MARIA ESTELA GUEDES
(CICTSUL, ISTA)
S. Frei Gil, um santo carbonário
 
4. As três ciências

A literatura egidiana situa-nos Frei Gil quase sempre num espaço de transitoriedade, ou porque ele viaja de universidade em universidade, o que é próprio dos alquimistas, ou porque o seu lugar é novo, do que ainda não é completamente, mas virá a ser. Assim ele é um homem da formação da nacionalidade, num tempo em que as fronteiras de Portugal ainda não estavam definidas; ele ainda não tem nacionalidade nem cultura definidas, transitava da cultura árabe para a hispânica. Ele é estudante do mosteiro de Santa Cruz, num tempo em que em Portugal ainda não existia Universidade, mas em breve existiria. Em 1290, D. Dinis cria o Estudo Geral em Lisboa, com licenciaturas em Artes, Direito Canónico, Civil e Medicina. No seu tempo de estudante, quando leu as 33 obras da bem provida livraria do mosteiro, como garante Eça de Queirós, no seu lindíssimo conto inacabado, Santa Cruz desempenhava funções de Universidade, mas era apenas uma escola catedralícia.

Só em 1309 o mesmo rei funda em Coimbra o Estudo Geral, para ensino da Sacra Página, Decretais, Leis, Medicina, Dialéctica e Gramática. Finalmente, ele situa-se nos primórdios da fundação da Ordem Dominicana.  

Com a Medicina, ele é também um homem de vanguarda: esse ensino ainda não existia em Portugal, no reino havia falta de médicos, Frei Gil será dos primeiros escolares a beneficiarem das bolsas de estudo concedidas com o fim de os estudantes do mosteiro de Santa Cruz irem a Paris tirar o curso.

Com que intenção terá um jovem bem nascido, rico, tirado o curso de médico, se, como apurou João Oliveira, o médico não só era mal visto como ganhava três vezes menos que um tabelião? O rei podia estar interessado em médicos, mas a Igreja nem por isso, pois a fé bastava para curar. Frei Gil é o homem das três ciências, e a maior de todas, diz o Demónio, é a Magia. A batalha vai travar-se entre as duas ciências do sobrenatural: Magia e Teologia. Uma vez que Gil se converte e abandona a Magia, diríamos que venceu a Teologia, outra forma de medicina. Ele é chamado médico das almas, na fase em que proliferam os milagres, já depois de recuperado o contrato feito com o Demónio. A Medicina não tem importância na narrativa, os autores sabem que ela trabalha no domínio das coisas naturais, e o natural é uma categoria de realidade inferior. Em aparência, dada a espectacularidade e quantidade dos milagres, que incluem ressurreição dos mortos, a Teologia é a mais poderosa das ciências, pois fornece cura para todas as doenças.

Acontece que nem os clérigos acreditam nestas histórias. O tradutor de André de Resende queixa-se de que ele está sempre a fazer troça, outros desesperam-se porque os autores antigos escrevem em latim bárbaro e cometem erros inexplicáveis, temos em cena uma Academia das Ciências a reclamar para ela uma literatura egidiana - e que literatura é essa, saída da Academia das Ciências? Como seria de esperar, é uma literatura que está do lado da Medicina e da Magia, não do lado da Teologia. O ponto de vista académico ilumina o alquimista, o nigromante. E que pode saber a Academia das Ciências que não saibam os clérigos cuja hermenêutica se faz exclusivamente na linha da medicina das almas, ou seja, da vitória da Teologia sobre a Magia?

A Academia, instituição de origem maçónica, sabe ler nas entrelinhas. Quem hoje detém as chaves da Tradição e se esforça por conservar os conhecimentos do esoterismo é a Maçonaria. Se a Academia das Ciências leva a sério o que para uma mente positiva, ou mesmo positivista como é o caso de Teófilo Braga, que escreve a mais monumental obra sobre Frei Gil, não passa de um acervo de patranhas, em que nem os dominicanos acreditam, é porque as patranhas são forma discreta de falar.

 
>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>Legenda: o que está escrito