1. O "BULLYING" E O SOFRIMENTO DE CRIANÇAS
DISSOLVEM-SE DE NOVO EM ARGUMENTOS FRÍVOLOS QUE DESRESPONSABILIZAM OS
CULPADOS. NÃO HOUVE SUICÍDIO? ENTÃO, ESTÁ TUDO BEM!
Os inquéritos ao "caso Leandro" promovidos pelo Ministério Público e
pelo Ministério da Educação encontram-se encerrados (ou quase, no que
concerne ao primeiro). Em relação ao segundo presume-se que só não foi
ainda divulgado para evitar uma inconveniente sobreposição temporal com
o funeral do menino. Porém, as conclusões essenciais, apontando para
"acidente", estão a ser difundidas pela comunicação social.
Permito-me transcrever um fragmento da crónica que escrevi há três
semanas:
«A falácia continua a fazer o seu caminho. Não
haja dúvidas: o caso do menino que se lançou ao Tua não tardará a
ser engolido pelo refugo-padrão dos actos de desespero por causa
indeterminada.»
Fui optimista. E em parcas linhas enganei-me duas
vezes. Primeiro, admiti que pelo menos viesse a ser reconhecido, como em
casos anteriores, o eufémico "acto de desespero". Depois, desta vez o
episódio nem foi remetido para o habitual gavetão das "causas
indeterminadas", também rotulado de "causas mal definidas". Seguirá
lépido para o gavetão sem fundo que tradicionalmente está adstrito às
"causas indeterminadas" – o dos "acidentes".
Em recente entrevista à RTP tive oportunidade de
denunciar a dita falácia (o mínimo que podemos chamar a um recorrente e
documentado artifício que há muito se pratica neste país) e de imediato
recebi de doutos especialistas um conjunto de informações que
desconhecia. Por exemplo, a de Portugal apresentar um índice elevado de
"mortes por causa indeterminada", superior à média europeia. Morre-se
muitíssimo, por aqui, misteriosamente. Mais: há dois anos, a Assembleia
Parlamentar do Conselho da Europa expressou inquietação pelo tabu do
suicídio adolescente, fazendo apelo aos países-membros para que
assumissem este tema como prioritário e combatessem as causas primárias,
ligadas sobretudo à violência física e/ou psíquica. Pois entre nós, como
bem sabemos, nada se fez e o "bullying" atinge igualmente na actualidade
uma das mais altas taxas no conjunto dos países europeus, não cessando
de crescer (só no último ano lectivo aumentou 3% em relação ao anterior,
segundo dados – sempre cautelosos – da divisão da PSP que engloba o
Programa Escola Segura).
Vale a pena reter outra informação atinente aos
suicídios que ficam escondidos no gavetão dos "acidentes". Separar as
duas situações constitui um pleito antigo dos psiquiatras portugueses
especialistas em suicidologia. Defendem, até agora infrutuosamente, um
procedimento que tem a designação científica de «autópsia psicológica»,
cuja realização compete em exclusivo aos psiquiatras e psicólogos.
Excluído por completo do domínio da investigação policial / estatal /
corporativa, esse estudo consiste em entrevistar com específica
cientificidade o maior número possível de familiares e amigos da vítima,
visando a eventual propensão desta para a ideação suicida e averiguação
do grau conducente à consumação. Isto, assegura-me um psiquiatra que me
contactou, não é feito em Portugal. No caso de Leandro, salta aos olhos
das almas lavadas que vinha persistindo essa ideação suicida, comunicada
verbalmente, várias vezes, aos amigos. Se houve ou não consumação é uma
questão que já se coloca a um outro nível, sobretudo judicial, que
jamais poderá fazer esquecer o historial anterior ao dia da tragédia. No
entanto, é isso que facilmente se adivinha para breve.
Num momento inditoso, também um jornalista que
respeito subscreveu a tese frívola, a roçar o patético, de que Leandro
pretendia tão-só tomar um banho nas águas do rio Tua.
