REFLEXÕES NO ÂMBITO
DA CONFERÊNCIA SOBRE A LÍNGUA PORTUGUESANA ACADEMIA DAS CIÊNCIAS DE LISBOA
As palavras, as nossas
laureadas palavras, músculo e nervo do corpo vivo da língua, estão a
morrer. Escritores e jornalistas têm alertado nos últimos tempos para o
empobrecimento da língua portuguesa. A par das questões gramaticais, o
escritor Manuel Monteiro desenvolveu este tema numa interessante
entrevista concedida a Maria João Freitas (revista
Alice):
«Por que devemos manter
palavras eruditas na imprensa, no ensaio, na ficção? Por uma razão muito
simples. Deixar de utilizar as palavras é assassiná-las. E quando morre
uma palavra, morre com ela uma chave de decifração do mundo».
Pouco tempo depois, no
Jornal de Letras, o escritor Mário de Carvalho abordava, acutilante,
o mesmo assunto: «Os pensamentos, os conceitos fazem-se com palavras.
Quanto menor for o domínio vocabular, menos acesso temos à realidade e ao
pensamento. E há quem esteja interessado nisso. Nos primeiros tempos de
Salazar, os professores, na sua maioria republicanos, foram substituídos
por regentes escolares que ensinavam a ler, escrever e contar e, na
verdade, pensava-se que era isso tão só que os portugueses deviam saber.
Que se passa agora? O consumidor precisa de ler Camões e
Os Lusíadas, a mitologia? Não.
Basta que conheça o vocabulário elementar que lhe permita compreender um
anúncio. A pobreza, a miséria vocabular em que estão enclausurados os
portugueses é da mesma natureza do ler, escrever e contar que Salazar
entendia bastar ao povo».
Por seu turno, Ana
Cristina Leonardo inquietava-se há dias no "Atual" do
Expresso: «(...) A língua portuguesa anda a empobrecer muito (neste
caso, a culpa não é do AO). Leem-se os novos autores e a nossa "cabeça
estremece com todo o esquecimento" das palavras».
Há palavras sem conto
encerradas na caixa-forte dos valores procedentes das cinco partidas do
mundo por onde viajou a língua portuguesa. Levámos umas, trouxemos outras
— numa fértil permutação. Palavras antigas. Garrett fazia uma distinção:
«Fugi de palavras antiquadas, mas não desprezei as antigas.» Basta ler uma
edição original de qualquer romance oitocentista para nos darmos conta do
vasto número de vocábulos extraviados ou adulterados que deveríamos
recuperar ou assear. Não se trata de uma busca tolinha de palavras
eruditas, impenetráveis. Precisamente o contrário: algumas dessas palavras
revestem-se de tão imediata e exata definição que representam uma economia
vocabular. Necessitaríamos, por vezes, de três ou quatro para expressar a
mesma ideia.
Por fortuna ressalvam-se
"novos autores" como Manuel Monteiro. Apraz enaltecer os cuidados de um
jovem escritor não só pela gramática que tão desonrada anda mas também
pelo léxico. Admiro os voluntariosos socorristas das palavras em vias de
extinção. Vejo-os como biólogos cultores da recuperação de material
genético nas pagelas álgidas de
postilas que foram esbodegando-se no milheiral das invernias. Entre os
meus dilectos (vocábulo não usado por acaso) avulta Baptista-Bastos, douto
sénior a quem me arrima uma camaradagem e admiração de meio século. Sendo
leitor amiudado das suas crónicas, sem esforço de memória enumero algumas
expressões recorrentes:
·
preopinante.
Não é preciso ir ao dicionário para que este adjetivo nos deixe
transparecer um sujeito enfatuado que opina com ignorância,
precipitadamente, antecipando-se a outros mais habilitados para o fazer. E
tudo isto numa única palavra!
·
discretear.
De discreto. Conversar com
discrição, placidamente. Uma expressão próxima mas
longe do mesmo significado seria
divagar.
·
cochilar
(dormitar). Verbo lindo mais usado no Brasil, já raramente ouvido e
escrito em Portugal.
·
batucar...
(...prosa, um artigo, uma notícia, etc.) De
batuque. Claro que o verbo está
dicionarizado e não se trata de palavra perdida. Registo-a pela
originalidade de uma expressiva analogia fonética com o banal
teclar numa máquina.
·
envilecer
(tornar vil, miserável). O verbo, tão desusado, é consideravelmente mais
áspero que o comum desprezar.
De Manuel Monteiro retenho
solífugo, (sole + fugere, fugir) — extravagante definição de uma criatura noctívaga
(humana, no seu livro) que execra a luz solar (foge do sol), vivendo em
permanência nas trevas. O autor do romance
O Suave e o Negro saberá que ao
desentranhar esta palavra vai assarapantar muitos leitores? Estou em crer
que sim: sabe. Entrevejo-lhe um secreto e voluptuoso propósito de nos
fazer perscrutar o dicionário. Foi o meu caso. Está perdoado. O vocábulo é
arrevesado, reconheço no entanto que o vizinho
noctívago (que vagueia de noite)
não possui o mesmo significado.
A propósito de noite,
calha bem uma recordação de há trinta anos. Saíra um novo livro de Maria
Velho da Costa, comecei a lê-lo... e... tropecei logo à sexta linha da
primeira página. A autora está a descrever uma paisagem noturna, escura,
que esconde uma bela e quieta cidade. Poderia transmitir a visão daquela
cidade como se a mesma fosse uma joia protegida pelo arvoredo e pela
própria noite densa. Em vez disso escreve uma só palavra: escrínio.
Escrínio?! Que bicho medonho é este?
Perguntei a quem estava
próximo:
— Escrínio. Sabes o que é
um escrínio?
A ignorância veio afagada
de ironia:
— Incrível não saberes o
que é um escrínio!
Fui ver. Escrínio, meus
senhores, em português de lei quer dizer guarda-joias.
Não mais esqueci a palavra
e depois disso tomei conhecimento que se publicaram pelo menos três livros
em língua portuguesa integrando a palavra escrínio nos respetivos títulos.
Comigo, que já me vou
demorando na vida quase tanto como os zambujos, acontece-me uma felicidade
infantil de cada vez que aprendo uma palavra nova.
Em tempo:
zambujo, ou seja, uma
oliveira brava.
Pedro
Foyos
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