AS PULGAS Cunha de Leiradella 13-12-2004 www.triplov.org |
MADEMOISELLE James adora esta casa, sabe, Alberto? Não é, mamãe? MADAME Ana Maria, tenha modos! Esta casa é nossa. MADEMOISELLE Mas James... MADAME (Ao mesmo tempo) Ó Monsieur, esta casa é nossa, a casa de Guarapari também é nossa, o banco de meu marido é nosso, a fazenda de Caxambirra também... MONSIEUR Tudo é nosso, professor. Até o Shakespeare da minha biblioteca também é nosso. MADEMOISELLE Eu adoro Londres, Alberto. MONSIEUR O senhor conhece Londres? LEMOS Eu... MONSIEUR Eu também. Eu também. Londres é uma bela cidade. Uma belíssima cidade, não há dúvida. Uma cidade tipicamente inglesa, como eu sempre digo. LEMOS Por isso, a Inglaterra ganhou todas as guerras, Monsieur. MADEMOISELLE É por isso que eu adoro os Thompson. Não é, mamãe? MONSIEUR Wilson Thompson é um perfeito cavalheiro. Riquíssimo. Tem uma casa de praia... LEMOS Os ingleses adoram praia, Monsieur. MONSIEUR Os ingleses adoram praia, os ingleses adoram campo... Os ingleses adoram tudo. O senhor vê aquela bandeira? LEMOS Aque... MONSIEUR É a bandeira da Inglaterra. LEMOS Claro. Branca, azul e vermelha. A rainha, o rei e o herdeiro. MONSIEUR Exatamente. A rainha, o rei e o herdeiro. MADEMOISELLE Compramos no Canal do Panamá. Não foi, mamãe? MADAME Compramos na última comporta. Nas outras também tinha. Mas pareciam até falsas. O azul, então... Desbotado como ele só. MONSIEUR Na última é que tinha as melhores, realmente. LEMOS Fantástica. MONSIEUR Fantástica e verdadeira. LEMOS Perfeita. MADEMOISELLE Principalmente o azul. (A Madame.) Não foi, mamãe? Até a senhora disse que o azul das outras parecia desbotado, lembra? MADAME Parecia, não. Era desbotado. LEMOS O azul desta, Madame, é realmente... MONSIEUR Diga. Diga. É, realmente... LEMOS Monsieur... MONSIEUR Diga. É realmente... LEMOS Mon... MONSIEUR Diga! É realmente azul! LEMOS É realmente azul! MADEMOISELLE Não parece feito de propósito, Alberto? LEMOS Mais que de propósito, Ana Maria. MONSIEUR Tropical puríssimo. Eu verifiquei pessoalmente. LEMOS Nota-se de longe, Monsieur. MONSIEUR Ah, então, chegue perto. Chegue perto. Chegue perto e verifique. Vá. Vá. (Lemos aproxima-se da bandeira.) Verifique. Verifique. LEMOS (Passando as mãos na bandeira) Realmente, Monsieur, um tropical da melhor qualidade. MONSIEUR Eu não lhe disse?! Verifiquei pessoalmente. E essa assinatura? O senhor está vendo essa assinatura? LEMOS (Passando as mãos na assinatura) Dá para sentir, Monsieur. MONSIEUR Então, sinta. Sinta. (Lemos esfrega a assinatura da bandeira na cara.) Que tal? LEMOS Firmíssima, Monsieur. Uma verdadeira rocha de Gibraltar. MONSIEUR Pois é a assinatura da rainha-mãe. LEMOS Uma verdadeira perfeição grafológica, Monsieur. MONSIEUR O senhor sabe de uma coisa? O senhor devia ser caixa no meu banco. (A Madame.) Você escutou, Ifigênia? Uma verdadeira perfeição grafológica. (A Lemos.) O senhor conhece línguas? LEMOS Monsieur... MONSIEUR Pois então aprecie. Aprecie a beleza dessa assinatura e me diga se não é uma verdadeira perfeição grafológica. LEMOS (Apalpando e cheirando a bandeira) Sem dúvida, Monsieur. Firmíssima. MONSIEUR Firme como um cheque visado. LEMOS Se eu fosse o senhor, Monsieur, eu diria: firme como as jóias da coroa. MONSIEUR Mesmo que sejam falsas, são sempre verdadeiras. LEMOS Exatamente, Monsieur. Exatamente. MONSIEUR Talvez o senhor não saiba, mas o senhor é um homem de futuro. MADEMOISELLE Papai, o... MADAME Ana Maria, tenha modos! O Monsieur sabe que é um homem de futuro. MADEMOISELLE Ah, sabe, Alberto? Que bom! MADAME (Ao mesmo tempo) Continue, Silva. MONSIEUR