Este texto foi escrito para um livro póstumo.
João Botelho da Silva morreu pouco tempo
depois de entregar à editora o original deste livro. Uma obra póstuma
aos 27 anos é um facto brutal, insuportável. Esmaga pela opacidade
absoluta das razões que não conseguimos decifrar – porque são,
realmente, numa vagarosa e dilacerante evidência, indecifráveis.
Tratando-se, como é o caso, de um dos mais significativos escritores
portugueses dos nossos dias, tal circunstância redobra o obsessivo
efeito de revolta.
(...) Deixou um livro publicado (Beduínos
a Gasóleo, romance portentoso, Prémio Caminho de Ficção Científica)
e um valiosíssimo espólio literário em prosa e poesia.
Concluído e entregue à editora ficou este
livro de contos. Concluído? Vacilo e comovo-me porque o vocábulo não é
inteiramente exacto. Guardo na memória, como um fotograma luminoso num
filme longínquo, o dia em que o João me entregou o original. Costumava
pedir-me a leitura e análise das suas ficções, antes de publicadas,
fazendo o mesmo com seu Pai, o jornalista Botelho da Silva, e sua
mulher, Isabel. Comigo brincava, nessas ocasiões: «Em antestreia
exclusiva para a excelentíssima crítica!» Era uma alusão chistosa ao
facto de eu assinar, nos últimos três anos, no suplemento Cultura
do Diário de Notícias, uma secção de crítica literária. Ambos
jornalistas daquele matutino, amiúde lhe antecipava, igualmente, os meus
textos destinados à coluna. É preciso dizer, agora, que muitas das
minhas ideias, das minhas palavras escritas, lhe deviam a consciência
subliminar e estimulante das suas experiências, da sua cultura, dos seus
sentidos, do seu mundo fantástico. Uma partilha límpida, como a pulsação
essencial à artéria, porém subjacente, invisível. Um companheirismo
germinado, singularmente, na paixão comum por um género literário e que
foi crescendo na vivência fraterna de sonhos, projectos, descobertas,
permutas, alegrias e secretas cumplicidades. Tudo isso num voo pleno,
sem escalas geracionais: a minha idade quase dobrava a dele.
Por outras razões tinha aquela secção um
especial significado. Ali lhe foi feita a primeira referência como autor
literário. (Um pacto, na ocasião: eu renunciaria a empregar a detestada
expressão «promissor», reportada ao seu talento; em contrapartida, ele
obrigar-se-ia a acolher as minhas presunçosas sugestões... «bem,
cinquenta por cento», concedeu.) Ali se celebrou o prémio com que a
Caminho o distinguiu. No mesmo local se publicou aquela que seria a
primeira crítica a um livro seu. Quase mais entusiasmado do que ele,
alvitrei no jornal uma grande entrevista, que efectivamente me
autorizaram a fazer-lhe e se publicou em três páginas. (Sem coragem para
enfrentar a Redacção, o João gozou, nesse dia, uma folga atrasada.)
Volvida uma semana apresentei-lhe o romance de estreia em sessão
pública, coisa que jamais pensaria fazer com quem quer que fosse e jurei
que não se repetiria. Tento dizer, simplesmente: eu vivia, com
intensidade, a aventura da sua imaginação. Talvez se perdoe, por isso, a
tentação da despedida, o inevitável lugar-comum do texto sentimental, a
pieguice tão falha de originalidade, e neste momento adivinho-lhe a
reprovação mordaz: «Oh, não!, mete o violino no saco!»
Apressado, a escrita vertiginosa
ultrapassava-o por vezes na reflexão. Nos últimos tempos angustiavam-no
incertezas relacionadas com os seus contos admitidos para publicação.
Manifestava certa contrição pela entrega, porventura precipitada, do
original à editora. Disso me deu conta, logo naquele dia – fragmento
inapagável na minha memória – em que me confiou uma cópia: «O livro já
está na editora, não te espantes, mas olha, deu-me para ir levá-lo. Não
fiques preocupado, o processo de feitura é tão lento que dará para
introduzir todas as alterações que virmos ser necessário.»
Tomei o peso da resma que me passava para
as mãos e olhei-o cheio de perplexidade, sem entender a razão daquela
impaciência.
(...) Eu fazia um esforço desajeitado para
não o envaidecer. Terminada a leitura do livro, projectei enviar-lhe uma
mensagem através do circuito informático interno do jornal. Uma frase
breve, grave, do género: «Escreveste algumas das melhores páginas da
literatura portuguesa de todos os tempos.» Sabe-se que o temor pela
reverência excessiva leva a refreios autocensórios. Portanto, ao reler a
frase, talvez a alterasse para: «Pois bem, João, creio que terás escrito
algumas das melhores páginas da moderna literatura portuguesa.» Mas não
cederia mais do que isso. E sorriria ao imaginar a reacção costumada de
certos bem-pensantes se resolvesse um dia publicar essa opinião: «Tudo
certo, mas... o meu amigo queria referir-se à literatura de ficção
científica, não é verdade?» Não, não é verdade.
Claro que não enviei mensagem alguma ao
João. Existem tácticas manhosas que não devem ser desvendadas.
Refira-se, tão-só, que um elogio desmesurado pode deitar tudo a perder
quando pretendemos que o autor se entregue a um trabalho zeloso de
aperfeiçoamento final da obra. Depois, mas só depois, lhe diremos ter
realizado uma obra-prima.
