Joana Ruas lê a sua palestra na 8ª Bienal.
Foto TriploV
::::::::::::::::::::::JOANA RUAS:::::::::::::::::

Aproximar o  distante — Do Estranho ao familiar
Duas Experiências : Timor-Leste  e Guiné-Bissau

Palestra proferida na 8ª Bienal Internacional do Livro do Ceará. Fortaleza, 12-22 de Novembro de 2008

INDEX

a) A Herança dos Conquistadores

b) O duplo imperativo contraditório presente em dois contos: "Folhas Vermelhas" de William  Faulkner e "O Meu Tio o Iauaretê" de João Guimarães Rosa

c) Almamundo - uma  experiência com o povo de  Timor-Leste.
 
d) A Luta é a minha primavera - a minha experiência na Guiné-Bissau.

BIBLIOGRAFIA

A Luta é a minha primavera

A luta
É a minha
Primavera

Sinfonia de vida

O grito estridente dos rios
A gargalhada das fontes

O cantar das pedras
E das rochas
O suor das estrelas

A linha harmoniosa dum cisne!

Ao lermos este poema não podemos deixar de sentir com quanto despojamento se manifesta o despertar de uma energia feita de desprendimento de si e de total entrega. Na sua solidão essencial, há neste homem pronto para o combate a abundância primaveril das grandes forças da natureza: a da água que estridente se solta pelos rios abaixo e a que jorra das fontes. Mais do que  fecundar a terra,  água é  a linguagem da fluidez invadindo o espaço, grito e gargalhada sonorizando as paisagens mudas. O homem que no combate vai suar o suor das estrelas longínquas,  está mais perto do céu do que da terra e,  inamovível no seu ideal, o seu canto é igual ao das pedras e das rochas. Frescura, clareza e pureza eis o que caracteriza a linguagem do espírito novo para que nasça uma nova vida. Geração sacrificada a um ideal, o cisne dá corpo a uma forma harmoniosa. Seja qual for a cor da sua pele, símbolo de luz, o cisne  representa o ideal de brancura e de graça do guerrilheiro no seu combate por uma causa nobre, por um futuro de paz no achamento de uma felicidade terrestre.

É sob o lema deste muito justamente célebre poema do querido e saudoso amigo, combatente e poeta, Vasco Cabral, que vos vou falar da  minha experiência na Guiné-Bissau onde estive nas zonas libertadas e, posteriormente, trabalhei como jornalista cultural no jornal Nô Pintcha desde o seu primeiro número. Levou-me à Guiné-Bissau uma operação de resgate: o resgate de parte das memórias da minha infância, memórias que a ditadura me roubou ao assassinar em Angola e obrigar ao exílio, adultos e crianças que povoaram a minha vida e os meus afectos. Para lá parti com uma carta endereçada pelo  meu querido amigo, o  professor Borges Coelho, a Vasco Cabral.

É-me impossível recordar a totalidade dos acontecimentos que constituem parte integrante da minha experiência na Guiné-Bissau e em Timor-Leste. Talvez a parte mais substancial dessas experiências repousem no coração  da minha memória. Essas experiências frutificaram em duas obras literárias: A PELE DOS SÉCULOS, no caso da Guiné-Bissau e no caso de Timor-Leste, a obra em três volumes com o título genérico de A PEDRA E A FOLHA cujo primeiro volume A BATALHA DAS LÁGRIMAS  acaba de ser editado em Portugal. Apesar  destas obras, o que permanece  ainda no palimpsesto da memória, deixa-me, como escritora, entre o terror do enorme trabalho que me espera e o encantamento perante um mundo que, afundado nos labirintos do esquecimento, vai saindo para  o espaço da criação literária onde cabem tantos e tão diversos mundos, todos regurgitando da vida de quantos homens, mulheres, crianças, árvores,  animais e rios se haviam atravessado na minha vida.

Uma das  razões  pela qual decidi escrever  A PELE DOS SÈCULOS e A PEDRA E A FOLHA foi a leitura da obra de Marcel Mauss, um dos fundadores, em  1904, do L’Humanité e autor do celebrado Essai sur le don. Marcel Mauss achou já nessa época que era altura do romance dar a povos considerados até então  primitivos o rosto humano que lhes fora roubado.

