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JOÃO SILVA DE SOUSA
A Feira na Idade Média |
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«La foire ou le marché est
le rendez-vous périodique
de vendeurs et d’acheteurs, en des
lieux fixes, avec
les garanties d’une organisation
spéciale». (Huvelin) |
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1. Quando Luigi Illica e
Giuseppe Giacosa, baseados no livro de Henry Murger, escreveram o
libreto para Giacomo Puccini, para a sua obra-prima La Bohème, puseram
em cena, no II acto, Rodolfo, Marcelo, Colline, Schauhard, Mimi e Museta
com Alcindors, envolvidos pelo movimento e arrastar de vozes melódicas,
no Café Momus, no Quartier Latin, um bairro boémio de Paris.
Numa das primeiras cenas
do referido acto, aproxima-se um mercador das pessoas que estão na rua e
de outras sentadas às mesas do café, com uma montra de madeira que
carrega às costas, cheia de panos e lenços, e brinquedos de madeira que
fazem as delícias de adultos e crianças. Discutem-se preços e
qualidades. Os miúdos estão com os olhos esbugalhados, naquela fria
noite de Natal, olhando os bonecos. Um quadro que poderíamos seguramente
transpor para uma feira quatrocentista europeia e portuguesa, onde as
boticas móveis ou não, mais não prefiguravam que cordas esticadas onde
se dependuravam panos e lenços, e uma pequena bancada de madeira com
bonecada e utensílios domésticos para crianças e adultos. E quanto mais
estes certames de oito ou quinze dias se afastavam dos grandes centros
urbanos e se internavam no País, mais rústicas e inacabadas eram as
barracas que se levantavam naqueles dias festivos. A par, poderia ainda
haver o mercado semanal. E lojas, embora poucas, também as havia.
A casa podia ter uma
tripla função: a zona central do edifício, muito rudimentarmente
construído, diga-se, era a área de habitação. A parte traseira pode
destinar-se à feitura de objectos necessários à vida das pessoas que
habitam o imóvel, ou para vender, depois, em dias certos ou com banca
aberta todos os dias da semana, na terceira parte daquela que fica na
dianteira. Uma ou mais arcas com os géneros e objectos, uma banca para
exposição de alguns exemplares e uma corda esticada de ponta a ponta, de
onde se dependurava tudo o que se quisesse: panos e peças de roupa se
fosse o caso, lenço, lã, bragal, linho… É uma imagem que não nos é
difícil descrever, quer pelos dados que historiadores e arqueólogos já
descreveram, seja por visitas nossas às terras do Interior do País, onde
ainda se perfiguram casas pobres ou mesmo sobradadas e com mais de um
piso e apresentando esta tripla função, sem nos esquecermos da
tradicional quintã que mais ou menos alargada se nos mostra trabalhada e
produtiva, em termos agrícolas. |
IMAGENS |
2. Na Península Hispânica, nunca houve
feiras que tivessem atingido o grau de desenvolvimento das de Brie e da
Champagne, por exemplo, que tomavam lugar em Provins, Meaux, Reims,
Bar-sur-Aube, Lagny-sur-Marne, Brouges e Troyes, dando azo à comunicação
com as cidades italianas, principalmente, as da Lombardia e com as de
toda a região flamenga: Thourout, Lîlle, Gante, Bruges, Ipres,
Antuérpia, Roterdão, Amesterdão… que estabeleceram um intenso comércio
com o Atlântico, o Mar do Norte e o Báltico. Criaram-se indústrias
importantíssimas, como a dos tecidos de lã e diferentes artigos que
atraiam comerciantes com outros produtos, vindos de todas as áreas do
mundo conhecido e formando circuitos comerciais, de transporte, venda e
troca, que se sucediam de modo a tomarem conta do ano inteiro, num
círculo quase perfeiro (1).
Não podemos esquecer que, desde os
movimentos cruzadísticos, toda a Europa se transformou num continente em
expansão, numa nova dimensão e ritmo, primeiro com os Portugueses e, a
seguir, com Castela e, depois, já Espanha, a par de outros países que
contribuíram, forte e visivelmente, para a determinação de importantes
modificações, sobretudo na passagem do Século XV para o XVI, como
veremos mais adiante.
