AS PULGAS
Cunha de Leiradella
13-12-2004 www.triplov.org

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14

MADEMOISELLE

Mamãe, posso mostrar a minha gregorinha?

MONSIEUR

Grego...

MADAME

A pedra grega, Silva.

MONSIEUR

Ah, sim! A pedra grega. (A Lemos.) Trouxemos da Grécia.

MADEMOISELLE

Foi quando fomos à Turquia. Não foi, mamãe?

MONSIEUR

Fomos com os Thompson. Mas não pudemos...

MADAME (Tentando desviar o rumo da conversa)

De onde é mesmo Pamela Thompson, Silva? Estou tentando lembrar e não consigo.

MONSIEUR

De Dublin, Ifigênia. Mas católica e nobilíssima desde que nasceu. (A Lemos.) Mas, como eu estava lhe dizendo, professor, infelizmente não pudemos visitar o Egito...

MADAME

Silva.

MONSIEUR (Continuando)

... embora, pessoalmente, eu considere o Egito absolutamente digno de visitar-se. Ifigênia ficou doente e...

MADAME

Silva! Você sempre confunde. Não fui eu que fiquei doente no Egito. Quem ficou doente no Egito foi Pamela. (A Lemos.) Tudo por causa daquela areia desgraçada, ó Monsieur. (A Monsieur.) Eu fiquei doente foi na Pérsia, Silva.

MONSIEUR

Na Pérsia? Você ficou doente foi no Egito, Ifigênia. Me lembro como se fosse hoje.

MADEMOISELLE

Foi, sim, mamãe. Até a senhora...

MADAME

Ana Maria, tenha modos! Eu não...

MONSIEUR

Você, sim, Ifigênia. (A Lemos.) Nós estávamos, por sinal, na biblioteca de Alexandria. Eu não sei se o senhor sabe, mas eu, quando viajo, se tiver biblioteca na cidade, não importa se grande, se pequena, pode apostar, eu entro nela. É um vício, como dizer... É um dos poucos vícios que eu tenho, o senhor entende?

LEMOS

Perfeitamente, Monsieur. Eu...

MONSIEUR

Eu também. Eu também. Afinal, um homem sem vícios não é um homem. Mas, como eu estava dizendo, quando chegamos ao Egito, Ifigênia...

MADAME

Silva.

MONSIEUR

Então não foi, Ifigênia? Já durante a viagem você mal saía do banheiro. (A Lemos.) Aliás, coisa mais do que natural, quando se tem um desarranjo.

MADAME

Silva!

LEMOS

Madame, se a senhora me permite, são poucas as pessoas que arranjam desarranjos.

MONSIEUR

Está vendo, Ifigênia? Desarranjo é muito mais importante do que você pensa.

MADEMOISELLE

É, sim, mamãe. Uma vez, aquela lady, amiga de Pamela...

MADAME

Ana Maria!

MONSIEUR

Ora, Ifigênia, o Monsieur entende disso. Conhece desarranjos. (A Lemos.) Mas, como eu estava dizendo, Ifigênia, mal entrou na biblioteca, foi entrar e ter vontade. O senhor, que entende disso, sabe como é. Chega num ponto...

MADAME

Silva.

MONSIEUR

E, o pior, é que, na biblioteca de Alexandria, não sei se o senhor sabe, os livros não são feitos de papel. São tijolos. E, Ifigênia, coitada, desesperada...

MADAME

Silva!

MONSIEUR

Então não foi, Ifigênia? (A Lemos.) Para o senhor fazer uma ideia, o cheiro só saiu mesmo foi aqui em casa. E, mesmo assim, só depois de muita esfregação.

MADAME

Silva, merda, o Monsieur quer é ver o calhau! (A Lemos.) Desculpe, ó Monsieur, mas é mais uma emergência.

MADEMOISELLE

Oh, mamãe! A senhora não gosta da minha gregorinha. Ela não é calhau. É pedra grega.

MADAME

É calhau, sim!

MADEMOISELLE

Mamãe!

MADAME

Silva, o Monsieur quer...

MONSIEUR

O senhor gosta de pedras?

LEMOS

Gregas, Monsieur, são a minha perdição.

MADEMOISELLE

Subimos a Acrópole de propósito, sabe, Alberto? Não foi, papai?

MADAME

Como custa subir aquele morro sem elevador.

LEMOS

Se Madame me permite, eu diria que na subida é que se...

MONSIEUR

Escuta, Ifigênia! É uma grande verdade! Na subida é que se sobe. ( A Lemos.) O senhor conhece a Grécia?

LEMOS

Eu...

MONSIEUR

Eu também. Eu também. Realmente, a Grécia é um país admirável.

MADAME

Eu detestei. O sol, então, fere até a vista.

MADEMOISELLE

Feriu, porque a senhora esqueceu os óculos escuros no Egito, mamãe. Dentro da biblioteca. Não foi, papai?

MADAME

Ana Maria, tenha modos! Eu uso lentes de contato. (A Lemos.) O Monsieur pode até não acreditar, mas Pamela Thompson levou os dela e também detestou aquele sol. E os guias? Não entendem nem sinais. Ô guias mais burros!

MONSIEUR

De fato, Ifigênia, os guias não entendem nem sinais. Mas, tirando os guias, a falta de elevadores e o sol, a Grécia tem o seu valor. Ah, tem, Ifigênia! Tem azeite, tem história, tem...

MADEMOISELLE

Papai, o Alberto...