Como eu estava falando, o senhor, que entende disso... (Aproxima-se da bandeira.) Me diga, o senhor, que entende disso. (Passa as mãos na assinatura.) Além da beleza desta assinatura, qual é o país, a não ser a Inglaterra, que dá de recordação bandeiras inglesas? MADEMOISELLE Essa nós compramos, papai. Não foi, mamãe? MADAME Ana Maria, tenha modos! A bandeira, agora, é nossa e a gente pode dizer o que quiser. Continue, Silva. MONSIEUR Realmente, nós compramos, minha filha. Mas, para nós termos comprado... Minha filha, se eles tivessem dinheiro, não estariam vendendo, estariam comprando. Quem tem dinheiro, compra. Quem não tem, vende. Por isso, é que nós compramos, entendeu? É um principio simples de economia, mas que sempre funciona. (A Lemos.) Mas, como eu estava dizendo, me diga o senhor, o senhor, que entende disso, qual o país, a não ser a Inglaterra, que dá de recordação bandeiras inglesas da melhor qualidade e, ainda por cima, assinadas pela rainha-mãe? Me diga. Me diga. Fale. Não se acanhe. Eu aceito qualquer resposta. LEMOS Não tem resposta, Monsieur. Não existem duas Inglaterras iguais. MONSIEUR Escutou, Ifigênia? É como eu sempre digo: não existem duas Inglaterras iguais. LEMOS Isso, Monsieur, apesar de a democracia inglesa ser um fato, do... MONSIEUR Diga. Diga. Do Big Ben ser um fato... LEMOS Do Big Ben ser um fato... MONSIEUR Do Banco da Inglaterra ser um fato... LEMOS Do Banco da Inglaterra ser um fato... MONSIEUR Do... Da... LEMOS A própria Inglaterra é um fato, Monsieur. MONSIEUR Não é possível! (A Madame.) Você escutou, Ifigênia? (A Lemos.) Não é possível! O senhor tem que ser dentista! MADEMOISELLE Papai... MADAME Ana Maria, tenha modos! Continue, Silva. MONSIEUR Devia ser, minha filha. Devia ser. Quem tira as palavras da boca dos outros com tanta perfeição devia ser dentista. (Senta-se.) Eu não sei se o senhor sabe, mas Ford I sempre dizia que dez minutos sentados valiam mais do que dez horas em pé. E olhe que ele entendia disso. Ganhou uma fortuna vendendo carros. MADEMOISELLE Papai... LEMOS (Sentando-se) Meu pai sempre teve Fords, Monsieur. MONSIEUR Ah, então o senhor já nasceu apreciando. (O relógio bate uma badalada fortíssima. Monsieur olha o relógio de bolso.) Certíssimo! (Guarda o relógio.) Ifigênia, eu estava falando da Inglaterra, mas de quê, mesmo, hem? MADAME Dos fatos, Silva. MONSIEUR Ah, sim. Dos fatos. Dos fatos. Mas que fatos, Ifigênia? MADEMOISELLE Das duas Inglaterras iguais, papai. MONSIEUR Ah, sim! Das duas Inglaterras iguais. A Inglaterra é um fato, mas, como não há duas Inglaterras iguais, também não há dois fatos iguais. Isto, apesar de a Inglaterra ser um fato. (A Lemos.) Era isto? LEMOS Era isso, exatamente, Monsieur. E exposto com tanta vernaculidade que... Monsieur, deixe-me que lhe diga. Talvez o senhor nunca tenha percebido, mas o senhor é um filósofo. Um perfeito racionalista. Se não há duas Inglaterras iguais, também não há dois fatos iguais. MADEMOISELLE Alberto, o papai... MADAME Ana Maria, tenha modos! Se o Monsieur diz que seu pai pode ser isso aí, por que é que ele não pode ser? Seu pai tem um banco! MADEMOISELLE Mas, mamãe... MADAME (Ao mesmo tempo) Ó Monsieur, nós já temos tantas coisas! MONSIEUR Minha filha, banqueiro que se preza nunca senta na cadeira do vizinho. (Ri. A Lemos.) Boa piada, não? Todos riem. O relógio badala, marcando o ritmo das gargalhadas. LEMOS Monsieur, sem a menor dúvida, o senhor é um filósofo. Piadas assim... MONSIEUR Diga. Diga. Diga! LEMOS Fazem a gente rir. O relógio pára de badalar. |
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