MARIA ESTELA GUEDES
(CICTSUL, ISTA)
S. Frei Gil, um santo carbonário
 

2. Gil: Nemo ou Todos-os-Santos?

S. Frei Gil, considerado escritor, pouco ou nada escreveu que se possa garantir que é dele. Pertencem de certeza a um frade dominicano a dezena e meia de fragmentos das Vitae Fratrum , nas quais se fala de uma viagem a Bolonha, do quotidiano de um convento, e de episódios estranhos como visões, êxtases e levitação. Não ponho nada disso em causa, o problema é outro. Para fazer sentido dizer que tais obras foram escritas por S. Frei Gil, é preciso saber primeiro quem foi esse Gil. Ora a identidade de Gil varia consoante as fontes, e neste ponto não vou levar em conta outros S. Gil, dos quais João Oliveira fez levantamento, com os quais se pode estabelecer confusão. A confusão não se estabelece entre S. Gil do século XII e S. Gil do século XVIII, sim entre Gil, Gelásio, Gelvaz, Santo Egídio, entre Gil Rodrigues Valadares e Gil Pereira, e mais designações por que é referido.

A identidade do autor é caprichosa, e tem vindo a ser cada vez mais dissolvida na literatura, provavelmente de acordo com o princípio hermético de ocultar os iniciados, prestando-se sobre eles falsas informações biográficas. Se pegarmos no nosso cartão de identidade, vemos que são essenciais o nome, a filiação, a data de nascimento e a naturalidade. Em relação a esta, não detectei anomalias de maior, apesar de circularem várias fórmulas: S. Frei Gil de Portugal, S. Frei Gil Espanhol, S. Frei Gil de Santarém e S. Frei Gil de Vouzela. Porém paternidade e maternidade estão altamente comprometidos, o mesmo podendo dizer-se da data de nascimento. Tomando duas das mais extremas, direi que Santo Egídio de Coimbra viveu bem mais de duzentos anos.

António Pereira Forjaz, da Academia das Ciências de Lisboa, onde existem manuscritos sobre Gil, como revela Ramalho ao comentar uma versão da "Conversio Miranda D. Aegidi Lusitani, Doctoris Parisiensis, Ordinis Praedicatorum", de André de Resende, algo diversa da publicada, não tem dúvidas:

"D. Gil ou Egídio de Valadares viu a luz em Vouzela - em 1185: dez anos antes de Santo António - no solar de seu pai, D. Rui Pais de Valadares, senhor de Mortágua e Gonfalim, Pretor ou Alcaide-mor do Castelo de Coimbra".

Frei Baltazar de S. João, que escreveu no século XVI, antes de André de Resende e de Frei Luís de Sousa, também não tem dúvidas nenhumas:

"O nosso extraordinário Padre Fr. Gil era natural de Portugal, onde nasceu na vila de Vouzela, situada nos termos de Coimbra. Seus pais eram de alta nobreza, descendentes, aliás, de estirpe real, e tidos na maior consideração entre os fidalgos. O pai chamava-se D. Rodrigo Pereira, e era um cavaleiro valoroso e magnânimo. Tomara-o o rei D. Sancho por conselheiro, e até por íntimo, e, porque o apreciava mais que qualquer outro, confiara-lhe o cargo de alcaide da cidade de Coimbra e entregara-lhe, por vezes, o governo de todo o reino."

Páginas adiante, e saltamos filiação materna e outros dados problematizantes, escreve o mesmo cronista dominicano:

"Na verdade, aos 26 anos de idade, ou seja no ano 1335 da Incarnação do Senhor, ingressou na Ordem dos Pregadores, apoiado pelo bastão da pregação evangélica, venceu mesmo às claras os demónios e exterminou em muitas partes todas as manchas de heresia..."

Frei Gil, como se nota, viveu afinal no século XIV: "nam vigesimo sexto aetatis suae anno, millesimo uero trecentesimo trigesimo quinto Dominicae incarnationis religionem Praedicatorum ingressus..." - reza o manuscrito. Esta falsa informação ocorre sempre que há datações, o que altera em um século a sua idade, além de erros menores, a este sobrepostos.

Factor dissolvente da identidade é também a atribuição a Frei Gil de milagres alheios. Outros que antes de mim escreveram, na maior parte dominicanos, informam que a conversão de Frei Gil é a de S. Paulo. Por mim, que não conheço santos, só me apercebi de duas categorias de milagres que não encaixam numa fábula convincente: as curas de vinho e as do tabu da fala.

Os milagres de tornar mau vinho em bom vinho, além de plágio dos de Jesus Cristo, lembram demasiado a diva garrafa de Rabelais, ou seja, a capacidade divinatória que nas bacanais o vinho proporcionava. Aliás, S. Frei Gil diz-se que era nigromante, adivinho, astrólogo, e existe na sua literatura um veio temático sebastianista, fundado num texto com esse teor que lhe é atribuído.