Dizem que  a palavra Guiné é de origem tuaregue e designa o país dos negros. Data de 1444 a entrada dos primeiros escravos da Guiné em Portugal. Em 1460 António di Noli implanta a cana do açúcar nas ilhas de Cabo Verde. Faltando-lhe  a mão de obra, obtém do rei de Portugal permissão para ir filhar negros à Guiné. Enquanto os barcos corriam as costas da Guiné em busca de escravos, a rainha Isabel, a católica, enchia os mercados da Sicília e de Nápoles com escravos mouros e judeus que dali eram encaminhados para os mercados de escravos do norte de África. O mundo árabe absorveu parte deste contingente que lhe chegou dos reinos da Espanha e da Sicília pois esta ilha era então pertença de Aragão. Os judeus foram nas caravanas pelas rotas sarianas do ouro que saíam de Anafé (a actual Casablanca) e Safim.  Alguns deles iam como  pastores de cabras nas tribos tuaregues enquanto outros foram acolhidos nas tribos mandingas onde os foram assimilando até  à sua chegada à Guiné.  Em 1492, o rei de Portugal obrigou os judeus que tinham sido expulsos de Castela a abraçar a religião cristã. Inicia-se a distinção entre cristãos velhos e cristãos novos. Muitos destes são enviados para o norte de África, enquanto outros preferiram ficar  na condição de escravos.  Centenas dos seus filhos menores ser-lhes-ão arrancados à força e enviados para povoar S. Tomé,  Cabo Verde,  Guiné, Angola, Moçambique e Timor.Os reis católicos, receando a mestiçagem,  não queriam consentir na escravatura em terras de Espanha.  Deste modo, de 1609 a 1613, os mouros, chamados os marranos do Islão, têm a mesma sorte dos judeus.

 Álvaro de Caminha , nomeado donatário da ilha de S. Tomé, para lá partiu acompanhado por jovens cristãos novos, escravos negros e degredados para iniciar a colonização da ilha. A cada um dos degredados, para fins de povoamento, foi dada uma escrava. No século XVI havia já na Gâmbia uma aldeia dos Hereges povoada de africanos lusitanizados que seriam os descendentes desses degredados. De 1835 a 1839 há um intenso tráfico negreiro espanhol para Cuba efectuado por armadores e comerciantes cabo-verdianos metidos de permeio, servindo-se a fundo das suas redes de parentes e aliados continentais a partir das suas instalações no Arquipélago dos Bijagós, onde certas ilhas eram verdadeiros pontos de concentração do tráfico de escravos, com o conhecimento das autoridades portuguesas , cúmplices ou impotentes.

O decreto de 10 de Dezembro de 1836, abolindo as exportações de escravos em todos os territórios portugueses tanto ao norte como ao sul do equador, não afectam os dois maiores traficantes desta época, o antigo governador da Guiné e coronel de milícias, o metropolitano Joaquim António de Matos e o governador de Bissau, o comerciante Caetano José Nozolini, mestiço cabo-verdiano, marido e sócio de Nhara Aurélia Correia. Nhara era o termo equivalente a um estatuto elevado na burguesia mestiça das feitorias da Grande Guiné. Na ilha de Bolama estava uma  das suas feitorias onde trabalhavam centenas de escravos enquanto esperavam pelo embarque. Em Ziguinchor que estava povoada por mestiços luso-africanos, grumetes e escravos, o chefe da feitoria vem de uma família mestiça, os Carvalho Alvarenga, ramo donde virá Honório Pereira Barreto, filho de um cabo-verdiano e de Rosa de Carvalho Alvarenga, a poderosa Rosa de Cacheu. Honório Pereira Barreto, sendo governador da Guiné de 1835 a 1839,  o número de escravos libertados nos 55 navios provenientes dali e apresados pelos cruzadores, fixou-se em cerca de 3.929.

Em Cacheu, os grumetes, na sua maioria de etnia papel, eram africanos lusitanizados e cristianizados  que constituíam,  para o colonizador português, um perigo que não era étnico mas social. Viviam nas feitorias portuguesas ou gravitavam na sua periferia em funções de marinheiros, de operários e de pequenos bufarinheiros. Os grumetes tinham um comportamento imprevisível, colocando-se quer do lado dos seus irmãos de etnia quer do lado dos portugueses contra estes.Com o advento da República, juntam-se  às elites luso-guineenses e cabo-verdianas mestiças, desempenham um papel político, tornando-se assim em proto-nacionalistas Guineenses.