No séc. XII, cada uma das feiras
arrastava-se por cerca de seis semanas, mediando, entre si, tão-só o
tempo para o transporte das mercadorias da que cessava para aquela que
ia ter início (2); nem com as da Hansa – liga criada pelos burgueses de
Lübeck, uma aliança de cidades mercantis que estabeleceram e mantiveram
um monopólio sobre quase todo o Norte da Europa e o Báltico, a saber,
entre muitas outras: Hamburgo, Nuremberga e Bremen... (3) - nem com as
feiras italianas: Veneza, Pisa, Ferrara, Pavia, Modena, Verona, Milão e
Génova – com elevada preponderância nas ilhas de Creta e Corfu e, na
Itália, numa grande parte da planície do Pó – onde arribavam os produtos
preciosos da Índia e de outras paragens do Extremo e do Médio Oriente,
como jóias, perfumes e especiarias, trazidos também de Alexandria, da
Síria e de outros lados, onde as embarcações venezianas os faziam
carregar para a Península Itálica; ou escravos, couros, peles, carnes e
cereais que vinham da Rússia; e os canhões e outras armas, algumas
autênticas jóias e peças de arte, procedentes de Génova, a qual soube
reunir uma grande esquadra com o que lhe foi possível alargar o campo
dos negócios externos, através do estabelecimento de feitorias e da
assinatura de contratos no litoral do Mar Negro, no Mar Egeu e na costa
norte-africana. Era, a princípio, a “estrada” terrestre, através dos
Alpes, a que servia de escoadouro a este tráfico; depois, passou a
adoptar-se a via marítima, com a grande vantagem de os navios venezianos
transportarem, na derrota, os cereais de Leão e Castela, a cortiça, o
mel e o sal de Portugal, os tecidos flamengos, as lãs e o estanho da
Inglaterra e da Irlanda, as madeiras desta ilha e da Borgonha, as peles
e o trigo dos países do Norte. A comprovar está o facto de as restantes
cidades italianas poderem acompanhar Veneza na febre dos seus múltiplos
e variadíssimos negócios, caso de Florença, com couros, tecidos de lã,
veludos e sedas que se tornaram conhecidos e requisitados por toda a
Europa. A esta associaram-se Nápoles, Pisa e Siena, como dos mais
activos mercados industriais e comerciais, produtores e aquisitivos de
matérias com as quais se tornaram industriais especializados e grandes
exportadores. Os argentarii italianos, que surgiram a par dos notarii,
tabularii e tabeliones, incumbiam-se do registo dos contratos, cada vez
em maior número, em documentos escritos, como modo de guardarem a
palavra dada. Os argentarii eram uma espécie de banqueiros que obtinham
dinheiro através de empréstimo para particulares, elaborando o contrato
mútuo e registando em lugar próprio o nome completo e o título e/ou
profissão, se o ou a tiver do devedor. Os referidos banqueiros
italianos, graças à sua habilidade e aos capitais avultados de que
podiam dispor, dominaram as finanças de toda a Idade Média,
principalmente desde a segunda centúria. Os “estados” alemães seguiram
idêntico trilho, com a feira de Leipzig, fundada em 1170; de Hamburgo,
em 1189 e Ratisbona, de 1230 (4).
Estes exemplos mais não permitiam à
Península Ibérica do que criar os seus centros de troca de modo tímido,
bem à dimensão da “Espanha”, apenas se integrando nos circuitos
externos, pela necessidade de importar cereais e exportar sal, o produto
mais volumoso, sobretudo em Portugal. Em Leão e Castela, pontificavam as
de Valladolid (1152), Sahágun (1153), Cáceres (1229), Mérida (1300) e
Burgos (1339), numa dimensão muito semelhante a algumas das portuguesas
que punham em ligação – quando muito – a nossa costa ocidental, o Minho
e o Algarve com o hinterland luso-leonês/castelhano (5).