Milagres que se diz ter feito mas pertencem a outro santo são os que apontam para o verbo - fonética. A parte mais significativa dos seus milagres diz respeito a curas de males que afectam o aparelho fonador, ou porque a pessoa fica muda, surda e muda, ou porque morre asfixiada, deixa de pronunciar claramente as sílabas, de poder falar em voz alta, passando a ciciar. Em síntese: a pessoa quer falar mas não pode. Imaginai a minha situação aqui, num convento dominicano, a fazer uma conferência sobre um santo, um dos primeiros provinciais da Ordem, e ter de dizer que tal pessoa não é nada um santo, é um nigromante! Imaginai que isso é de facto o que eu penso, mas poderei dizer o que penso? A democracia em que felizmente vivemos, e que acabou com a censura, dando-nos este maravilhoso bem que é a liberdade de expressão, será suficiente para me permitir falar sem medo? Ou vou ficar calada como se o santo fosse um osso atravessado na garganta, que não me deixa falar?

A história da tempestade, antes do embarque para as ilhas Baleares, teve um prognóstico nesta linha de ideias: alguém espirrou, alguém emitiu um som estranho com o aparelho fonador. Ora curas de espinhas e ossos entalados na garganta, de tumores na boca, de lepra no nariz, pertencem a um santo que em França é Saint Blaise. Saint Blaise é um ponto de referência alquimista: Blaiser significa ciciar, alusões a cicios, a S. Blaise, a doenças que não deixam falar, são avisos de que estamos em presença dos códigos secretos dos iniciados. Presumo que o santo se chame em português S. Brás ou S. Brásio, o que lembra “brasão” e “brasonar”, ambos os termos homólogos de blaiser, no sentido em que esse código secreto, chamado também língua das aves, língua verde, língua diplomática, diva garrafa, etc., etc., tinha na heráldica um dos seus suportes.

Recapitulando: milagres alheios são atribuídos a S. Frei Gil, bem como a história da conversão de S. Paulo. Falta saber qual a origem do pacto com o Demónio: será original esta informação biográfica?

O pacto com o Diabo pertence à história do mago Teófilo. Desde o século IX corre nas hagiografias a história do cavaleiro que assinou um contrato com o Demónio e depois o recuperou graças à intercessão de Nossa Senhora.

No tempo de Gil, encontramos o tema do mago Teófilo glosado pelos trovadores, por exemplo nas cantigas de Gonzalo de Berceo e de Afonso X, o Sábio. Podem lê-los no TriploV.  

Porquê esta criação de uma personagem duplamente colectiva? Colectiva porque Gil não é um santo, é uma mistura de vários, e colectiva na acepção de Pinharanda Gomes, ao comentar que a história de Gil é um conto a que todos vamos acrescentando mais um ponto.

Os intelectuais não podiam falar, e além disso não havia liberdade de culto. No curso da História, só por momentos breves tem havido inteira liberdade de expressão. Perguntei ao jornalista Acácio Barradas, que foi chefe de redacção em vários dos mais importantes jornais portugueses, como se procedia antes do 25 de Abril para fintar a censura. Ele respondeu que se escrevia nas entrelinhas, não havia nenhum código específico. Quando os jornalistas queriam referir um facto grave do Estado Novo, sabiam que os censores riscariam o parágrafo. Então remetiam o facto para o período da República. Ao longo da História, vão-se acumulando os dispositivos para iludir censores e para proteger os que não fazem parte da comunidade dominante. Segundo certas fontes, Frei Gil era árabe, ou no mínimo pertencia a uma comunidade moçárabe. O seu tempo é o da expulsão dos árabes da Península. Na literatura egidiana referem-se mais circunstâncias históricas que justificam a presença de códigos secretos no discurso:

• Frei Gil foi contemporâneo da primeira cruzada, que teve por fim eliminar a heresia cátara.

• Foi o primeiro prior dominicano a nomear inquisidores na Península Ibérica.

• A alquimia era tida por arte do Demónio.

• A medicina também não era bem vista pela Igreja, que chegou a proibir os clérigos de fazerem cirurgia e de praticarem a medicina fora dos conventos.

Se Gil foi alquimista ou se perfilhou uma qualquer heresia, pois havia várias, como a dos Fiéis do Amor, a que alguns autores o associam, viveu em risco de ir parar à fogueira.

A fogueira, a censura política e religiosa, as repressões à livre expressão do pensamento criaram estratégias de defesa e de protecção comunitária, entre as quais é preciso contar com as derivas linguísticas, os códigos segundos e terceiros que, dentro de um texto em aparência inocente, fornecem informações que só decifra quem tem a chave. Veremos um desses dispositivos, patente na literatura egidiana, mas antes de lá chegarmos é bom assentar em que o maior milagre de S. Frei Gil é justamente aquilo a que chamo "literatura egidiana".