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Não sei em que cor escreveu Deus os Dez Mandamentos, nas tábuas que entregou a Moisés. Também não sei de que cor eram os caracteres impressos naquele pano que Jibrail, o Anjo Gabriel, pôs à frente dos olhos de Muhammad, abençoado seja o seu nome, exigindo: "Lê!" Como? Como é que um analfabeto poderia ler? Num desespero, reclamou, como se Deus fosse ignorante da sua ignorância: "Não sei ler!". Mas Jibrail insistiu e Muhammad, que Deus o cubra de glória, leu, porque esse foi um milagre da escrita sagrada e a primeira revelação. Este é o espaço cultural da legenda do Beatus Aegidius . Nada tem de popular. Outro lugar-comum na sua literatura é a frase: "Os que antes de mim escreveram". Podemos não ter já as fontes primárias, mas elas eram escritas. A cultura é escrita e de transmissão de testemunho, reverenciam-se os autores. Mundo dos escolares, da escolástica. Ora a escolástica gera a rebelião, pois por muito doutos que sejam os mestres, e por muito pobres que sejam os estudantes, a juventude contém em si a semente da contradição, degrau da ascensão à sua própria mestria e individualidade. A este Espírito de Contradição da juventude, dá Teófilo Braga o nome de Titivetilarius. Titivetilarius é o escolar pobre, o pobre de espírito, Espírito Santo, que às vezes apetece chamar Espírito Santo de Orelha. É um que às vezes os mestres põem ao canto da sala de aula com orelhas de burro enfiadas na cabeça, porque comete muitos erros e dá muitas silabadas no latim. Se a lenda egidiana nada tem a ver com a cultura popular, já se insere naturalmente na tradição estudantil. Da legenda ouvimos por vezes dizer que contém erros de palmatória, que está escrita em latim bárbaro, que o autor troça enquanto escreve. São caracteres diagnosticantes de uma literatura de estudantes em que a autoria é imprecisa, porque a obra é colectiva e os textos aumentam de reedição para reedição; pode aparecer o pseudónimo nela em vez do nome; essa literatura está escrita num latim miscigenado com a língua materna, o que resulta numa nova língua, um híbrido chamado latim macarrónico; nesta literatura os autores estão sempre a fazer troça. Os estudantes sempre se associaram, e por vezes o seu associativismo é revolucionário. Em finais do século XVIII, em Portugal, as associações de estudantes são sociedades iniciáticas. De uma delas, a Maçonaria Académica, vai nascer outra, que a páginas tantas transborda para fora das escolas por se transmitir aos quartéis e um pouco a toda a gente, incluindo frades. Falo da Maçonaria Florestal, ou Carbonária, cujo catecismo levou à implantação da República. Uma das obras mais importantes sobre S. Frei Gil, já o afirmei, pertence a Teófilo Braga. Certamente não agradará à Igreja católica, mas Theophilo, cujo nome nem é de baptismo nem pseudónimo literário, divulgador do positivismo em Portugal, tinha relações mais estreitas com outra Igreja, a Igreja Positivista do Brasil, que se apressou a manifestar-lhe apoio em telegrama, mal ele assumiu a primeira Presidência da República. O livro, 300 páginas de teatro em verso, irrepresentáveis mesmo em telenovela, funciona como sebenta, para usar um termo do calão universitário. Homem de cultura colossal, Teófilo conhecia muito bem as instituições escolares: publicou uma História da Universidade de Coimbra. A história de S. Frei Gil é obra de escolares, por isso colectiva, galhofeira, irreverente, cheia de monstruosidades linguísticas e de cultura geral. São académicos, autores ligados estreitamente a associações de estudantes que pegam nela, e dois são muito conspícuos: Teófilo Braga e Almeida Garrett. Almeida Garrett foi um dos membros da Sociedade dos Jardineiros, provavelmente seu co-fundador, em Coimbra. A Sociedade dos Jardineiros, ou Sociedade Keporática, como lhe chama Oliveira Marques, é uma organização da Maçonaria Florestal, mais conhecida entre nós como Carbonária. O "S. Frei Gil" de Teófilo é um tratado sobre a cultura medieval, com o amor cortês, votado à dama e a Nossa Senhora, perseguido como heresia, pois o Amor é nela mais forte do que o Verbo. Este Amor é um anagrama de Roma, funcionando como assinatura dos Fiéis do Amor, os que se opunham à Igreja de Roma. Todo o livro, de resto, é joanino, o que nos leva para as regiões do Espírito Santo, de Joaquim de Fiore, etc.. Na hermenêutica de Teófilo, S. Frei Gil era um trovador, um herege, um alquimista, apaixonado por D. Teresa, a rainha divorciada do rei de Leão, que entrara num convento de beguinas em Toledo. As beguinas professavam a heresia do Espírito Santo, desse Amor cátaro que desprezava o corpo. Nas Covas de Toledo, Teófilo Braga inicia Gil, o Fiel do Amor, na Irmandade do Livre Espírito. O recipiendário teve Thomaz Scotto por padrinho. Publicado o livro em 1905, à beira da República, e certamente porque ele mesmo era um jardineiro, Teófilo faz o santo ser iniciado na Maçonaria Florestal Carbonária. |
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