6. Interditos e tabus sexuais
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As principais fontes de informação sobre os interditos e os tabus sexuais são as três secções legais do Pentateuco: os chamados Código da Aliança (Ex 20,22-23,33), o Código Deuteronómico (Dt 12,1-26,15) e a Lei de Santidade (Lv 17-26). Apesar dos nomes que os exegetas modernos lhes deram, esses textos não são códigos legais no sentido próprio da palavra. São compilações de leis de teor variado que foram feitas em momentos e em ambientes intelectuais diferentes. Tratava-se porventura de exercícios académicos. Desconhece-se a propagação e a audiência que teve cada uma dessas compilações. Embora nos baseemos sobretudo nas compilações legais, respigaremos também as informações sobre a matéria fornecidas pelos demais escritos do AT.
Sendo a instituição matrimonial o lugar regulamentar do exercício da sexualidade, a grande maioria das proibições sexuais estão relacionadas com ela ou, de uma maneira geral, com a família. Estas proibições destinam-se antes de mais a defender os direitos da família, as suas fronteiras e a sua integridade. Para esse efeito excluem tanto as relações sexuais que violam os direitos das outras famílias como as que não têm em conta os laços que ligam os membros da própria família. Entram na primeira categoria o adultério, sob as suas diferentes formas, e a violação de uma virgem. A segunda abarca as numerosas formas do incesto.
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6. 1. Violação dos direitos de outra família
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Para o AT, como para as outras antigas civilizações próximo-orientais, o adultério consiste no coito consensual de uma mulher casada com um homem que não é o seu marido. O adultério é uma ofensa feita ao marido, pois viola os seus direitos conjugais. Os autores do crime são ao mesmo tempo a esposa e o seu cúmplice. Se o marido consente na relação sexual da mulher com o outro homem, os seus direitos conjugais não são violados. Essa relação pode ser, no entanto, considerada como um pecado, passível do castigo divino. É a outra dimensão do adultério no AT de que os relatos patriarcais são porventura as melhores ilustrações (121).
A proibição do adultério figura no Código Deuteronómico (Dt 22,22) e na Lei de Santidade (Lv 18,20; 20,10). Além disso, ela é o objecto de um dos mandamentos do Decálogo (Ex 20,14; Dt 5,18) (122). Segundo Lv 18,20, o adultério torna impuros no sentido moral do termo o homem e a mulher. Daí que tanto Dt 22, 22 como Lv 20,10 ordenem a pena de morte para os dois culpados, sem precisar quem é o executor da sentença. As informações contidas noutros textos do AT e nos documentos dos povos vizinhos, sobretudo de origem mesopotâmica, mostram que a realidade foi mais complexa, embora não permitam escrever uma história rigorosa das práticas na matéria (123). De uma maneira geral, pode dizer-se que o marido enganado, a parte ofendida, era também a acusação, o juíz e o executor da sentença. Sobre ele recaía o ónus da prova. Em caso de dúvida, a mulher suspeita de adultério podia ser submetida a um rito de ordálio ou juízo de Deus (Nm 5,11-31). Uma vez provado o delito, cabia também ao marido o direito de decidir a pena que deveria ser aplicada a cada um dos culpados, tendo em conta os limites impostos pela lei. Podia exigir a pena de morte, mas podia também contentar-se com uma pena menos severa.
No caso da esposa, podia limitar-se a divorciar-se dela, a humilhá-la e a expulsá-la de casa. Embora se refiram à relação entre Iavé e o seu povo, apresentada em termos matrimoniais, vários textos proféticos parecem supor esta prática (Os 2,4-5; Jr 3,8; Ez 16,37-41).
No caso do cúmplice da esposa, o marido podia contentar-se com uma compensação pecuniária. É o que documenta Pr 6,32-35.
«32. O homem que comete adultério é insensato.
Causa a sua ruína quem assim procede.
33. Colherá golpes e ignomínia
e nada apagará a sua desonra,
34. porque o ciúme torna o marido furioso
e não terá piedade no dia da vingança,
35. não aceitará nenhuma compensação
nem receberá presentes, por maiores que sejam.»
