Pedro Foyos........

O que não foi dito sobre o caso do menino
que se lançou ao rio Tua

Alguns órgãos da comunicação social têm referido a tragédia do jovem Leandro, em Mirandela, como «o primeiro caso mortal de bullying em Portugal». Não é verdade. Não por culpa da comunicação social, que se limitou a repercutir declarações de entidades académicas e policiais. Não é verdade, insisto. Dito de modo mais frontal: é uma mentira antiga. Nos últimos tempos ocorreram vários casos que estão firmados em testemunhos pessoais e públicos de personalidades fidedignas de áreas adstritas ao fenómeno, em especial a da pedopsiquiatria. Foi precisamente um caso mortal que esteve na génese de uma investigação jornalística que desenvolvi durante largo tempo e vertida mais tarde para livro. Contudo, tragicamente, o número será maior que os dos testemunhos e das notícias difundidas em termos nem sempre explícitos.

Há cerca de três meses tive a oportunidade de circunstanciar neste espaço alguns aspectos menos conhecidos do fenómeno negro que, à falta de termos sintéticos nacionais, se internacionalizou como bullying. Aludi então ao insurgimento manifestado por destacados pedagogos portugueses sobre a forma como no País se ignora ou subestima o suicídio juvenil, não raro encoberto sob a falácia da “causa indeterminada”. A expressão exacta, convencionada, é: «acto de desespero por causa indeterminada». O bullying, uma ou outra vez associado a esses actos desesperados, não é assumido. E remete-se a explicação dos desfechos dramáticos para o domínio do mistério. Urge aditar outro facto incómodo: esta tem sido também uma forma expedita de os estabelecimentos de ensino se excluírem do embaraço de conviverem historicamente com um episódio de suicídio gerado pelo bullying.

A falácia continua a fazer o seu caminho. Não haja dúvidas: o caso do menino que se lançou ao Tua não tardará a ser engolido pelo refugo-padrão dos actos de desespero por causa indeterminada. Significativo que o vocábulo “suicídio” seja evitado quanto possível. A expressão “suicídio juvenil” está banida neste brando país.

Não menos constrange ler e ouvir afirmações (abundantes nos últimos dias) do género: «Na escola, todos batem uns nos outros, sempre foi assim». Ora, tal realidade nada tem que ver com bullying. Nenhum jovem irá suicidar-se na sequência de uma agressão isolada, de uma zaragata de recreio, até de uma forte cena de pancadaria. O bullying transcende esses episódios, mesmo que alguns deles possam atingir um grau de violência preocupante. Mais, imensamente mais, o bullying é uma tirania física e/ou psicológica exercida por uma entidade (quase sempre grupal) sobre vítimas frágeis (Leandro era uma criança enfezada), de forma continuada (semanas, meses, anos). Essa tirania poderá um dia conduzir a vítima a um acto suicidário. Às vezes, como tem ocorrido sobretudo nos EUA, o suicídio é antecedido de uma “chacina de vingança”.

O jovem Leandro saiu disparado da escola, a chorar, anunciando que ia atirar-se ao rio. Este fragmento de notícia traz à memória o caso de Jokin Cebrio, um menino espanhol que há algum tempo se lançou das muralhas da cidade de Hondarribia, onde vivia. Também Jokin abandonou a escola, repentinamente, e dirigiu-se a casa. Não estava ninguém. Deixou um papel informando os pais que não suportava mais a maldade de alguns colegas. Saiu e encaminhou-se para as altas muralhas. Choraria também, durante esse percurso? Podemos prever que sim. Chegado ao cimo, venceu todos os obstáculos físicos de segurança e lançou-se.

O bullying é também isto: fugir, fugir, fugir.

E quando fugir não é mais possível, resta uma fuga alada para a morte.

Pedro Foyos
Jornalista

Pedro Foyos nasceu em Lisboa, Portugal, em 1945. Perfazendo uma carreira profissional de mais de quarenta anos como jornalista e director de publicações, dedica-se também, atualmente, à literatura de ficção e de divulgação de temas das Ciências da Natureza. De entre os órgãos de informação onde trabalhou destacam-se o diário República (único jornal de oposição à ditadura de Salazar) e o Diário de Notícias. Neste jornal de referência na imprensa portuguesa integrou a direção de redação, sendo responsável, nomeadamente, pela revista dominical e edições especiais. Fundou a revista Nova Imagem, da qual foi director durante seis anos, e mais tarde a coleção Grande Reportagem.

Foi presidente durante uma década da Associação Portuguesa de Arte Fotográfica, tendo nesse período fundado e dirigido o Anuário Português de Fotografia.

É autor dos livros O Jornal do Dia e A Vida das Imagens. Organizou, a convite da Imprensa Nacional, uma antologia histórica, em dois volumes, consagrada a grandes momentos do jornalismo português no século XX. Estreou-se na ficção com O Criador de Letras ,um romance inspirado no tema da criação do alfabeto, tendo como cenário a vida quotidiana no Antigo Próximo Oriente.

Interessado desde muito novo pelos temas científicos, fundou o Centro de Estudos das Ciências da Natureza, ao qual continua ligado honorariamente e prestando colaboração na área da Botânica.

No campo do ensino e formação tem vindo a orientar estágios profissionais de Tecnologias de Comunicação na especialidade de Psicologia da Leitura.

Ficcionista, publicou o romance «Botânica das Lágrimas».