Para este renascimento económico e
administrativo ad hoc na “Espanha” cristã, após os séculos XI e XII,
contribuiu, indubitavelmente, o desenvolvimento sempre em crescendo das
peregrinações a lugares Santos: a Santa Maria, a Santiago. Pela rota do
Caminho de Santiago, chegavam à nossa Península muitos peregrinos que
pretendiam dirigir-se ao túmulo do Apóstolo e, juntamente com eles, um
bom número de mercadores e artesãos que se iam fixando, com certa
permanência, nas cidades, vilas e outros centros urbanos, mesmo
pequenos, localizados ao largo da rota da peregrinação. Eram Franceses,
Ingleses, Alemães, Italianos e Flamengos, migração dita franca para
Aragão e Navarra, ainda na direcção de Leão e Castela, Galiza e
Portugale. Facilmente se compreende o inevitável desenvolvimento
demográfico, mercantil, industrial e urbano dessa zona extensa do
Setentrião da Península. D. Teresa, mulher do Conde D. Henrique, ao
outorgar foral a Viseu, fala dos seus mercadores, por certo,
estabelecendo a ligação da cidade e da Casa da rainha com o Norte da
Península, Borgonha e com o Magrebe. nestes termos: “Et mercatores mei
qui morauerint in uiseo dent suum censum et illis nullam iniuriam
faciant. Totum autem quod seperius resonat ego regina tarasia concedo et
concessum semper esse firmiter mando”, ou seja “E os meus mercadores que
morarem em Viseu paguem o respectivo censo e não lhes façam nenhum mal.
Eu, rainha Teresa, concedo quanto acima consta e mando que o concedido
seja firme para sempre”.
Que pretenderíamos nessa época, com os
almocreves, marceiros e recoveiros, nomes por que os comerciantes
ambulantes eram chamados?
Queríamos, naturalmente, o mesmo que os
outros, isto é, importar panos da Flandres (tecidos de Bruges), e
diferentes objectos, como nos leva a concluir uma tarifa aduaneira da
portagem paga à entrada de Jaca e Pamplona, fixada pelo rei
navarro-aragonês Sancho Ramírez. Armas e telas francesas, panos
flamengos e outros artigos importava a “Espanha”, através de mercadores
que faziam a ligação com a França, ultrapassando os altos penhascos dos
Pirenéus. Pagava-se com ouro muçulmano (os párias) ou com tributos
cobrados ao ano que se satisfaziam aos governantes peninsulares pelos
reis das Taifas. Era ouro islâmico que, desta forma, passou para o
Ocidente peninsular. Que exportávamos? Objectos de cobre, cativos de
guerra, peles e mercadorias de luxo do Andalus, como, por exemplo, peças
de seda e tapetes. |
Á feira, á feira, igrejas, mosteiros,
pastores de almas, Papas adormidos,
comprae aqui panos, mudae os vestidos,
buscae as çamarras dos outros primeiros
os antecessores.
Feirae o carão que trazeis dourado;
Ó presidentes do crucificado,
lembrae-vos da vida dos sanctos pastores
do tempo passado.
[…] À feira da Virgem, donas e donzellas,
porque este mercador saiba que aqui traz
as cousas mais bellas.
(Gil Vicente, Auto da Feira)
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3. E falámos do mercador. O renascimento
comercial e urbano, desde os inícios do século XII, originou a reunião
anual de comerciantes em algumas localidades. Ele começa por seguir uma
certa rota regular. Também a época em que ele chega às povoações é a
costumeira, ou seja, ela passa a corresponder ao dia, mais ou menos, em
que o fez no ano anterior e que pode coincidir com o da celebração da
festa de um santo, e com uma romagem a um lugar de peregrinação anual.
Aliás, as datas as escolher deviam coincidir com certos dias festivos
mais importantes: a Páscoa, o período de tempo logo após a Quaresma. Com
Santa Maria de Julho, de Agosto ou de Setembro, o Corpo de Deus, Santo
António, Santiago (Julho), S. João e S. Pedro, S. Miguel de Maio e de
Setembro, Santa Iria e S. Bartolomeu; Domingo de Ramos, S. Cipriano, S.
Martinho, Santa Madalena, S. Lucas, S. Gonçalo, Santo André, Santa Vera
Cruz de Maio. Realizavam-se muitas delas, nas proximidades de uma capela
de um Santo venerado pelo Povo: tenha-se em conta o pedido endossado a
D. Afonso V pela vila de Almendra – decorria o ano de 1441 – para obter
uma feira franca, aquando da romaria que se fazia – por tradição,
diga-se – à milagrosa “casa muy solempne de sancta Maria” onde iam “em
cada huu anno no mês de Setembro […] muytas jemtes por muytos milagres
que faz E tambem por gaanharem mjl e tantos dias que teem de perdom”
(6). Aproveitavam-se, de amiúde, arraiais. São os casos de Santo
Agostinho, de Santa Vera Cruz e os que tomavam lugar bem perto das
milagrosas capelas de Santa Marinha e de Santa Maria de Setembro, onde
se cortavam e salgavam as castanhas e o vinho brilhava nas canecas de
barro, ou em S. Miguel de Setembro, em Tarouca, quando se comia o
Bazulaque, introduzido, em Portugal, pelos Gaels, uma das mais
importantes tribos celtas, muitos séculos antes, nome que lhes era dado,
nas suas estirpes irlandesa e escocesa, donde advêm o adjectivo e o
substantivo Gaelic, “gaélico” (7).
