Nova Série

 
 

 

 

 

 

Luís Dolhnikoff
Palestina: História e geopolítica de um nome

1. 

Não há tema geopolítico contemporâneo mais complexo do que o conflito do Oriente Médio. Além da complexidade, o interesse político contribui para fazer de boa parte dos textos a respeito mera propaganda travestida de análise. Se isto vale para os argumentos pró-israelenses, não vale menos para os pró-palestinos.

Ao mesmo tempo, tornou-se senso comum a ideia de que o “excesso de história” não ajuda a compreensão do conflito. Creio, porém, que o excesso de propaganda sem respeito à história tampouco ajude. Retorno, então, a ela, tendo por guia a história de um nome.

Os povos que passaram pela região, ou nela viveram, são conhecidos: cananeus, judeus, filisteus, egípcios, babilônios, fenícios, gregos, romanos, bizantinos, árabes, turcos, ingleses. Um “povo palestino” não faz parte da história. Mas se não faz, por que o conflito é hoje chamado de “israelense-palestino”? 

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A explicação está no fato de que palestino é, na verdade, uma variação/derivação do nome de um daqueles povos antigos, os filisteus. O nome que os árabes da região hoje adotam (na forma filastin) tem, por ironia, uma origem hebraica: peleshet – que, em outra ironia, significa invasor e divisor.

O termo foi usado originalmente pelos antigos israelitas para se referir a um invasor que se estabeleceu, em torno de 1200 a. C., na região da faixa de Gaza. Tratava-se dos conhecidos “povos do mar”, de origem grega, cuja expansão, a partir de um epicentro no mar Egeu, foi registrada por inúmeros documentos da época, incluindo egípcios e fenícios.

O pouco que se pode afirmar com certeza sobre os “povos do mar”, incluindo os pelesht que se estabeleceram em Gaza, em função de palavras de sua língua incorporadas ao hebraico e de achados arqueológicos, é que, ao contrário dos demais povos do Mediterrâneo oriental, como fenícios, cananeus e judeus, eles não eram semitas, mas indo-europeus (como micênicos e gregos).

Quando da ocupação da região por Nabucodonosor, em 587 a. C., além do exílio dos israelitas e da famosa destruição de Jerusalém, as principais cidades flilisteias, Ashdod, Ashkelon, Ekrom, Gate e Gaza, também foram destruídas. O Império Babilônio seria em seguida tomado pelo rei persa Ciro, o Grande, em 539 a. C. Ciro, então, permitiu o retorno dos judeus a Israel, pondo fim ao chamado Cativeiro Babilônio, enquanto a região da faixa de Gaza foi reocupada pelos fenícios. Os filisteus (e todos os outros “povos do mar”) desapareceram da história.

Porém a evolução de seu nome continuou através de referências gregas posteriores, que registram a forma Palaeistina (transliteração do hebraico Philistia). Do grego Palaeistina originou-se, por fim, o latim Palaestina.  

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A adoção do termo latino para se referir aos territórios dos antigos reinos de Israel e Judá se daria em torno do ano de 135 d. C., com o fim do longo período das “guerras judaicas” contra a ocupação romana, iniciadas em 66 d. C. Esmagada a revolta, com a destruição do segundo templo de Jerusalém e a expulsão dos judeus (início da Diáspora), Roma cria uma nova província, batizada de Palaestina, segundo muitos historiadores, a fim de dissociar a região das reivindicações judaicas. A Palestina original, que passaria à história moderna como Palestina Romana, é, portanto, o próprio reino de Israel. Com o fim do Império Romano, também se extinguem suas províncias, incluindo a de Israel-Palestina.

O território seria, ao longo dos séculos seguintes, subdividido entre províncias bizantinas, árabes e otomanas, sem readquirir o nome ou a definição geopolítica que tivera no tempo da Palestina Romana (com exceção de um curto período de reunificação pelos cruzados no século 13). No período do Califado, por exemplo, em seguida à invasão árabe no século 7, o território seria divido em dois jund, ou distritos, o do norte e o do sul.

O mapa abaixo mostra a região conforme sua realidade geopolítica no fim do Império Otomano:

As províncias turcas, ou vilayet, dividiam-se em unidades menores, os sanjaks. A maior parte do que fora o antigo reino de Israel e depois a Palestina Romana integrava, agora, a província ou Vilayet de Beirute, que englobava o atual Líbano e o norte de Israel e da Cisjordânia, e estava dividida em Sanjak de Beirute, Sanjak de Acre e Sanjak de Nablus. Ao sul, um sanjak foi separado da província: o Sanjak autônomo de Jerusalém, englobando o sul de Israel e da Cisjordânia, Gaza e o nordeste do Sinai.

