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Alice Macedo Campos |
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argumento 102 |
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a mulher segue, visivelmente carregada com sacos de compras,
percebem-se uns troncos frescos de alho francês, outros legumes,
fruta, garrafas de água, leite, pacotes de sal e infortúnio.
o que a seguir nos comove é a sua imensa barriga de grávida
terminal, os tornozelos inchados, as pernas cansadas de tanto peso,
afinal, é a sua vida, a vida da criança, a vida na sua totalidade, o
que leva.
a certa altura, a mulher cai, vencida pela guerra das águas, um
enorme fluxo de líquidos inunda-lhe a roupa, escorre pelo mosaico do
chão, no meio dos tomates derrubados.
quis o destino que a queda aparatosa da mulher se desse em frente à
porta de uma alfaiataria, e que um homem no seu interior,
proprietário da loja, embora muito ocupado com o corte do fato de um
cliente, tenha ouvido os gritos desta mulher, em súbito trabalho de
parto.
de imediato acorreu junto dela, com fita métrica ao pescoço, e lhe
tirou as medidas com eficiência de mestre hábil e experiente.
ainda a mulher agoniza, o homem, incapaz de auxiliá-la, entra na
loja e chama a costureira, que, numa atitude razoável de servir o
patrão e proteger o bom nome da alfaiataria, começa a lavar o chão,
recolhendo depois os sacos das compras para dentro.
satisfeitos ambos com as suas boas acções, resta-lhes dar solução à
pobre mulher, ali deitada à porta da loja em convulsões, cena que
poderá alarmar os vizinhos ou transeuntes.
o alfaiate troca algumas palavras com a costureira, discutem o que
mais poderão fazer, enquanto, de tesoura em punho, vão cortando
mangas e costuras.
por esta hora, já os gritos da mulher se transformaram num murmúrio
suplicante, e só se ouvem os gemidos profundos da sua dor.
entretido com uma bainha, o alfaiate pica-se de repente, quando a
costureira lança no ar um "já sei" inesperado, "já sei o que fazer",
repete-se ela sem parar, "faça o que sabe", "faça o que faz melhor",
insiste.
subitamente iluminado por estas palavras mágicas, e com uma boa dose
de linha grossa, o alfaiate cose a vagina da mulher.
agulha acima, agulha abaixo, os lábios são unidos em ponto cruz, num
trabalho de beleza incomparável.
a costureira aplaude e faz uma fotografia do acontecimento.
a criança sufoca no interior da mãe.
a mulher morre grávida.
afinal, é a sua vida, a vida da criança, a vida na sua totalidade, o
que leva. |
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Alice
Macedo Campos nasceu a 5 de Maio de 1978, em Penafiel, onde reside. É
licenciada em Gestão de Recursos Humanos e Psicologia do Trabalho
pelo Instituto Superior de Línguas e Administração. Começou a publicar
através da internet, em 2004, tendo participado pela primeira vez numa
antologia em 2007. Publicou o seu primeiro livro, O Ciclo Menstrual
da Noite, em Maio de 2008. No mesmo ano, participou num Concurso
Literário promovido por uma editora de São Paulo, tendo alcançado o
primeiro lugar com o poema Ensaio sobre a Ruína, o qual foi
publicado numa antologia luso-brasileira com o título Folhas ao
Vento. Em 2009, participou na Antologia das Noites de Poesia de
Vermoim e na Antologia de Poesia Contemporânea, Entre o Sono e o
Sonho. Em Fevereiro de 2010, participou numa Conferência subordinada
ao tema Poesia e Ciência, inserida no Ciclo de Conferências
Diálogos com a Ciência, promovido pela Reitoria da Universidade do
Porto. A apresentação do seu segundo livro Um Cão em Cada Dedo,
realizou-se em Abril deste ano, na Casa da Cultura de Vieira do Minho.
Tem mais duas sessões de apresentação preparadas para Maio, na Faculdade
de Letras do Porto e na Associação Cultural de Espinho. Participou na
Bienal de Poesia de Silves. |
http://alicemacedocampos.blogspot.com |
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