O livro que eu acabara de ler carecia
manifestamente de uma revisão estilística. Nas margens do texto fizera
dezenas de anotações com o fim de o autor considerar a reformulação de
expressões repetidas, construções gramaticais, pontuação e um ou outro
trecho que, no ânimo das descrições impetuosas, resultara menos
inteligível. E o original já na posse da editora!
(...) «Achas que, depois disto tudo, a
editora quererá publicar mais algum livro meu?», perguntou-me, uma
tarde. Ele acolhia com ingenuidade certas afirmações disparatadas, e
terá sido por isso que lhe respondi, sentencioso, desafiante: «Com toda
a certeza que não.»
Começáramos a analisar todas essas
questões quando...
... de súbito, o seu corpo gritou, num
rebate tardio, o avanço do cancro.
Exacto: escrevo cancro, a eufémica
"doença prolongada" que urge banir do vocabulário jornalístico.
Depois, foi o terrífico percurso escarpado
de angústias, de pânicos murmurados, a esperança estreitando-se nos
pobres corações dos seus amigos. O nosso debate foi sucessivamente
adiado: «Trata de sair deste hospital», pedia-lhe, «temos a agenda
atrasadíssima!» Mas o livro ficou intocado. Fixo agora, vezes sem conta,
a "agenda de trabalhos" que permanece aberta, protelada por um
desencontro absurdo, incompreensível. Talvez não irremediável. Sempre
acontece comigo, nos dias finais, isto: olhando o Sol matinal, por um
instante dolorosamente efémero acredito que reatarei conversas antigas.
João Botelho da Silva morreu há quinze
anos, que se perfazem agora.
O livro referido nesta crónica foi
publicado mais de um ano depois, com o título "As Horas do Declínio". A
edição ficaria marcada por vicissitudes que me impeliram para um corte
de relações com o director editorial da Caminho.
Vi pela última vez o meu amigo na manhã
em que fui dar sangue, no Hospital Egas Moniz. Morreu nessa semana, a 23
de Abril.
Somos animais cronólogos, servos do
sempiterno calendário, não conseguimos fugir aos ritos das datas.
Partilho esta evocação com quantos já
perderam um grande amigo e, em certos dias, desejariam escrever-lhe uma
carta sem morada. |
Pedro Foyos
(Portugal)
Num percurso de meio século entre os
mundos do Jornalismo e da Literatura, passando pelas Artes Visuais,
Pedro Foyos dedica-se desde 2006, exclusivamente, à ficção e à crónica
de atualidade.
Iniciou muito novo a atividade
jornalística no diário República – único declaradamente de
oposição à Ditadura. Durante vários anos conciliou o jornalismo com a
vida académica, participando nos movimentos estudantis que recrudesceram
no País a partir de 1962. Na condição de jornalista e ao mesmo tempo de
estudante foi-lhe possível, com a colaboração dos correspondentes da
imprensa estrangeira, transmitir para o mundo, durante quase toda a
década de 60, os acontecimentos das sucessivas crises académicas, com
realce para as de 1962 (Lisboa) e 1969 (Coimbra).
Depois da revolução de 25 de Abril, no
início do chamado Verão Quente de 1975 e na sequência do dramático
encerramento do histórico jornal República, dirigido por Raul
Rêgo, passou dois meses a correr o País, com o jornalista Vítor Direito,
ao abrigo da solidariedade de tipografias democráticas dispostas a
imprimir o Jornal do Caso República, publicação clandestina com
tiragens de cem mil exemplares e que não podia produzir-se mais do que
uma vez no mesmo local. Em Agosto desse ano foi co-fundador do diário
A Luta, onde se manteve como redator e diretor de arte até próximo
da sua extinção. Ainda nos anos 70 trabalhou em várias publicações da
empresa jornalística “O Século”, com realce para as revistas O Século
Ilustrado e Vida Mundial. Seguiu-se o Diário de Notícias,
onde integrou a chefia de redação, sendo responsável, nomeadamente, pela
revista dominical e edições especiais. Empreendeu em simultaneidade
vários projetos editoriais no âmbito da Fotografia, Cinema e Artes
Visuais em geral, fundando e dirigindo um jornal e duas revistas. Fundou
também a coleção Grande Reportagem, consagrada a momentos
assinaláveis do jornalismo português, tema que já antes lhe inspirara o
livro O Jornal do Dia, e, mais tarde, A Vida das Imagens.
Insere-se ainda nesse domínio Grandes Repórteres Portugueses da I
República.
De permeio exerceu durante doze anos a
presidência da Associação Portuguesa de Arte Fotográfica, tendo fundado
e dirigido um Anuário da especialidade. Realizou por essa época várias
exposições individuais de fotografia e de foto-pintura.
No campo do ensino e formação orientou
estágios profissionais de Tecnologias de Comunicação na especialidade de
Psicologia da Leitura.
Interessado igualmente, desde muito
novo, pelos temas científicos, fundou o Centro de Estudos das Ciências
da Natureza, direcionado em especial para as camadas juvenis.
No termo deste ciclo começou a
dedicar-se à literatura de ficção, primeiro com O Criador de Letras,
um romance inspirado no tema da invenção do alfabeto, tendo como cenário
social a vida quotidiana no Próximo Oriente Antigo. A obra seguinte,
Botânica das Lágrimas, protagonizada por crianças e cuja acção
decorre inteiramente num jardim botânico, mereceu do escritor Miguel
Real a qualificação de «romance marcante na literatura juvenil
portuguesa.» (in Prefácio à 2ª edição).
(Fonte: Wikipédia) |