INÚTEIS COMO OS MORTOS
Cunha de Leiradella
www.triplov.com 16-09-2005

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casa

ATO
CENA I

Quarto de hotel. Eduardo e Nininha.

EDUARDO

Nininha. Nininha.

 

NININHA (Olhando pela janela, após um tempo)

É engraçado.

 

EDUARDO

Quê que é engraçado?

 

NININHA (Voltando-se e fazendo um gesto largo)

Isto.

 

EDUARDO

Isto?

 

NININHA

Tudo isto.

 

EDUARDO

Tudo isto, o quê, Nininha?

 

NININHA

Este quarto, este hotel, as pessoas que nos viram... (Olha pela janela.) Tudo.

 

EDUARDO (Abraçando-a)

Pensando em quê? Hem?

 

NININHA

Em tudo.

 

EDUARDO

Eu tava pensando em nós.

 

NININHA

Lembra quando eu ia ao seu escritório?

 

EDUARDO

Claro que eu lembro. Lembro de tudo.

 

NININHA

Eu só ia pegar aqueles livros pra te ver.

 

EDUARDO

E eu só os tinha pra que você fosse pegá-los.

 

NININHA

Metade, nem os li.

 

EDUARDO

Eu nunca me importei que você lesse. Eu queria era que você fosse ao meu escritório. (Beija-a.) Eu queria era te ver, boba!

 

NININHA

Eu sei. Mas era um pretexto bobo. (Afasta-se.) A gente não devia precisar de pretextos, Eduardo.

 

EDUARDO

Mas, se não fosse aquele pretexto, a gente não taria aqui agora. Ou taria?

 

NININHA

Não sei. Mas é ruim a gente precisar de pretextos.

 

EDUARDO

Agora, não precisamos mais. Agora, nós tamos aqui porque queremos.

 

NININHA

É. Mas se precisamos de um pretexto pra nos encontrarmos, que pretexto iremos arrumar pra continuar nos encontrando? Eduardo, você já pensou no depois?

 

 

EDUARDO

Que depois? Que depois, Nininha?

 

NININHA

Depois que a gente sair deste quarto.

 

EDUARDO

Nininha, depois que a gente sair deste quarto não haverá mais depois.

 

NININHA

Você acha que nunca vai mudar nada?

 

EDUARDO

Só mudará se nós quisermos.

 

NININHA

Você acredita, mesmo, nisso, Eduardo?

 

EDUARDO

Acredito. As coisas só mudarão se nós quisermos, Nininha.

 

NININHA

Pois eu tenho medo.

 

EDUARDO

Medo de quê?

 

NININHA

Não sei. Mas tenho.

 

EDUARDO

Nininha.

 

NININHA

E se isto for o começo do fim, Eduardo? Você já pensou nisso?

 

EDUARDO

Era nisso que você tava pensando? (Nininha cobre o rosto com as mãos.) Quer ir embora? (Nininha abana a cabeça. Eduardo abraça-a.) Então!

 

NININHA

Sabe? A gente vem hoje, vem amanhã, vem mil vezes...

 

EDUARDO (Ao mesmo tempo)

Nininha...

 

NININHA (Continuando)

Mas vai ter um dia que a gente não vai querer vir mais.

 

EDUARDO

Quem te disse?

 

NININHA

E precisa dizer, Eduardo?

 

EDUARDO

Escuta. Você não acha que, o mais importante, é a gente tar aqui agora? Ter chegado até aqui?

 

NININHA (Afastando-se)

Eu nunca tive nada meu, Eduardo.

 

EDUARDO (Ao mesmo tempo)

Nininha...

 

NININHA (Continuando)

E, agora que tenho, tenho medo de perder.

 

EDUARDO

E quem disse que a gente vai perder? A gente só perde se quiser.

 

NININHA

E quem garante que a gente não vai querer, Eduardo?

 

EDUARDO

Quem garante? Nós garantimos, Nininha. Lutamos muito pra chegar até aqui. Ou você já esqueceu...

 

 

NININHA

Você já lutou por muitas coisas que perdeu, Eduardo.

 

EDUARDO

Não eram coisas só minhas. Eram coisas que dependiam dos outros.

 

 

NININHA

As nossas coisas também dependem dos outros, Eduardo.

 

EDUARDO

Não. Não dependem, não.

 

NININHA

Dependem, sim. As minhas coisas dependem de você e as suas coisas dependem de mim.

 

EDUARDO

Nós não somos os outros, Nininha. Nós...

 

NININHA

Nós somos iguais aos outros, Eduardo. Tá vendo aquela cama? Os outros também já deitaram nela.

 

EDUARDO

Nininha...

 

NININHA

Sabe do quê que eu tenho mais medo? Que, depois de deitar naquela cama, a gente continue deitando só por que tem que deitar.

 

EDUARDO

Escuta...

 

NININHA

Depois que deitar naquela cama, Eduardo, a gente vai ser o que sempre foi. Duas pessoas que só fazem coisas porque são obrigadas a fazer. Como hoje fazemos...

 

EDUARDO (Ao mesmo tempo)

E quem disse a você...

 

NININHA (Continuando)

... com outras pessoas, em outros lugares e outras horas.

 

EDUARDO

Nininha. E quem disse a você que nós somos assim? Nós nunca fomos assim.

 

NININHA

Nunca fomos? Eduardo...

 

EDUARDO

Não. Nós sempre...

 

NININHA

Nós sempre fomos assim, Eduardo. Se não fossemos, não precisaríamos tar aqui.

 

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