A Igreja, aliás, teve um importantíssimo
papel para fazer e desfazer certames como estes. Se contribuía para a
realização de festas litúrgicas com as quais deviam coincidir, iam
evitando, por outro lado, que o Domingo, dedicado ao serviço de Deus –
missa e sermão – e ao repouso semanal, fosse o dia de realização de
qualquer centro de troca. Opondo-se a este facto, também o rei de
Portugal fala da mudança do dia da feira de Leiria, por exemplo, que se
fazia “aa segunda feira E que por tempo pouco E pouco se começara de
fazer ao domjnguo E que fez assy alguus annos E que uendo os homees da
dicta villa Como nõ era bem de sse a dicta feira fazer ao domingo
ordenarom j de sse fazer aa terça feira”(8).
Diziam que havia aí, nas igrejas, “muytos
ódios E mal querenças […] que desto se seguia a mor parte por sse a dita
feira fazer ao dia de domingo. O que era pouco seruiço de deus E
Nosso”(9). Em 1332, por ordem do bispo de Lamego, D. Fr. Salvado
Martins, foi proibido também fazer mercado naquele dia e, em 1408, D.
João I transferiu para a primeira segunda-feira de cada mês a feira
dominical de Aguiar da Beira, porque o bispo de Viseu, D. João Homem [V],
a havia interditado, dado que – dizia ele – “Nos auemos por bem desse [sic]
nom fazer a dita feira ao Domingo, e de sseer guardado, como a Egreia
manda”(10).
Excepções, contudo, também as havia:
conhecemos o caso da feira de Vila Nova [de Famalicão?], de 1205 e a de
Sernancelhe, de 1295, transferidas para um domingo, pois os seus
vizinhos “diziam que lhes era assy mais proueitoso” e a de Vila Flor, de
1294, que se realizava, mensalmente, no primeiro domingo de cada mês
(11). Só era necessário que o Pároco não levantasse problemas.
Naquela mesma linha, o direito canónico
influencia a outorga régia com uma Paz temporária, isto é, a necessária
protecção a quantos às mesmas se deslocassem, o que concorria, deveras,
para o seu desenvolvimento. Mais uma, na senda da Paz do Rei, da Paz da
Casa… São casos, acima de outros, a segurança, a isenção da penhora dos
bens e os encoutos.
Naturalmente uma feira teria um documento
a instituí-la. É comummente designado por Carta de Feira. Assim, estes
certames eram fixados pelo soberano que ouvia ou não os vizinhos e
moradores dos lugares, que atendia às solicitações destes e ainda às
necessidades das povoações, por motivos muito variados e, se os
elencássemos, até mesmo por razões contraditórias. Podemos, contudo,
afirmar que o objectivo principal do rei e dos habitantes do lugar terá
sido, desde sempre, a tentativa de, por este meio, implementar o
desenvolvimento do lugar, da vila ou da cidade…
Foi D. Afonso III quem trouxe de França,
em finais de 1245, quando ainda era conde de Bolonha, e assumiu a
regência do Reino, este instituto, o qual não podia ser implementado por
cá com as mesmas características que detinha lá por fora. No entanto,
numa época de grande esforço centralizador, foi, pelo menos, uma forma
de veicular outros meios variados, tendentes à consolidação do seu
poder, quer pelo que dizia respeito à população do espaço territorial
sob o seu imperium, como ainda pelo incremento dos seus recursos
financeiros. Era preferível, por vezes, quando advindos das
arbitrariedades e despotismos dos particulares, os moradores e vizinhos
sujeitarem-se ao fisco do que aos senhores feudais que, com violento
esbulho, lhes extorquiam toda a sorte de impostos, justificados e
estabelecidos pela sua fértil imaginação secular. Tenhamos em conta o
facto de haver cartas de feira de origem concelhia – diríamos, a pedido
ou mesmo por imposição municipal, como Vouzela, Aguiar da Beira,
Monsanto, Borba, Prado…- por motivos óbvios: o aumento da população, das
receitas também, para que o local fosse melhor povoado, porque ficava
longe de estrada, porque havia uma feira muito próximo, que lhes impedia
o desenvolvimento, ou, pelo contrário, porque à beira de caminho, reunia
boas condições.