Do legado imaterial dos escravos da Guiné ficaram-nos poemas dos séculos  XVII e XVIII na então chamada Língua de Preto. Língua de preto era o linguajar característico dos negros que foi explorado para fins literários burlescos   do século XVI  a XVIII. Da sua música e das suas canções resta-nos apenas uma Canção de Natal,  há pouco descoberta e que havia sido  recolhida no século XVII por um  missionário anónimo de Coimbra.

Sã qui turu zente pleta
Sã qui turu zente pleta (hé, hé)
Sã qui turu zente pleta de Guiné (hé,hé)
Tambor flauta y cassaeta e carcavena sua pé(hé,hé)
Vamos fazer uns fessa
Vamos fazer uns fessa
Ao menino Manué (hé,hé)

Com o advento da ditadura do Estado Novo foi proibida toda a actividade político-partidária. No que se referia aos trabalhadores das colónias, logo em 1928 foi promulgado o Código do Trabalho dos Indígenas das Colónias Portuguesas de África. Mantém-se e reforçam-se neste Código a utilização compulsiva da mão de obra em condições de trabalho forçado e de contrato em regime de semi-escravatura.

 Em toda a África colonizada, as reivindicações dos trabalhadores exprimiam de forma rigorosa o anticolonialismo e o nacionalismo e era igualmente uma forma de rejeitar a dominação económica e portanto a dominação colonial. Em todo o mundo colonizado os sindicatos contribuíram  eficazmente para  a causa  da independência. A guerra colonial, na Guiné-Bissau, teve como causa próxima a greve dos estivadores do cais do Pindjiguiti que em 1959 protestavam contra as condições de trabalho. Nesta greve, ferozmente reprimida,  foram mortos 50 grevistas e feridos mais de cem.

No plano internacional, os sindicatos, em todo o mundo colonizado,  só se afirmaram como actores sociais eficazes a partir da descolonização. Na Guiné-Bissau,  adquirida a independência, face às novas realidades políticas e socio-económicas, os sindicatos são confrontados com os problemas do subdesenvolvimento e com a prioridade da construção do Estado-nação.

Conheci a Guiné-Bissau  quando  a dinâmica da luta de libertação nacional  animava ainda as populações das zonas libertadas. Os africanos lutaram para terem acesso ao tempo, ao tempo das nações independentes, ao tempo de uma história própria. Uma luta de libertação não é possível sem consciência nacional que se pode definir como a consciência de pertença a um mesmo povo e consciência dos seus interesses nacionais, enfim, uma vontade comum de se definir enquanto nação. A consciência nacional caracteriza-se pelo seu carácter dinâmico e essencial e para isso necessita de um suporte objectivo para essa vontade — o meio natural comum, uma comunidade de civilização e de cultura, uma comunidade política e uma comunidade económica. Na Guiné-Bissau, com uma população constituída diversas etnias, quase todas  participaram no esforço de guerra e esse facto foi um factor de coesão nacional .

A geração de poetas que se exprimiu depois da conquista da independência, era  ainda criança quando em 1959 começou a luta de libertação desencadeada pelo massacre dos estivadores no cais do Pindjiguiti. A sua poesia escreveu-se em crioulo e em português. Um deles,  Agnelo Augusto Regalla, num seu poema intitulado Poema de um assimilado, reconhece em si a herança cultural do colonizador e lamenta o que ficou na penumbra, esse imenso continente chamado Mãe África e dos seus filhos: Samory, Abdelkader, Cabral, Mondlane, Lumumba e Henda, Lutuli e Bem Barka e ainda de Canhe Na N´Tuguê e Domingos Ramos, heróis guineenses, todos de cultura crioula mas da crioulidade militante dos que se não esqueceram e fugiram à doce melodia dos corás. Morés Djassy  no seu Poema da Natureza Africana  apela  às tradições para que, unindo-se às mensagens da revolução, vençam os séculos que lhes foram roubados. António Soares Lopes Jr. cujo poema Mantenhas dá o título a esta antologia, recorda episódios da luta de libertação e envia mantenhas para quem lutou e luta. Integram a antologia, entre outros, Carlos de Almada autor de Canto Alegre pra N´Dangú e  Helder Proença. Muitos deles, como José Carlos Shwartz integraram a luta armada, tendo este poeta sido preso e deportado para a ilha das Galinhas. O primeiro prosador do quotidiano guineense da época colonial foi Fausto Duarte com o seu livro Auá que teve um prefácio de Aquilino Ribeiro. Nos nossos dias, o guineense  Carlos Lopes também aborda, em Kaabu, a realidade histórica, societal e cultural do seu país desde épocas remotas e, em Corte Geral, título sugestivo, através de pequenas narrativas, a crise geracional e de liderança instalada na sociedade e que se seguiu aos pais da nação com a progressiva desintegração dos valores e o aprofundamento da penúria bem patentes nos filmes do cineasta guineense Flora Gomes. Álvaro Guerra foi o primeiro escritor português a escrever sobre a guerra colonial em O Disfarce. Também se situam na Guiné-Bissau e durante a guerra colonial, as obras Até Hoje de Álamo Oliveira e Vindimas no Capim de José Brás.