MADAME

Ana Maria, tenha modos! O Monsieur conhece a Grécia.

MADEMOISELLE

Ah, conhece, Alberto? Que bom!

O relógio bate seis horas. Madame toca a campainha. James entra.

JAMES

Oui, Madame.

MADAME

Traga a pedra.

JAMES

A grega, Madame?

MADAME (Seca)

É.

JAMES

Oui, Madame.

MADEMOISELLE

Com cuidado, James.

JAMES

Oui, Mademoiselle.

MADAME

James.

JAMES

Oui, Madame.

MADAME

Pode ir.

JAMES

Oui, Madame.

James sai.

MADEMOISELLE

É branca, branca, sabe, Alberto? Parece até de leite. Não é, papai?

MONSIEUR

Realmente, parece até de leite. Aliás, eu não sei se o senhor sabe, mas a Grécia tem grandes rebanhos de ovelhas e de cabras. Os queijos gregos são famosos.

MADAME

Um bodum! Parecem até cocô de Caxambirra.

James entra, com a pedra grega dentro de uma redoma.

MADAME

Mostre ao Monsieur.

James aproxima-se de Monsieur.

MADAME (Apontando Lemos)

Àquele! O nosso já conhece. Carregou esse calhau o tempo todo.

JAMES

Pardon, Madame.

MONSIEUR

Realmente, carreguei-a o tempo todo.

MADAME

James.

JAMES

Oui, Madame.

MADAME

Mostre logo.

JAMES

Oui, Madame. (Aproxima-se de Lemos.) Regardez, Monsieur.

MONSIEUR

Pegue. Pegue nela.

MADAME

James.

JAMES

Oui, Madame.

MADAME

Tire a redoma.

JAMES (Tirando a redoma)

Pardon, Madame.

LEMOS (Pegando a pedra)

Realmente pesada.

MONSIEUR

Eu não lhe disse? Conheço esse peso desde que o peguei. Carreguei-o o tempo todo.

LEMOS

Pesada mesmo.

MONSIEUR

Sinta. Sinta o peso.

LEMOS (Balançando a pedra)

Realmente, pesada como uma pedra.

MONSIEUR

Uma verdadeira pedra grega, não?

LEMOS

Das mais verdadeiras, sem dúvida.

MADEMOISELLE

Ano passado levei-a ao baile do reveillon. Foi um sucesso. Não foi, papai?

MONSIEUR

Era a única pedra grega do baile.

MADEMOISELLE (Pegando a pedra)

Tadinha da minha gregorinha.

MADAME

Ana Maria, tenha modos! O Monsieur quer repetir.

MADEMOISELLE

Ah, quer, Alberto? Que bom!

LEMOS (Pegando a pedra)

Fantástica, Madame. Verdadeiramente fantástica.

MONSIEUR

Fantástica e verdadeira. Apanhei-a logo que chegamos e carreguei-a o tempo todo.

MADEMOISELLE

Já tinha visto alguma igual, Alberto?

LEMOS

Grega? Grega, não.

MONSIEUR

Pois então veja. Veja. Olhe bem. É a única que o senhor vai ver enquanto não for à Grécia. (Lemos balança a pedra na mão.) Sinta. Sinta o peso. Que tal? Não é um verdadeiro peso de pedra, hem?

Lemos balança a pedra com mais força e ela cai no colo de Madame. Lemos cai junto, tentando apanhá-la.

MADAME

Puta que pariu!

LEMOS (Levantando-se)

Foi uma emergência, Madame!

MADAME

Emergência sou eu! (Joga a pedra no chão.) Só dou é azar com tudo que é grego.

MADEMOISELLE (Apanhando a pedra)

Oh, mamãe!

LEMOS

Pardon, Madame. Pardon!

MADAME

Pardon, a mãe!

MONSIEUR

O senhor é grego?

LEMOS

Eu...

MONSIEUR

Eu também. Eu também. Mas o senhor parece muito mais do que eu. Afinal, o senhor é professor.

MADEMOISELLE (Abraçando a pedra e chorando)

Tadinha da minha gregorinha. Ninguém gostada minha gregorinha.

MONSIEUR

Ana Maria é sensibilíssima. Nem parece minha filha.

MADAME

James.

JAMES

Sim, Madame. A emergência...

MADAME

Que emergência, que merda!

JAMES

Sim, Madame.

MADAME

Se manda, merda!

JAMES

Tou indo, Madame! Tou indo!

James sai correndo. Mademoiselle continua chorando. Madame abre-lhe a boca e cheira o hálito.

MADAME

Silva, Ana Maria engravidou!

Lemos levanta-se, dança alguns passos aeróbicos e abraça Mademoiselle.

LEMOS

Ana Maria, o futuro começou! (Canta.) Viva eu, viva tu! Viva o rabo do tatu! Viva eu, viva tu! Viva o rabo do tatu!

MONSIEUR (Abraçando Madame)

Ifigênia, nós estamos no futuro! (Canta.) Viva eu, viva tu! Viva o rabo do tatu! Viva eu, viva tu! Viva o rabo do tatu!

TODOS (Cantando e dançando)

Viva eu, viva tu! Viva o rabo do tatu! Viva eu, viva tu! Viva o rabo do tatu!

James entra, arrombando a porta, fardado de marine .

JAMES (Gritando)

All right! Todo mundo nu!

A cena congela. O relógio toca, num crescendo, uma marcha militar de John Philipe de Souza.

FIM DO SEGUNDO ATO