MARIA ESTELA GUEDES
(CICTSUL, ISTA)
S. Frei Gil, um santo carbonário
 
6. Titivetilarius, ou a escrita do Diabo

Titivetilus é uma personagem da peça de Theophilo Braga, "S. Frei Gil de Santarém". É uma figura compósita, que representa o escolar pobre, mas também o mestre e o criado. É com Titivetilarius que Frei Gil faz contrato escrito, portanto Titivetilarius é o Diabo. A partir da iniciação em Toledo, e lembremos que Gil é iniciado na Carbonária, uma organização subversiva e terrorista, Titivetilus, na redacção abreviada, passa a ser o companheiro de de S. Frei Gil. Mas Titivetilarius, na origem, não é uma pessoa nem um demónio, sim a presença do erro deliberado na escrita. Como podem calcular, nós sacralizamos a palavra escrita, de modo que admitir que alguém altere em cem anos a data de ingresso de S. Frei Gil na Ordem dos Pregadores é o mesmo que admitir que Deus possa ter errado de propósito o que escreveu nas Tábuas da Lei.

Mas note-se: esse erro não está dissimulado, dissimulado está o erro de quatro ou cinco anos. Um desvio de um século em cima de uma data errada em cinco anos já é publicidade, exibicionismo. Perante esse sinal de trânsito, o leitor tem forçosamente de parar, de fazer perguntas, porque o caminho se tornou uma encruzilhada. Olhando para o erro, o leitor insurge-se contra o autor: "Não! Isto não é possível! Estás a gozar comigo!"

Vejamos o que a respeito nos diz Theophilo:

"Na tradição das Escholas das Collegiadas e das Universidades foi creado esse typo, que encarna a Dialectica dissolvente; era a entidade malevola Titivetilarius, que apanhava na discussão e exposição escholares todas as syllabadas, que tornavam erroneas as fórmulas dogmaticas. Desde que a Verdade se não procurava nos phenomenos, mas nas fórmulas verbaes que os significavam, o erro systematico era uma condição para dar margem á livre critica. Victor Leclerc, o erudito que mais profundamente conheceu a vida das Universidades nos seus usos e conflicto de doutrinas, notou essa Entidade malévola creada sob o terror da Sciencia no seu destino emancipador. Titivetilus é pois um Symbolo de origem escholaresca, que, sem o ridículo do diabo de farça, exprime bem o aspecto de insurreição mental que hallucinou a maior parte dos pensadores da primeira Renascença; e para que essa Entidade tome realidade e actue na agitação das Escholas, encarna-se no typo vulgar do Escholar pobre, tão caracteristico pela sua vida errante de Universidade em Universidade, e na turbulencia estudantesca levada ás veses a plenas revoltas. Mephistopheles suscita na segunda Renascença a seducção pela Natureza, particularisada na sensualidade feminina; Titivetilus provoca a insurreição mental, e pelo abuso da Dialectica formalistica arrasta á Negação, que predominou na primeira Renascença".

Titivetilarius é uma pedra de tropeço, um obstáculo à leitura, porque é um escolar estúpido, ignorante, comete muitos erros, é um frade que não distingue frades maiores de frades menores, Gil e Gelásio, para ele, são a mesma pessoa, e aquilo de que ele realmente gosta é de ler e falar ao espelho, para em vez de Frei Gil dizer Lig Ierf, em vez de Roma dizer Amor, e em vez de Theresa dizer Heresta - Heresta vê-se logo que é um anagrama de Heresia.

O leitor que lê ao espelho tem um nome: chama-se Não! É alguém que, ao ver um dominicano considerar-se frade menor, e ao situar Frei Gil, contemporâneo da fundação da Ordem na Península e quase da nacionalidade, no século XIV, arma um pé de guerra com o clero todo e grita: "Não! Isto não é possível! Ninguém comete erros destes, portanto isto não é um erro, é um aviso!".

A escrita do Diabo, ou de Titivetilarius, é uma língua muito rica, na qual saliento um dispositivo retórico para rematar esta intervenção: o anagrama. O anagrama inverte a ordem normal das letras na palavra, por isso é subversivo, equivale a uma insurreição verbal. Se for perfeito, como Amor/Roma, corresponde a uma escrita especular. Leonardo da Vinci usou-a nos textos em que descreve aparelhos por ele inventados, tendo ficado célebre assim a sua escrita ad latere .

O anagrama aparece na literatura egidiana, e algo muito mais espalhafatoso ainda: um convite para ler ao espelho. Quem convida é uma entidade referida como Frei Baltasar de São João, dominicano que em 1537 assinou uma "Vida de S. Frei Gil de Santarém". A pessoa que aceitou o convite de Frei Baltasar de S. João para ler ao espelho um segmento de escrita do diabo foi Aires do Nascimento, por isso vai ele explicar o que aconteceu:

"Um pouco de atenção leva-nos a reconhecer que o recto do 1º fólio colado à encadernação apresenta traços de escrita. O estratagema de um espelho permite-nos ler, na imagem, nada menos que o início do texto com leves incorrecções e alterações: In nomine Domini/ Dixit Dominus Domino meo /Incipit Vita Beati Gelasii seu Gilij natione Lusitani professione autem ordinis fratrum minorunque ."

Titivetilarius obriga-me a dizer "Não!" - Não, Gelásio não é Gil, e um autor da Ordem dos Pregadores nunca diria que os dominicanos são frades menores! Mas se vós, dominicanos, tendes de vós próprios esta imagem, então deixo-vos com a imagem e com o espelho.