Tanto o traçado geopolítico quanto o nome Palestina seriam retomados apenas em 1922, depois de quase dois mil anos de seu uso romano original. E somente pelos 25 anos que duraria a Palestina Britânica – cujo nome foi inspirado na antiga província romana –, até ela ser extinta pela ONU em 1947. Antes de 1922 e depois de 1947, portanto, não existiu Palestina alguma. 

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Em fins do século 19, os sionistas começaram a emigrar, então, não para a Palestina (é absurda a afirmação de que se possa estabelecer em terras de um Estado inexistente), sequer para qualquer território árabe, mas para o Império Turco-Otomano e suas províncias.

O projeto sionista era o de constituir uma nação judaica numa região do multiétnico Império, região que, apesar de habitada majoritariamente por árabes, nem era exclusivamente árabe (mas também turca, curda, persa, armênia) nem se constituía num Estado árabe. E que, entre seus habitantes, sempre contara com uma significativa população judaica, por ser o antigo território de Israel-Palestina.

Cabe observar que no fim do século 19 não era possível prever o desaparecimento do Império Otomano. Mas ele aconteceu, em 1920, com seus antigos territórios e províncias sendo então refundidos, alguns, em novas províncias europeias (como a Palestina Britânica), outros, em novos Estados árabes, no contexto do fim da Primeira Guerra Mundial, em que o Império Otomano, que se aliara à Alemanha, foi derrotado.

Quando, em 1947, um Estado árabe tornou-se possível na Palestina Britânica por determinação da ONU, os árabes o recusaram. Os árabes, não os “palestinos”. Na própria resolução que estabeleceu a partilha da Palestina Britânica não há qualquer referência a “palestinos”; os únicos nomes usados são “judeus” e “árabes”: “Os [futuros] Estados independentes judeu e árabe...” (Resolução 181, I, 3).[1] Nem poderia ser diferente, pois todos os habitantes do território da Palestina Britânica, árabes, judeus e ainda armênios, turcos, etc., eram então igualmente chamados de palestinos, como se pode comprovar nos documentos da época (o nome original do jornal hebraico Jerusalem Post, por exemplo, era Palestine Post). 

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A relevância da questão do nome reside no fato de ele não ser árabe em qualquer aspecto: etimológico, histórico, cultural ou geopolítico. Mas se o termo palestino não tem originalmente qualquer relação com os árabes, por que, hoje, designa a mais célebre causa nacional árabe?

Em meados do século 20, sob a liderança do Mufti de Jerusalém, os árabes locais não reconheciam nem a definição britânica do território nem o nome Palestina, de utilização colonial. Defendiam, então, o pan-arabismo, segundo o qual os árabes constituem um único povo, dividido primeiro pela fragmentação política do antigo Califado de Maomé, depois pelas províncias otomanas, em seguida pelas províncias britânicas e francesas. Seu objetivo era, portanto, a criação de uma unidade geopolítica que englobaria, de início, os atuais territórios do Líbano, da Síria, da Jordânia e de Israel – daí recusarem a partilha determinada pela ONU.

Seria apenas com a derrota histórica do pan-arabismo, face à consolidação das ex-províncias inglesas e francesas em novos Estados-nação, que os árabes da ex-Palestina Britânica viram-se, pouco a pouco, forçados a caminhar para uma solução individual, ou seja, um projeto nacional próprio.

Uma vez afinal criado, nos anos 1960, um movimento nacionalista dos árabes da Palestina (a OLP seria fundada em 1964), ele manteria como referência geopolítica a antiga colônia britânica de 1922, e não o traçado legalmente determinado pela ONU em 1947. A recusa árabe da partilha se torna, então, o conflito israelense-palestino, pois os árabes da antiga Palestina Britânica, junto à antiga referência territorial, adotam afinal também o antigo nome colonial (os refugiados palestinos não eram, ainda nos anos 1950, referidos como refugiados palestinos, mas como refugiados da Palestina). 

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Nos distúrbios do fim do império inglês, incluindo, entre outros, a partilha da Índia entre Índia, Paquistão e Bangladesh em 1947, e também a guerra árabe-israelense de 1948, o destino dos árabes da Palestina dividiu-se, grosso modo, em cinco. Uma parte foi para a ex-província francesa do Líbano, onde não seriam reconhecidos como cidadãos; uma parte foi para a Transjordânia, atual Jordânia, ex-colônia britânica, onde foram reconhecidos como cidadãos (constituindo, hoje, a maioria da população); outra parte ficou em Israel, onde igualmente adquiriu cidadania; outra parte se dispersou pelo mundo; outra, enfim, permaneceu em partes dos territórios da antiga Palestina Britânica destinadas pela ONU para constituir um “Estado árabe”, ou seja: Gaza e Cisjordânia.

