A obra de Maria Estela
Guedes, Arboreto, lançada, recentemente, pela Arte-Livros,
editora brasileira, traz para nós um conjunto de poemas,
simplesmente, extraordinários num contexto perverso, visto que,
sabe-se, a era contemporânea estimula, talvez, como nunca em
períodos anteriores, um absurdo individualismo. Ora pelos projetos
políticos neoliberais que predominam enquanto modelos a serem
seguidos, especialmente, no Ocidente, ora pela parafernália
tecnológica, na maioria das vezes, aliada das transformações que
resultam no homem solitário, sem voz, sem capacidade de
interlocução, alheio a uma relação intersubjetiva. O saudoso poeta
mexicano, Octavio Paz, há muito tempo já afirmava que o homem nasce
e morre só. Tal afirmativa nunca foi tão agudamente atual e
oportuna. |
Quem é o poeta? Aquele que um
dia foi o portador da verdade. Que verdade? De maneira simples
pode-se inferir: uma verdade que não era colocada à prova com
critérios de repetibilidade, verificabilidade e tantos outros que
sustentam determinados paradigmas do que hoje se entende por
ciência.
Quem é o poeta? Um sonhador
barato que, via de regra, é inspirado por Musas que habitam o Olimpo
e protegem os artistas, dentre eles, os poetas que possuem o dom de
se transportarem para um passado coletivo e revelar os desígnios
humanos, o passado, a memória coletiva.
Quem é o poeta? Um mero
contemplativo à procura de ícones para materializar seus sonhos
impossíveis. Um inativo sonhador em busca de possibilidades para
tornar a existência mais suportável. Só. Somente isso. Um ser que
não age. Não possui senso prático. Desconhece as necessidades
materiais que subtraem do restante uma temporalidade que pouco vale
na era do capital.
Quem é o poeta? Produtor de
sonhos, fantasias e utopias que um dia poderão se tornar realidade
ou não. Produtor de possibilidades que poderão ou não se
materializar. Produtor de conceitos que elucidam e desmascaram
camadas de signos que encobrem o real. Produtor de profundas
reflexões em todos os níveis.
Quem é Estela Guedes? Uma
escritora, ensaísta e poetisa nascida em Portugal que teve e tem a
coragem de escrever poemas nos dias de hoje. Consegue, felizmente,
dar voz a diversos segmentos. Não inspirada pelas Musas do Olimpo,
mas por meio de um trabalho árduo com as palavras, possibilita,
nesta obra, um longo diálogo com a natureza. Especialmente, com as
árvores que, um dia, estiveram presentes em sua vida : vivida,
imaginada, sentida, fantasiada, projetada. Somente ela, de fato,
poderá responder.
A natureza apresentada por
Estela dialoga, naturalmente, com referenciais universais, como por
exemplo, os deuses e deusas da mitologia grega, com os valores
cristãos, católicos apostólicos romanos e outros, mas, eis um dado
importante que se observa, de forma mais geral, em sua literatura:
não há julgamento. A poetisa não se coloca nem contra, nem a favor
de valores consagrados. Seu diálogo aparentemente sem qualquer
intenção, demonstra o quanto ela joga para os leitores o julgamento,
se estes acharem necessário. Ela possui uma posição contemplativa no
bom sentido da expressão. Os leitores que analisem os fatos caso
isso lhes convenha.
Arboreto contempla, nessa
perspectiva, em certa medida, um trabalho primoroso de memória.
Estela, como já foi mencionado anteriormente, dialoga com o
patrimônio cultural, mais distante, ancestral da humanidade.
Todavia, em muitos poemas, talvez, na maioria deles, seu trabalho é
um intenso exercício de memória que felizmente dá espaço a outras
que compuseram sua vida. É o caso, por exemplo, do poema «A tília de
Isaurita»; neste poema, a autora busca resgatar e reforçar o carinho
por sua tia. A árvore idosa e majestosa de Isaura, num dia de
temporal, é rachada ao meio e, ainda por cima, atrapalha a estrada.
Relata o desespero de Isaura que vê sua doce companheira ser abatida
pela catástrofe e parte de sua memória jogada ao vento. A tília não
somente de repente virou um estorvo, como virou lenha. Triste
destino. Mas a árvore, finalmente, floresce em seu toco e a promessa
de que para as gerações futuras ainda haverá muita sombra e chá. Ou
seja, a tradição e uma longa história da árvore deverão permanecer
com as gerações futuras da família.