Em Classe e Nação, Samir Amin  chama a nossa atenção para o desenvolvimento capitalista periférico que favorece as elites urbanas em detrimento do mundo rural e das etnias mercantis.  A pequena burguesia de Bissau passou a controlar o aparelho central do estado, sem assegurar a unidade da vida económica da comunidade, isto é, sem desenvolvimento nem circulação de bens que tornassem coesas as populações.

Com o golpe contra Luís Cabral, Nino Vieira desfez a aliança da Guiné e de Cabo Verde instituída por Amílcar Cabral. A coluna vertebral dessa aliança era o PAIGC. O golpe de Nino Vieira representou o abandono da vertente marítima pela vertente continental. Com a  queda de  Luís Cabral,  a  Guiné, à medida que   começa então  a  ser absorvida pela massa continental que a rodeia, é objecto de novas tensões interétnicas que vão sendo absorvidas através de sucessivos golpes de estado. É de recordar que para uma das etnias majoritárias, os mandingas, um mundo africano ocidental totalmente francês constitui um desequilíbrio pois  as campanhas francesas foram, ao longo dos séculos, de liquidação das etnias mais fortes daquele contexto, o que é o caso da etnia mandinga que  deve  aos franceses o seu declínio histórico. No meio do século XV, Cadamosto e Fernandes diziam que os Mandingas da Gâmbia se consideravam súbditos do Mali.A campanha do governador Songhai, Oumar Kanfari, a partir de 1490 conquistou o Fouta e dirigindo-se para o Niger, anexou Dyara. A mitologia mandinga está impregnada pela figura do herói trágico como se constata na Balada de diu diu.

A guerra civil levou ao colapso da nação guineense. O Estado ficou desestruturado e os quadros superiores refugiaram-se em Portugal. Nos golpes de estado, o poder legal, tornado ilegítimo,   abandona as populações  enquanto o poder ilegal mas tornado legítimo pela adesão das populações, combatendo por elas e em seu nome, tem dificuldade em protegê-las. As populações ficam pulverizadas e, incapazes de vencerem os interesses instalados nas formações partidárias e infiltradas no aparelho de estado, terão tendência para se refugiarem no lar étnico. Houve e há um entrechocar de duas culturas que nas suas linhas fundamentais se opõem. A sociedade animista é horizontal e matrilinear enquanto as sociedades mandingas e fulas, islamizadas, são verticais e patrileneares.

Sendo a  língua crioula a da luta pela independência, de um modo geral  os governantes e líderes políticos falam às populações  em crioulo o que significa a sua opção pela mestiçagem cultural  e pela coesão das etnias como fundamento da nação. Durante a luta de libertação, havia aquele momento em que nos era possível vislumbrar nalguns homens a pureza dos ideais como se a alma até então oprimida se achasse aliviada e a respirar.  Nos países pobres, em que a luta pela afirmação da dignidade humana é tão vital , todos vivem perigosamente. Esta é a raíz da tragédia. Para nós, estas lutas em que morrem milhares de homens não têm sentido. Mas para estes povos, essas lutas significam a sua reivindicação de justiça e  afirmação de um sentido desviado. Milhares de vidas são ceifadas, mas quantas mais não morreriam e não morrem em lutas calmas e silenciosas que anunciam que todo o sentido se perdeu? Hoje há uma propensão para a desistência, pior, para a renúncia em participar em actos cívicos na medida em que se sente que se está a participar em algo que está sistematicamente distorcido e desviado do seu sentido inicial o que torna qualquer melhoria inatingível.