Entre 1948 e 1967 não havia, em tais territórios, nenhum soldado israelense. Eles estavam, na verdade, sob domínio árabe, respectivamente, do Egito e da Jordânia. Não obstante, os árabes de Gaza e da Cisjordânia não exigiram do Egito nem da Jordânia que lhes entregassem tais territórios para constituírem ali seu Estado. Porque seu objetivo político não era construir um Estado nesses territórios – daí jamais o terem feito entre 1948 e 1967 –, mas destruir o Estado de Israel, visando reconstituir a antiga Palestina Britânica na forma de uma Palestina Árabe.

Em 1964, sob auspícios de Nasser, seria criada no Cairo a Organização para a Libertação da Palestina, ou OLP. Não para a libertação dos territórios de Gaza e da Cisjordânia da ocupação israelense, naturalmente, pelo simples motivo de que tais territórios não estavam sob ocupação israelense em 1964. Mas, então, para a “libertação” do restante da ex-Palestina Britânica: Israel. O verdadeiro nome da organização deveria ser, portanto, Organização para a Destruição de Israel, ou ODI.

Ironicamente, seria o Estado de Israel que daria afinal legitimidade à OLP e ao próprio movimento palestino, originalmente ilegítimo, ao demandar não a construção de um Estado, mas a destruição de outro. Pois ao ocupar, em 1967, Gaza e a Cisjordânia, Israel forçou a substituição do objetivo original de destruí-lo pelo de libertar a Cisjordânia e Gaza. Havia, enfim, uma causa palestina legítima. 

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O objetivo original do movimento palestino, porém, não foi esquecido. Não somente porque foi seu único objetivo político por 20 anos (entre 1948 e 1967), ou seja, por toda uma geração, mas também porque o novo objetivo não foi escolhido pelos palestinos, e sim imposto por Israel. É por isso que, na verdade, a partir de 1967, jamais houve uma causa palestina, mas duas: construir o Estado palestino em Gaza e Cisjordânia e destruir o Estado de Israel. O que pressupõe o massacre da população israelense, em cujo quadro ideológico se explica a opção histórica por atentados contra civis, em vez de soldados. Explica-se grandemente, também, o próprio fracasso histórico da “causa” palestina.

Não é por acaso que a “causa” palestina seja a única, de todas as grandes causas nacionais da segunda metade do século 20 (excluindo somente a curda), a ter fracassado. Argelinos, sul-africanos e africanos em geral, indianos e timorenses, chineses e vietnamitas, todos venceram. O caso vietnamita é exemplar: lutaram contra as mais poderosas forças armadas da história. Não é, portanto, nenhum poderio militar israelense que explica a derrota histórica palestina. Os vietnamitas, na verdade, jamais venceram as forças armadas americanas. Os EUA foram derrotados por sua própria opinião pública, que passou a considerar injusta a intervenção militar no país asiático, forçando a retirada. Se isso jamais aconteceu em Israel, não é porque a população israelense seja pérfida, como acreditam os anti-israelenses e os antissemitas. Nem porque os grupos políticos israelenses que querem manter a ocupação sejam irresistíveis, como não foram irresistíveis os grupos americanos que queriam continuar a guerra do Vietnã. O motivo é que, ao contrário da causa vietnamita, que não incluía a destruição dos EUA, a “causa” palestina, desde 1967, sempre hesitou, oscilou e se dividiu entre duas causas, entre dois objetivos, um legítimo e um ilegítimo: o que não ajuda a clareza do discurso e dos objetivos, a concentração e a objetividade das forças políticas nem a solidariedade internacional. A recente eleição do Hamas em Gaza não foi um acidente histórico. 

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O projeto sionista, nascido no século 19, não tinha um mapa definido (mas vários). Esse mapa afinal emergiu em 1922, e foi traçado, não pelos sionistas, mas pelo Império Britânico: a Palestina Britânica, criada pela fusão de antigas províncias otomanas. Assim, quando em 1947 a ONU a dividiu, destinando uma parte a Israel e outra a um Estado árabe, dividiu igualmente o movimento sionista. A parte dominante do movimento, liderada por Ben Gurion, foi a que aceitou partilha, fundando o Estado de Israel (a outra parte, naturalmente, eram os que sonhavam em incorporar Gaza e a Cisjordânia, que ganhariam um novo impulso com as ocupações de 1967). No lado árabe, ao contrário, a parte amplamente dominante de seu espectro político, liderada pelo Mufti de Jerusalém, foi a que recusou a partilha, criando o objetivo geopolítico original de destruir o Estado de Israel.