Um outro poema que chama a
atenção, entre tantos outros que mereceriam destaque, é o dedicado à
Figueira. Trata-se de uma árvore que foi eternamente fiel à
Gravelina. Durante anos Gravelina comia embaixo dessa árvore. Comia
pão com “os figos mais pingados de mel”. Mas... um dia a personagem
morre. No mesmo ano da morte a figueira não dá mais figos e também
morre. Aqui uma clara alusão de que há um elo profundo entre a
natureza e a humanidade. Até que ponto a natureza é indiferente ao
homem?
O Pinheiro do Paraná, Brasil,
também é contemplado por Estela Guedes e indica que ela conhece, de
perto, várias regiões brasileiras e a vegetação não lhe passou
despercebida. Em muitos outros poemas as paisagens nacionais estão
presentes, como por exemplo, no poema Jacarandás. “Brasil das
diferenças/ O graffiti e o slogan impressos/ Nas paredes do
casario/Garantindo que o império dos signos/ Alegra a cinza térrea
do casais/ Com pouco dinheiro”.
No mesmo poema a autora faz
um percurso por bairros de São Paulo. Exalta, inclusive, alguns
locais da cidade paulistana e, como sempre, exaltando as árvores que
compõem o cenário, diversas vezes, árido.
Enfim, este livro possui a
riqueza de uma literatura que se propõe a representar e materializar
uma perspectiva subjetiva singular, única e, sobretudo, por alguém
que sabe perfeitamente quais os principais objetivos, declarados ou
não, da boa, velha, insubmissa e esclarecedora literatura. Poesia e
imagens poéticas com graus de uma sensibilidade incomum.
Lembrando nosso saudoso
Benedito Nunes: a teoria corresponde a uma certa perspectiva de
apreensão intelectual. A ciência, por si mesma, não consegue
uniformizar idéias e conceitos.
Contudo, a contemplação
daqueles que produzem literatura é carregada de signos sensíveis,
signos desmaterializados, diria Deleuze, e como tais, somente eles
podem captar o que há de mais recôndido na alma humana, propiciando
diálogos intermináveis com a natureza, com a humanidade e com o
universal. Baliza, sem contradições comuns, a interlocução entre os
seres como se tempo e espaço fossem, definitivamente, subtraídos ou,
pelo menos, atenuados.
Uma árvore que fala. Uma
árvore que chora. Uma que ri. Outra que seca. Enfim, árvores, de
alguma maneira, sempre fizeram parte da história da humanidade. Em
especial de pessoas sensíveis.
As árvores falam? Para os
poetas as árvores falam da mesma forma que as estrelas. Aliás, para
os poetas estrelas dialogam sem ruídos de comunicação com as
árvores.
Destaco o poema «A Cerejeira»:
São pessoas com raízes
tão fundamente enterradas
no coração
que sangram por espinhos
finos acúleos
e deixam regos de cicatrizes.
As árvores são antepassados
de braços erguidos sobre a carapinha.
E a cerejeira tão velha
toda ela portas abertas
para nós amantes.
A partir do conjunto exposto a
poetisa Estela Guedes, como uma verdadeira estrela, do alto,
concretamente: dos subterrâneos de sua subjetividade (onde moram
suas memórias) traça um diálogo com nossas vidas e, na verdade,
entre o significado das árvores, particularizando a cerejeira, como
nas seguintes estrofes:
Somos a cerejeira
dobrada sobre si mesma
a segurar nas mãos a dor em brasa.
Cintilam ideias, fulguram mentes
agitam-se as folhas tagarelas
dos choupos tremedores
mas nós somos a interdita cerejeira
de punhais trespassada
à porta dos pais fechada
os velhos sentados na laje antiga
dos provérbios contados
à soleira da nossa choupana
enquanto galinhas debicam grãos de sol
na crepitação da palha
despedem centelhas os folículos
das espigas e rente ao chão
nos agostos insondáveis
vibra a colcha acetinada
……………………………….
Zumbem insetos à volta dos toros
carcomidos dos anos
no chão sem sentidos empilhados
porque as árvores envelhecem
como os amos
e merecem como eles morrer de antigas.
………………………………….
Barraram a passagem à memória
este dia é de defuntos.
Não há chaves não há chaves
não há chaves
de platina nem de latão
capazes a abrir as portas
que a cerejeira abatida
fechou ao coração.
As memórias das árvores
misturam-se às humanas possibilitando uma crescente aproximação
entre o humano e a natureza, aproximação esta, muito esquecida nos
grandes centros urbanos.
Outro dia me disseram: “Que
vontade de abraçar uma árvore! Senti-la em meu peito!” Arboreto
resgata, entre outras coisas, esta vontade do homem de um contato
mais íntimo com a natureza em si.
Resta uma resposta à indagação
inicial: As árvores falam? Falam. Exclusivamente para aqueles que
possuem sensibilidade auditiva para escutá-las e sentir a leveza de
um sussurrar. |