Em Julho de 1975, quase toda a redacção do Jornal Nô Pintcha foi mobilizada para as festas e cerimónia da proclamação a 5 de Julho da independência de Cabo Verde. O então ministro da Informação, Manuel dos Santos, com base na teoria de  Amilcar Cabral,  de que “a cultura deve ser utilizada como instrumento de libertação nacional”,  enviou-me a Bubaque para acompanhar o comissário e simultaneamente abordar as  lendas e mitos Bijagós. O PAIGC tentava restabelecer o diálogo entre o partido no governo e o povo e iniciar um processo civilizatório aglutinando lentamente culturas e línguas muito antigas cujo processo de fusão fora durante cerca de 500 anos interrompido.

Deslumbrada, eu via chegar à praia as gentes das ilhas. Vinham em pirogas muito frágeis carregando bois, frutos, cachos de bananas e de dendém. Altivos , altos e fortes, seminus, penteados de tranças, pareciam transportados  de um mundo mítico    para uma praia de um  tempo imemorial. A sua entrada no meu campo de percepção abalava as dimensões do meu mundo temporal. A obtenção da licença para visitarmos a aldeia de Eticoga demorou-nos em Bubaque 2 semanas. Na primeira semana aventurámo-nos a chegar lá mas a meio do percurso o barco parou devido a uma avaria  pelo que  passámos a noite no mar , olhando as estrelas e ouvindo as canções que o soldado que era a minha segurança pessoal , entoava, à medida que a noite nos encerrava no seu manto de treva e o brilho das estrelas vacilava sobre as nossas cabeças. O estreito espaço do barco era  partilhado com o jornalista estagiário do Nô Pintcha e  o comissário Armando. Segurando-se na arma como a uma estaca, o soldado,  manjaco, moço esbelto e desinibido, cantava o Tchilá tchitchilá e canções ao Jaco, o pássaro totem do seu povo. O estagiário era um moço que saía pela primeira vez de Bissau, a sua terra natal. O comissário Armando oriundo do interior da Guiné, fora enviado pelo PAIGC, ainda adolescente, para Moscovo, para estudar ciências políticas. Ao outro dia, avisado pelos pescadores, o dono da pousada, sabendo que eu ia a bordo, mandou a sua lancha buscar-nos. Uma segunda tentativa teve o mesmo resultado mas como partimos de manhã muito cedo, antes do anoitecer, regressámos nas canoas dos pescadores a Bubaque. O comissário Armando acreditou então que, como fora avisado pelo emissário por ele enviado a Eticoga, que sem permissão da comunidade da aldeia não iríamos chegar lá devido aos poderes dos antepassados , seus guardiães. Quando finalmente nos chegou o convite, partimos e, chegados a Orangozinho, seguimos a pé até à aldeia. O  caminho pelo bosque é regular, batido a peso dos passos dos que saem da aldeia para o litoral onde têm as canoas de pesca. Naquela longa marcha da praia até à aldeia eu atrasava-me e a cada passo os meus companheiros esperavam-me mais adiante, sentados à sombra de uma árvore e limpando o suor do rosto. Recordei que nas zonas libertadas  onde eu tinha estado no ano anterior , embora indo num grupo liderado por uma guerrilheira, eu andava à solta,  excepto quando, depois de   saírmos de Candjambari, nos internámos na mata seguindo um trilho que bordejava uma vasta zona minada à volta da grande aldeia libertada de Morés. Naquele momento da sua história ,os Guineenses, devido à guerra, tinham avançado no tempo, tinham-se tornado nossos contemporâneos. As tradições pareciam desvanecer-se ou alterar-se e eu perguntava-me que povo iria sair daquela guerra, com que qualidades novas e com que defeitos antigos. 

Chegámos  à tardinha a Eticoga. Deram-nos limonada e ao jantar, frango guisado com arroz e leite dormido com mel, uma espécie de iogurte. As casas da aldeia tinha cada uma grandes terrenos à volta muito limpos e bem varridos. Para mim tinham construído uma cabana e  dentro dela  um estrado de cerca de dois palmos de altura coberto de folhas de milho tapadas com um lençol.