DESUMANIDADE ANTES E DEPOIS DA MORTE
«Todos fomos enganados» – escreveu na sua crónica do Expresso o meu
amigo e antigo colega de ofício (de local de trabalho, inclusive),
Miguel Sousa Tavares (MST). Sempre lhe admirei o desassombro e
honestidade intelectual. (Com imodéstia espero que continue a pensar o
mesmo de mim. Espantou-me por isso a docilidade pueril com que aceitou a
«versão corrigida» (expressão sua) do "caso Leandro", baseado numa
"antecipação" das conclusões policiais publicada pelo Diário de
Notícias. Escarificando uma dessas conclusões, MST é em especial
crudelíssimo ao escrever que Leandro «não se quis suicidar, mas apenas
tomar banho no rio, tendo sido levado pela corrente.» Sublinha depois
que «a fazer fé na segunda e corrigida versão, todos fomos levados ao
engano.» Por fim desanca «a nossa imprensa, quase toda, (que) vive à
procura de sangue, escândalos, tragédias ou heróis.» E que não procura
«a verdade da história além das aparências.» Justificadíssimas razões e
oportunidades não faltarão a MST para dar valentes açoites à «nossa
imprensa». Serei o primeiro a oferecer as velhas nádegas por pecadilhos
e juízos transviados cometidos em meio século de jornalismo. No entanto,
direi: nem que seja por uma vez, esta vez, «a nossa imprensa» procurou
de facto a verdade. Simplesmente, transmitiu-a em estado puro, antes de
maculada pelas "correcções de conveniência". (Será possível, Miguel, que
já tenhas esquecido o que são e como se fazem as correcções
históricas?).
Na verdade, causa perplexidade que MST "faça fé" na
«versão corrigida» e expurgue à unhada, como matéria tinhosa, os
inúmeros testemunhos espontâneos colhidos pelas dezenas de jornalistas
que desde o dia 3 de Março povoaram a área onde ocorreu a tragédia. Uma
futura História do Jornalismo conterá esse capítulo épico: «O LOGRO DE
MIRANDELA». E aflige a destreza com que o "caso Leandro" deixou de
concentrar-se na realidade sofrente de um menino vítima de "bullying",
durante dois anos, para constituir unicamente uma porfiada pesquisa
sobre as circunstâncias que envolveram a sua morte. A morte em si parece
não importar. As circunstâncias, sim.
Somos agora projectados para um cenário difícil de conceber. Dir-se-ia
que nas horas sequentes ao desaparecimento de Leandro houve imensa gente
que, apressadamente, antes da chegada dos jornalistas, se conluiou para
engendrar uma mentira colossal. Miúdos com idades entre os 11 e os 14
anos foram induzidos à mentira e a encenações mirabolantes. No que toca
aos adultos, que eu tenha dado conta, apenas uma pessoa não aderiu à
"grande trapaça" – o presidente da Associação de Pais, que começou por
negar o "bullying", depois eclipsou-se, não voltou a ser visto até hoje.
Os demais, jovens e adultos, devem ter-se aplicado num treino intensivo
da mentira, pois não se ouviu uma única voz dissonante. Tudo saiu
afinado. E os jornalistas, de boa fé, caíram na medonha cilada,
encerrando o ciclo da esquizofrenia com a notícia de que na Escola
Luciano Cordeiro, em Mirandela, alguns jovens (perto de uma dezena) eram
vítimas de "bullying" muito severo, entre os quais um aluno do 6º ano,
de nome Leandro Filipe, em sofrimento há dois anos e que por fim se
atirara às águas do rio Tua. (Sim, é verdade, há uma correcção a fazer.
Os títulos jornalísticos alteraram o verbo. A frase genuína de Leandro,
repetida aos amigos, era: «Não apanho mais, vou-me botar ao rio").
Todavia, agora que um menino dez-reis-de-gente, um dos mais franzinos da
Escola, está prestes a converter-se num temerário arruaceiro, afrontando
os colegas graúdos, talvez também um impostor, porque o suicídio já se
afigura duvidoso, e tão intrépido que ousou, numa terça-feira fria e
enevoada, tomar banho nas águas rápidas do Tua, terá interesse em
reflectir sobre o motivo porque os “Leandros” deste país têm de morrer,
na técnica expressão oficial, em consequência de infelizes "acidentes"
ou, com maior frequência, por “causas indeterminadas”.
2. POR RAZÃO DE HUMANIDADE, NENHUM INQUÉRITO CÍVICO DEVERIA ATRIBUIR O
CONCEITO DE "ACIDENTE" A UMA CRIANÇA QUE DURANTE UM TEMPO INFINDO FOI
EMPURRADA PARA O SUICÍDIO.