Antes do Bolonhês, a actividade mercantil
interna exerceu-se, acima de tudo, nos mercados regionais, tendo as
feiras, como função principal, a de servirem de centros de distribuição
de produtos, os de maior vulto; à época do início deste governo, em 1248
e ss., aumenta o número deste género de certames e ampliam-se os
privilégios a dar aos feirantes, tais como a segurança deles e das suas
mercadorias em trânsito ou estacionadas. Sobe também o valor dos
encoutos, ou seja das coimas a recair sobre corregedores e meirinhos e
demais oficiais régios e sobre quantos mais quisessem penhorar bens dos
feirantes por dívidas contraídas fora da feira e do período da sua
realização. As coimas eram penas em dinheiro que iam deixando de ser
leves e pouco representativas para magoarem os que fossem contra este
princípio que fazia parte igualmente da Paz da Feira. Com D. Dinis, após
1279, a regulação de quanto diz respeito a este tipo de mercados é
alargada e aperfeiçoada, crescendo o número de feiras semi-franqueadas,
dado que as vulgarmente chamadas de feiras francas nunca existiram como
tal. A sisa foi dos impostos mais aligeirados, pagando os mercadores e
compradores metade apenas do seu valor, e pondo-se de parte, na maior
parte dos casos, “se pague toda a sisa em cheo”, como se dizia para a
feira de Tomar, ao tempo de D. João I e do Infante D. Henrique[7].
Com D. Afonso IV, depois de 1325, por directa influência de sua mulher
D. Beatriz de Castela e do genro Afonso XI, reconhecemos a régia bondade
para os vendedores e compradores, pelos privilégios que se criaram para
os feirantes, quinze dias antes, todo o tempo de duração e quinze dias
depois da realização da feira, aplicando o princípio, em Portugal. Com
D. Fernando, após 1367, parece perder-se parte deste incremento de
benesses bem visíveis e importantes, que se haviam conquistado desde
Afonso III e principalmente com D. Dinis. As guerras com Castela
prejudicaram o comércio – aliás, como tudo -, os mercados locais
extinguiram-se e, dos feirantes pouco se fala. Os estrangeiros
recusam-se a vir, os nacionais perdem oportunidades e segurança.
A partir de D. João I, reformulam-se ou
reavivam-se as feiras semi-franqueadas, entre 1383 e 1433, de Castelo
Branco, Sertã, Amarante, Viseu, Fonte Arcada, Feira, Barcelos, Salzedas,
Batalha, Lanhoso, Pena, Tomar, Montemor-o-Velho, para depois os monarcas
passarem a fazer o mesmo com outras, como sucedeu com D. Duarte e D.
Afonso V.
Teria de ser assim, indiscutivelmente. Com
a tomada de Ceuta e o início da exploração da costa africana, o mercador
português dirige-se, de preferência, para fora do País e, cá dentro,
encontra locais certos de encomenda e de venda de novos produtos, de
mais fácil aquisição, em quantidades maiores e, muitos deles,
completamente novos e nunca vistos antes. É que a sua actividade é
francamente aproveitada como suporte da política das descobertas e estas
são, sem dúvida, as bases de reforço de todo o vigor e dinamismo
mercantil interno. As garantias e facilidades aos vendedores e
compradores ampliam-se e de tal ordem que, muito facilmente, se vêem
decalcadas das que os comerciantes e navegadores detinham, desde os
princípios de Quatrocentos, dilatadas, consideravelmente, após 1415, com
a passagem do Bojador em 1434, e as primeiras investidas de
reconhecimento e comerciais no golfo da Guiné, depois de 1440 e 1460.
Surgem em grande número as ditas Cartas de Privilégios de mercador e de
mercador estrangeiro: cartas em forma.