Logo pela manhã foi o comício debaixo de uma mangueira, a árvore das palavras da tradição africana, situada no centro da aldeia. Nenhum de nós conhecia a língua mas estava connosco, como intérprete, um cabo-verdiano, antigo funcionário da administração . O comissário dirigiu-se ao povo que ali estava em peso , dizendo que a guerra acabara, que o PAIGC  iria cuidar deles como pai extremoso pois para o bem  deles lutara e por eles muitos haviam dado o seu sangue e a sua vida. Quando acabou perguntou se queriam algo do pai PAIGC. Eles gritaram em uníssono: Armas, armas. Fez dó o espanto estampado na cara do comissário que ripostou perguntando para que queriam eles as armas, eles que não tinham lutado contra os portugueses, porque queriam agora armas para lutarem contra os seus irmãos do PAIGC? Que Portugal não estava zangado e a prova estava na presença amiga de uma portuguesa que queria conhecer as histórias que as mães velhas guardavam para as gerações futuras, histórias  que se iam guardar nos gravadores assim que se dispusessem a contá-las. Seguiu-se um longo silencio  depois do que eles se puseram falando uns com os outros a ponto do comissário se sentar pacientemente até a conversa entre eles acabar. Os Bijagós não possuem uma autoridade central. A solidariedade do grupo é a lei. A lei aqui tem acima de tudo em conta não uma justiça abstracta mas a preservação da segurança do grupo. Quando, finalmente, nos comunicaram a sua decisão, foi para dizerem que as armas se destinavam  a afastar os hipopótamos que lhes devastavam os arrozais. Na verdade, o que sucedia era uma espécie de jogo feito para descobrirem o que lhes reservavam as novas autoridades. Eles estudavam a forma como a nova autoridade se comportaria em relação a eles, tentando assim a definição de posições de poder pois a vida, também ali, deseja  expandir a sua força. Os povos do arquipélago, agora inseridos na roda do mundo, ensaiavam uma definição da sua situação face ao poder. E a reciprocidade, quanto a eles, só se verificaria se os armassem, porque os antigos administradores impunham-se apenas pela autoridade das armas. Só sentiriam como sendo seu o novo poder se, enquanto grupo,  pudessem ter a autoridade que uma arma confere. Era como se dissessem que só haveria paz quando houvesse armas iguais para todos os grupos e povos da nova nação.

Eu aguardava com ansiedade o momento em que essas matriarcas me abrissem  o grande livro da memória. Gravei a narrativa de três velhas na tabanca de Eticoga na ilha de Orangozinho. O tema foi escolhido pela mais velha que era a pessoa mais respeitada da aldeia e que me recebeu depois de um longo cerimonial na casa dos antepassados . Vestia um saiote de tarrafa e cobria-se com uma manta de tara. A segunda mulher nascera em Orango Grande mas fixara-se há longos anos nesta aldeia. A terceira estava de visita e viera da tabanca de Acanhô. A narrativa das três é complexa porque se reporta a factos históricos de diferentes épocas que foram passando de geração em geração através da tradição oral. O sofrimento do povo é o que a memória do povo regista e passa através dos séculos. Elas, as contadoras, são a palavra, o passado contido no presente e o presente que é futuro do passado. A recolha tal como foi feita foi entregue no Nô Pintcha e  uma cópia foi por mim trabalhada literariamente até lhe ser dada a forma poética.

Partimos de Orangozinho contentes pois os seus habitantes tinham-se revelado gente paciente e desejosa de nos contentar. Ao despedir-me das moças minhas companheiras, deixei lá o pijama, os sapatos e tudo o que levava na minha bagagem incluindo a mala e os livros. Uma semana depois retribuíram mandando-me frangos, ovos, peixe e bananas. O povo de Orangozinho tinha-me finalmente adoptado.

Eu havia elegido a Humanidade como sujeito universal e percebendo que aquela gente sabia de si própria mais do que eu havia julgado apesar da interferência secular do homem branco, eu perguntava-me que parte me reservavam eles na sua mente e no seu coração. Mas compreendi que a resposta não poderia ser individual, a resposta teria de ser colectiva e a partir do momento em que eles tomassem posse da parte que lhes caberia na economia mundo.

