorriso amarelo, conseguindo conter suas lágrimas, ele encontrou
forças para agarrar-se em Santo Agostinho, creditando-o como
máxima: todos nasciam entre fezes e urina.
Aos
poucos, apesar da resistência e da arrogância de alguns, uma
humildade inesperada brotava, contagiando o grupo como epidemia. Mas
ele tinha certeza de que ela não poderia ser levada muito a sério,
principalmente, se não tivesse escrúpulos e julgasse a turba por ele
próprio, o que poderia ser um grande equívoco.
Aquela
humildade viscosa talvez fosse tão verdadeira quanto uma nota de
três dólares. Talvez tivesse sido provocada pelo medo invasor,
insinuando-se debilmente como uma possibilidade de saída
circunstancial, não passando de máscara. Entretanto, insurgia-se
também como uma atitude perigosa: dependendo de sua intensidade,
principalmente, se roçasse no servilismo, ela aguçaria ainda mais a
aversão dos algozes. Para os boches, ela saltava como mais uma
evidência da inferioridade da sua turma. Como mais um motivo para
que deixassem de existir.
Ele
tinha certeza de que se retornassem, por algum revés da sorte, a
suas vidas anteriores, cada pescoço voltaria à sua ereção habitual,
sumindo em muitos aquela inesperada curvatura na coluna. Como alguém
que retoma seu agasalho dum guichê de chapelaria, numa noite de
inverno, mal olhando para quem confere o bilhete, deixando uma boate
qualquer na direção da própria cama, tão logo se sentissem seguros e
protegidos por suas garantias habituais, reassumiriam cada parcela
de seus preconceitos, voltando à cegueira de seu orgulho intrínseco.
Aquela
transformação paulatina em suas personalidades era tão passageira
quanto uma tempestade de verão.
Relato n°15
“A ‘solução final’ da questão judaica significava o
extermínio total de todos os judeus na Europa. Eu tinha a ordem
de criar facilidades para o extermínio em Auschwitz, em junho de
1942. Naquela época já existiam os três seguintes campos de
extermínio no Governo Geral: Belzec, Treblinka e Wolzek. Esses
campos encontravam-se sob o comando especial da Polícia de
Segurança (SIPO) e da SD. Visitei Treblinka para averiguar como
eram realizados os extermínios. O comandante do campo de
Treblinka disse-me que ele havia liquidado 80.000 judeus no
decorrer de meio ano. Sua principal tarefa era liquidar todos os
judeus do gueto de Varsóvia. Ele usava monóxido de carbono e, a
seu ver, seus métodos não eram muito eficazes. Quando erigi a
construção de extermínio de Auschwitz, usei, então, Zildon B,
ácido cianídrico cristalizado, que introduzimos nas câmaras de
morte através de uma pequena abertura. Demorava de 3 a 15
minutos, dependendo das condições climáticas, para matar as
pessoas dentro das câmaras. Sabíamos quando estavam mortas, pois
cessavam seus gritos. Geralmente, esperávamos meia hora antes de
abrir as portas e afastar os cadáveres. Após sua retirada,
nossos Comandos Especiais tiravam-lhes os anéis e o ouro de seus
dentes.”
Rudolf Ferdinand Hoss – Comandante do Campo de Auschwitz
Dezesseis
Um
pouco atrapalhada pelas cãibras inesperadas e faminta, arrastando-se
lentamente, a fila começou a andar, deixando atrás de si manchas
disformes de detritos variados.
Surda
aos gritos que ordenavam que se apressasse, bifurcou-se em duas
salas de tamanho médio. Em poucos minutos, o comboio cansado
desapareceu pelo seu interior. Os corredores voltaram a seu
silêncio.
Atrás
das portas fechadas, ao invés dos cinqüenta alunos habituais, que
cada recinto suportava, sala por sala entalou próximo de duzentas
pessoas, incluindo, homens e mulheres aptos para o trabalho, velhos,
crianças em idades variadas, doentes recém tirados de seus leitos e
um bom número de estropiados com suas muletas.
Lá
fora, atrás do edifício, onde muito se jogou futebol e basquete, e
agora, de vez em quando, servia como local para fuzilamentos
sumários, mal as salas haviam engolido seu rebanho, três caminhões
de carga, sem toldo, acabavam de chegar. Esperando pela continuidade
da tarefa, os motoristas acenderam displicentemente seus cigarros.
Espichavam suas pernas em caminhadas sem destino e jogavam conversa
fora, quando, vindo na contramão, uma súbita chuva fina e gelada,
quase uma garoa, mas parecendo disposta a encharcar a cidade,
obrigou-os a voltar para suas cabines.
Bombas longínquas,
talvez apertando ainda mais o garrote da esperança, pareciam dizer
que nem tudo estava perdido. Muitos diziam que os Yanks
estavam bem próximos. Eles libertavam a Europa, distribuíam
chocolates, leite condensado, chicletes - em troca, pisavam em minas
alemãs e contraíam uma boa gonorréia italiana.
Relato nº16
“Apenas quinze minutos após, a chaminé começou a cuspir
grossas nuvens de fumaça preta, com cheiro adocicado, que se
espalhou sobre todo o campo. Surgiu uma labareda com mais de
dois metros de altura. Logo, tornou-se insuportável o fedor de
gordura e cabelos queimados. E os caminhões continuavam passando
sempre pelo mesmo caminho. Contamos 60 viagens nesta noite...
Pouco depois do último carro desaparecer, os primeiros caminhões
retornaram carregados de bagagens e roupas dos mortos, que eram
levadas ao depósito.” Ella Lingers-Reiner
|