O verniz vocabular de expressões como "acidente" e "morte por causa
indeterminada" estala quando se examina com seriedade e isenção os dois
últimos anos da breve vida de Leandro. Esteve durante esse tempo infindo
em secreto e silencioso sofrimento. Mas os colegas sabiam que ele era
constantemente sovado por alunos mais velhos. Somente nas últimas
semanas, em especial na última, Leandro não conseguiu reprimir a dor e
começou a repetir a frase que no dia derradeiro, 2 de Março, foi
pronunciada em choro e numa terminante forma verbal: «Não apanho mais,
vou-me botar ao rio". Um minuto antes, Leandro sofrera nova e bárbara
agressão que foi presenciada por colegas. A imprensa do dia 4 noticiava:
«Os supostos agressores já foram identificados e estão a ser
acompanhados por um psicólogo na própria Escola.»
Desde o instante em que Leandro saiu disparado em
direcção à ponte-açude, tudo poderia acontecer. Encontrava-se sobre um
instável fio de arame, de tão fraca resistência que seria inevitável
partir-se como um ramo frágil que cede a uma tempestade súbita. E, ao
partir-se, o equilibrista cego poderia cair para o lado da vida ou para
o lado da morte. Caiu uma primeira vez para o lado da vida, em cima da
ponte, em resultado da refrega com o primo Ricardo Nunes, um ano mais
velho, que o impediu de lançar-se, ficando com um braço magoado.
«Depois», relata Ricardo, «desceu pelas escadas, foi ali para o parque
de merendas e de repente tirou a roupa e meteu-se na água.» Nesse
momento impreciso, Leandro caiu para o lado da morte. Se foi ou não um
acaso, se a vontade própria de Leandro influiu ou não na decisão mais
cruciante da sua existência, é quase um irrelevante exercício técnico.
Claro que, numa perspectiva judicial, é enorme a diferença entre as duas
situações. Mas civicamente não há qualquer diferença. O "acidente"
alivia porventura o peso de muitas consciências, desresponsabiliza quem
colocou Leandro no fio de arame, quem o empurrou para uma circunstância
limite, quem fez emergir na sua mente, ao longo do tempo, um ideário
suicida.
As palavras dos mestres psiquiatras são sucintas: não
existe complexidade na compreensão do ideário suicida, o qual cessa,
enfraquece ou fortalece em função da cessação, enfraquecimento ou
fortalecimento das causas que lhe estão subjacentes. No último caso,
poderá transformar-se repentinamente numa indominável irracionalidade –
a "grande e cega fúria" – latente durante poucas horas ou minutos.
Leandro atingiu esse estádio ao "sair disparado" da Escola, a chorar,
correndo para a ponte. É extremamente admissível que nesse momento
tivesse consumado o suicídio, não fosse a intervenção do primo Ricardo
com a luta entre ambos. Leandro fugiu depois para a beira-rio. Foi
possível assistir na RTP à reconstituição desse percurso, com a
jornalista Judite de Sousa e Ricardo ao seu lado descrevendo tudo, passo
a passo. Impossível, fixando os olhos deste jovem, escutando-lhe as
palavras nervosas, duvidar da sua dor, da sua sinceridade. Por tal
motivo, profundo é o sentimento de tristeza que sinto ao antever que
este e outros jovens da Escola Luciano Cordeiro, em Mirandela, vão
sofrer com as conclusões dos inquéritos oficiais ao "caso Leandro".
Porque tudo faz prever que tais conclusões os irão desmentir, que
negarão os seus testemunhos. Seria indispensável que a Escola, o
Ministério Público, o Ministério da Educação providenciassem com
urgência um apoio a estes jovens. Melhor do que eu o dirá a notável
pedagoga Professora Beatriz Pereira, porventura a maior especialista do
"bullying" em Portugal, autora de vários livros sobre o tema e
coordenadora (juntamente com a Professora Adelina Paula Pinto) da obra
"A Escola e a Criança em Risco", da qual extraio um trecho da secção
intitulada, precisamente, O bullying e o suicídio. Eis:
«O jovem que acabou por se suicidar escolheu,
provavelmente, um colega da sua idade com quem partilhou a sua
intenção. É já demasiado tarde para evitar a morte de um jovem, mas
não será tarde para apoiar o colega que partilhou aquela dor e os
outros colegas da turma. Pode ser importante falar com este jovem e
acompanhá-lo, para que ele não se sinta culpado do sucedido,
evitando assim os efeitos perversos da situação.»
Se já era importante apoiar e acompanhar os colegas
da turma de Leandro e todos os amigos que com ele privaram e o
estimavam, mais o será agora, quando lhes for dito que, afinal, Leandro
nunca existiu.
Pedro Foyos
Jornalista |