Na Guiné tive o raro privilégio de assistir ao meu próprio velório entre danças e cantos, numa noite de um claro luar que eu não gozei porque dormia aquilo que se pensava ser o sono da morte. Quando as populações de Bubaque e de Orangozinho souberam que eu tinha sido picada na praia por um animal que os baboleros, chamados ao posto médico, devido ao inchaço da minha perna não tinham sido capazes de identificar que tipo de cobra me mordera, acorreram à pousada e instalaram-se no largo defronte do meu bangaló. Devido à chuva, não era possível trazer até  ali um avião e o posto não possuía soro anti-ofídico. Convencidos do meu envenenamento, para que eu não  sofresse, enganaram-me dando-me em vez do soro anti-ofídico , uma injecção que me fez dormir profundamente. Quando ao outro dia acordei  de manhã, muito cedo, ao  abrir a porta do bangaló, ouvi então um imenso Ah e algumas vozes gritando: está viva! Enxerguei então a multidão que se pusera de pé, as máscaras do boi poisadas no chão e um bezerro amarrado ao tronco de uma árvore. Soube que se tinham quotizado para a compra do bezerro que iriam comer nos ritos do meu funeral . Pouco depois já se discutia o que fazer do bezerro. A carência permanente de carne devido a uma dieta essencialmente vegetariana e tendo como base o arroz, leva a que as cerimónias e em especial os velórios sejam uma ocasião preciosa para o restabelecimento das energias. Então, incomodada por os ter decepcionado, pela indelicadeza de  não estar morta, resolvi que o bezerro pagá-lo-ia eu para celebrar o facto de estar viva, junto deles e que a festa podia começar. A partir desta experiência, deixei de pensar no meu velório póstumo. Afinal eu já tinha morrido e, a partir deste susto, deixei de pensar onde seria bom morrer para pensar onde  seria bom viver, em que recanto da terra ou, simplesmente, no coração do mundo.

JOANA RUAS. Escritora portuguesa. Obras:

Na Guiné com o PAIGC, reportagem escrita nas zonas libertadas da Guiné em 1974, edição da autora, Lisboa, 1975;no jornal da Guiné-Bissau , Nô Pintcha, redige, em 1975, a página de literatura africana de língua portuguesa. Traduz textos inéditos de Amílcar Cabral escritos em língua francesa e recolhe na aldeia de Eticoga (ilha de Orangozinho, arquipélago dos Bijagós), a lenda da origem das saias de palha; Corpo Colonial, Centelha, Coimbra, 1981 (romance distinguido com uma menção honrosa pelo júri da APE; traduzido em búlgaro); Zona (ficção), edição da autora, Lisboa, 1984 (esgotado); O Claro Vento do Mar, Bertrand Editora, Lisboa, 1996; Amar a Uma só Voz ( Mariana Alcoforado nas Elegias de Duíno), Colóquio Rilke, organizado pelo Departamento de Estudos Germanísticos da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa,  Edições Colibri, Lisboa, 1997 e publicado no nº 59 da  revista electrónica brasileira AGulha (www.revista.agulha.nom.br;  A Amante Judia de Stendhal (ensaio), revista O Escritor,  n.º 11/12, Lisboa, 1998; E Matilde  Dembowski ( ensaio sobre Stendhal), revista O Escritor, nº13/14, 1999 ; A Guerra Colonial e a Memória do Futuro, comunicação apresentada no Congresso Internacional sobre a Guerra Colonial, organizado pela Universidade Aberta, Lisboa, 2000; A Pele dos Séculos (romance), Editorial Caminho, Lisboa, 2001; tem publicação dispersa em prosa  por vários jornais e  suplementos literários. Participou  com comunicações nas Jornadas de Timor da Universidade do Porto sobre cultura timorense e sobre a Língua Portuguesa em Timor na S.L.P. A sua poesia encontra-se dispersa por publicações como NOVA 2 (1975), um magazine dirigido por Herberto Helder; o seu poema Primavera e Sono com música de Paulo Brandão foi incluído por  Jorge Peixinho no 5º Encontro de Música Contemporânea promovido pela Fundação Gulbenkian e mais tarde incluído no ciclo Um Século em Abismo — Poesia do Século XX realizado no C.A.M.;  recentemente  publicou poesia nas seguintes publicações : Antologia da Poesia Erótica, Universitária Editora; Cartas a Ninguém de Lisa Flores e Ingrid Bloser Martins, Vega ; Na Liberdade, antologia poética, Garça Editores; Mulher, uma antologia poética integrada na colecção Afectos da Editora Labirinto; Um Poema para Fiama, uma antologia publicada pela Editora Labirinto; excertos do seu romance inédito, A Batalha das Lágrimas foram publicados em Mealibra,  revista de Cultura do Centro Cultural do Alto Minho.Na revista Foro das Letras foi publicado o seu  Caderno de Viagem ao Recife.