A carta de feira de Tomar, de 1420, é
modelar, como o fora a de Trancoso (1273): uma verdadeira inovação sob o
ponto de vista das imunidades que contém a favor dos feirantes,
traduzindo a ascensão da ordem popular na conquista de liberdades, só
justificável pelos novos tempos que se atravessam. São inúmeras as que
nela se inspiraram. De então em diante, com a de Montemor-o-Velho,
Penela, Trancoso, Salvaterra de Magos e tantas outras, instituiu-se uma
feira semifranqueada de 15 dias de duração, isentando os feirantes do
pagamento de metade da sisa, excepto do vinho que se vendesse atavernado
e de carne que fosse adquirida no talho; a todos os que arribassem à
feira não seriam tomados seus animais de sela e de albarda, animais de
tiro, portanto, para nenhuma carga, nem eles seriam obrigados a qualquer
serviço na ida para a feira, enquanto nela andassem, nem quando a suas
casas regressassem. Não seriam presos, nem acusados, nem demandados, por
nenhum malefício em que se vissem alegadamente culpados, salvo se fosse
feito na vila, ou nos seus termos, ou – claro está – na própria feira.
Não seriam citados nem demandados por quaisquer dívidas, provenientes de
heranças ou outras, excepto se fossem provocadas por compras e vendas
que houvessem tido o seu lugar na feira. Os feirantes, forasteiros e os
habitantes locais eram também autorizados a andarem armados no recinto
para sua defesa pessoal, dos seus e dos produtos à venda, e podiam
servir-se de qualquer tipo de montada. Finalmente, preceituava-se que
nem os oficiais régios nem os dos concelhos fizessem correição na feira
e, se a esta viessem, o fizessem tão-só para comprar ou vender. Foi esta
a Ordenação modelar que serviu de padrão, daqui em diante, a um novo
Povo, neste nosso País diferente e renovado, virado para as indústrias e
o comércio, não esquecendo os trabalhos adentro do sector primário a
que, tão fortemente, deitava mãos, mas agora como seres desprendidos e
alforriados das amarras convencionais. E mercador não era só o médio
burguês. Era-o o clero, a nobreza, o Infante e o próprio Rei. Se estes
últimos não iam à feira vender, traziam das colónias e feitorias
dispersas pelos vários continentes os novos materiais que ficavam ao
comprador pela quinta parte do preço que nos custavam quando íamos às
feiras flamengas e italianas comprá-los. Atingindo as fontes de produção
e transformação, conquistávamos as riquezas que desinflacionaram os
preços e deram movimento comercial ao Algarve (com feiras em Faro e
Loulé), ao Tejo e ao Douro. Os circuitos haviam começado para só
abrandarem em finais de Setecentos e mostrarem à Europa adormecida até
aí, como tudo se fazia e que vias era necessário trilhar. Diga-se, com
toda a segurança e ênfase, que fomos, como pioneiros, os grandes mestres
do velho Continente que nos seguiam, perseguiam e conquistavam o que
havíamos primeiro organizado. Atingíramos, as madeiras, a cana do
açúcar, os novos pescados… nos Açores e na Madeira; o Rio do Ouro, o
Ouro da Mina, a Costa da Malagueta, as terras dos Escravos, a Costa do
Marfim, o comércio muçulmano por Gibraltar e, mais tarde, a Norte de
Moçambique; os mercados da Índia, da China e do Japão, depois do Ouro e
do Açúcar dos diamantes, esmeraldas e das gemas semi-preciosas do
Brasil, e do tabaco e do café das Ilhas de Cabo Verde. Os mercadores
nacionais eram insuficientes, tal como os Portugueses que teriam de ser
dispensados para suster um Império desmedido e único na História do
Mundo Moderno. |
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(1) M. Boulet-Saetel, “Le Commerce Médiéval
Européen”, in Histoire du Commerce, dir. por J. Lacour-Gayet,
tomo II, Paris, 1950. E. Chapin, Les Villes des Foires de
Champagne, des origins au début du XIVème siècle, Paris, 1937;
Robert-Henri Bautier, “Les Foires de Champagnes.
Recherches sur une evolution hisrtorique”, in
Récueils de la Société Jeanj Bodin: La Foire, 1935; H. Dubois,
Les Foires de Chalon et le Commerce dans la valée de Saône à la
fin du Moyen Âge (vers 1280 vers 1430), Paris, 1976.