Além da ironia de Israel afinal dar legitimidade à OLP e ao próprio movimento palestino em 1967, outra grande ironia é o fato de que a causa palestina original, reconstituir a antiga Palestina Britânica numa Grande Palestina, de certa forma legitimaria aqueles grupos políticos israelenses que, desde a aceitação da partilha por Ben Gurion, sempre quiseram a mesma coisa. A diferença é o meio: os palestinos, para consegui-lo, devem destruir Israel, enquanto esses grupos israelenses apenas precisam impedir que se construa o Estado palestino. Para isso, contam com o apoio involuntário dos próprios grupos palestinos que ainda querem destruir Israel e, deste modo, atrapalham as forças políticas palestinas que afinal escolheram construir um Estado palestino – além de impedir que a população israelense possa vir a apoiar maciçamente sua criação.

 

[1] Acessível em www.libanoshow.com/home/oriente_medio/onu.htm#181
 
Luís Dolhnikoff (São Paulo, 1961) estudou Medicina e Letras Clássicas na USP. É autor de Pãnico (poesia), São Paulo, Expressão, 1986, apresentação Paulo Leminski; Impressões digitais (poesia, 1990); Microcosmo (poesia, 1991), Os homens de ferro (contos, 1992), os três pela editora Olavobrás (São Paulo), que criou em 1989 com Marcelo Tápia, e de Lodo (poesia), São Paulo, Ateliê, 2009, além do livro infantil A menina que media as palavras (Mirabilia, 2008) e do inédito As rugosidades do caos (poesia, 2012). Tem poemas publicados em Atlas Almanak 88, São Paulo, Kraft, 1988, organização Arnaldo Antunes; Tsé=tsé 7/8 (número especial com 30 poetas brasileiros contemporâneos), Buenos Aires, outono 2000; Medusa 10, Curitiba, abr.-mai. 2000; “Moradas provisórias (antologia de poesia brasileira contemporânea)”, in Hipnerotomaquia, Cidade do México, Aldus, 2001, organização Josely V. Baptista; Folhinha, Folha de S. Paulo, 27/07/2002; e nas revistas Cult 61, SP, out. 2002; Sibila 3, SP, out. 2002; 18 IV, SP, Centro de Cultura Judaica, jun.-ago. 2003; Coyote 5, Londrina, outono 2003; Babel 6, Campinas, dez. 2003; Ciência & Cultura 56, SP, Imprensa Oficial, abri.-jun. 2004; Ratapallax 11, New York, spring 2004; Mandorla – New writing from Américas 8, Illinois, Illinois State University, 2005; Mnemozine 3 (revista online, www.cronopios.com.br/mnemozine, 2006), além dos sites www.sibila.com.br, www.jornaldepoesia.jor.br,www.germinaliteratura.com.br,
www.bestiario.com.br/maquinadomundo, www.cronopios.com.br e ablogando (ab-logando.blogspot.com). Integrou a exposição de poesia visual A Palavra Extrapolada, São Paulo, SESC Pompeia, ago.-set. 2003, curadoria Inês Raphaelian, e a mostra Desenhos, de Francisco Faria, ao lado de Josely V. Baptista, Curitiba, Museu Oscar Niemeyer, mar. 2005 / SP, Instituto Tomie Ohtake, set.-dez. 2005. Traduziu Arquíloco (Fragmentos, São Paulo, Expressão, 1987), Joyce (Poemas, São Paulo, Olavobrás, 1992, colaboração Marcelo Tápia), Auden, (Mais!, Folha de S. Paulo, 06/07/2003), Cervantes (Mais!, Folha de S. Paulo, 14/11/2004, colaboração Josely V. Baptista), Yeats (Etc, Curitiba, jan. 2005), William Carlos Williams (Sibila, www.sibila.com.br, 2011) e Ginsberg (Uivo, São Paulo, Globo, 2012). Entre 1991 e 1994, coorganizou, ao lado de Haroldo de Campos, o Bloomsday de São Paulo (homenagem anual a James Joyce). Como crítico literário, colaborou, a partir de 1997, com os jornais O Estado de S. Paulo, A Notícia, Diário Catarinense, Gazeta do Povo, Clarín e Folha de S. Paulo, além das revistas Sibila e Babel e dos sites Cronópios e Sibila. Recebeu, em 2005, uma Bolsa Vitae de Artes para desenvolver estudo crítico sobre a obra de Pedro Xisto. Entre 2003 e 2008, foi colaborador de política internacional, com destaque para as relações entre política e religião, da Revista 18, do Centro de Cultura Judaica de São Paulo.

luisdkf@uol.com.br