(2) P.
Boissonnade, Le travail dans l’ Europe chrétienne au Moyem Age,
V-VI siècles, Paris, 1921, pp. 210 e ss..
(3) Cf. A.
H. de Oliveira Marques, Hansa e Portugal na Idade Média ,
Lisboa, Cosmos, 1959
(4)
Henry Pirenne, Les villes du Moyen Âge,
Bruxelas, 1927 ; Histoire de Belgique, Bruxelas, 1929.
Ver Tatiana Sander, A Actividade Notarial e sua
Regulamentação, Brasilo, Uberaba, 2010, Ano VIII, n.º 650. Ver
Google, Portal “Boletim Jurídico”, pdf.
(5)
Luís Garcia de Valdeavellano, “El mercado. Apuentes
para su estúdio en León e Castilla en la Edad Media”, in Anuario
de historia del Derecho Español, tomo VIII, 1931, pp. 201-405;
Filippo Carli, Il mercato nell’alto Medio Evo, Pádua, 1934;
Il mercato nell’atà del comune, Pádua, 1936.
(6) IAN/TT, Chanc.
de D. Afonso V, l.º 2, fl. 108. Vide
Virgínia Rau, Feiras medievais Portuguesas. Subsídios
para o seu estudo, Lisboa, Editorial Presença, 1982, doc.
XV, pp. 188-189.
(7)
João Silva de Sousa, “O Vocabulário de Aquilino. Uma só
palavra!”, in Letras Aquilinianas.n.º 1, Viseu, 2007,
pp. 135-145.
(8)
IAN/TT., Chanc. de D.
Afonso V, l.º 4, fl. 21.
(9)
Ibidem.
(10) Fr. Joaquim de santa Rosa de Viterbo,
Elucidário…, tomo I, ed. crítica de Mário Fiúza,
Porto-Lisboa, Livraria Civilização, 1965, pp. 441-442.
(11) Veja-se João Silva de Sousa, “As Feiras em Portugal na
Idade Média”, in Feiras. A Escola e os Descobrimentos,
Lisboa, Grupo de Trabalho do Ministério da Educação para
as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1999, pp.
7-35.
(12) IAN/TT., Chanc. de D. João I, l.º IV, fl. 11v.
Ver Virgínia Rau, Feiras…cit., pp. 187-188.
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BIBLIOGRAFIA |
Além das obras
e fontes manuscritas indicadas em notas de rodapé, chamamos a atenção do
leitor para estas seguintes:
AMZALAK, M. B.,
As Feiras em Portugal, Lisboa, 1922;
CHAPELOT, Jean e FOSSIER, Robert, Le Village et la
maison au Moyen Âge, [Paris], 1980.
CARLI, Filippo, Il mercato nell’alto Medio Evo, Pádua,
1934 : Il mercato nell’ età del comune, Padua, 1936.
DEL TREPPO, Mário, Els mercaders catalans i l’expansió
de la Corona catalano-aragonesa al sigle XV, Barcelona, Curial, 1976.
DUBY, Georges, “La révolution agricole médiévale », in
Revue de Géographie de Lyon, Vol. XXIX, 1954, pp. 361-366.
GARCÍA DE VALDEAVELLANO, Luis, « El mercado. Apuntes
para su estudio en León y Castilla en la Edad media”, in Anuário de
Historia del Derecho Español, tomo VIII, , 1931, pp. 201-405.
LE GOFF, Jacques, « Au Moyen Âge : Temps de l’ Église et
temps du Marchand », in Études Suisses d’Histoire Gánerale, Vol. XVII,
1959.
RENOUARD, Yves, Les hommes d’affaires italiens du Moyen
Âge, 2.ª ed., Paris, Armand Colin, 1968.
-----Les villes d’Italie de la
fin du Xème siècle au début du XIVè siècle, Vols. I e II, Paris, 1969.
SOUSA, João
Silva de, Dos privilégios outorgados por D. Afonso III (1252-1273), sep.
da Atlântida, Angra do Heroísmo, 1980.
-----Das
isenções do pagamnento de impostos e da prestação de serviços régios e
concelhios (1449-1451), sep. da Revista da FCSH da UNL, n.º 5, Lisboa,
1993. |
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João Silva de Sousa. Prof. da Faculdade de
Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Académico
Correspondente da Academia Portuguesa da História) |
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