O texto supõe que o castigo do adúltero estava nas mãos do marido ofendido. Este podia vingar-se, matando-o, mas também podia contentar-se com uma indemnização de ordem material.
O pagamento do dote pelo pai do noivo criava uma situação legal que diferia pouco do casamento. Embora a noiva continuasse habitualmente a viver em casa do pai, a partir de então, em caso de infidelidade ao noivo, aplicava-se-lhe mutatis mutandis a lei do adultério. O Deuteronómio prevê duas eventualidades, conforme a infidelidade tivesse sido cometida e conhecida durante o noivado (Dt 22,23-24) ou fosse objecto de acusação por parte do marido após a coabitação (Dt 22,13-21). O primeiro caso não difere praticamente do adultério no sentido próprio da palavra. No segundo caso, prevê-se um procedimento mais complexo, que começava com a prova da inocência ou da culpabilidade da mulher. Se fosse considerada inocente, o marido era condenado a pagar uma indemnização ao pai da mulher. Além disso, perdia o direito de a repudiar. Se a mulher fosse considerada culpada, devia ser condenada à morte por apedrejamento.
O Deuteronómio prevê também a violação de uma noiva (Dt 22,25-27). Nesse caso, só o violador será punido, não devendo ser inquietada a vítima. Repare-se que a violação é comparada ao assassínio.
O Código da Aliança (Ex 22,15-16) e o Código Deuteronómico (Dt 22,28-29) prevêem também a violação de uma rapariga que ainda não está prometida em casamento. Os dois textos ordenam que o violador pague o dote ao pai da jovem, mas enquanto Ex 22,15-16 supõe que o pai pode recusá-la em casamento ao violador, Dt 22, 28-29 não lhe reconhece esse direito. Além disso, o Deuteronómio exclui que o marido se divorcie de uma mulher desposada nessas circunstâncias. Provavelmente mais recente, o Deuteronómio representa uma redução dos poderes do pai sobre as filhas não casadas.
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6. 2. Incesto, tentativa de confusão dos laços familiares
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O Levítico (18 e 20) e o Deuteronómio (23,1 e 27,20.22-23) dão três listas de familiares, por consanguinidade ou por aliança, com os quais um homem não podia ter relações sexuais e, por maioria de razão, não podia casar-se. Repare-se que o homem em questão podia ser o chefe de uma numerosa família polígama. As três listas não são idênticas. Nenhuma delas é exaustiva.
Entre os consanguíneos com os quais um homem não pode casar-se ou ter relações sexuais, contam-se: a mãe, a madrasta ou as madrastas, as esposas dos tios paternos, as tias paternas e maternas (geração dos pais); as irmãs ou meias-irmãs (124) (própria geração); as netas (segunda geração seguinte). As esposas dos tios maternos não não mencionadas. Mais surpreendente ainda é o silêncio sobre as filhas. De facto, elas estão abrangidas pela interdição de ter relações sexuais ou casar com uma mulher e sua filha (Lv 18,17) (125). Entre os parentes por aliança, contam-se: a sogra ou as sogras, as cunhadas, as enteadas e suas filhas.
O Pentateuco refere, sem qualquer polémica, vários casais que seriam incestuosos de acordo com os interditos do Levítico e do Deuteronómio. É o caso de Abraão e Sara, sua meia-irmã (Gn 20,12) (126); de Jacob e Raquel, irmã da sua primeira mulher Lia (Gn 29,20-29); de Amrã, o pai de Moisés, casado com uma tia (Ex 6,20). O AT relata também vários episódios de carácter incestuoso. Assinalo dois em que a iniciativa foi tomada por mulheres. É o caso das duas filhas de Lot que se fazem engravidar pelo pai sem seu conhecimento (Gn 19,30-38). O texto não condena o comportamento das moças, que o desejo de assegurar uma descendência torna perfeitamente legítimo. Antes pelo contrário, o texto parece admirar a sua habilidade. Se a história visa alguém devem ser não as moças, mas os Moabitas e os Amonitas. Embora lhes reconheça o parentesco com os Hebreus, declara que eles nasceram em circunstâncias pouco honrosas. A admiração pela habilidade da “incestuosa” é clara no caso de Tamar (Gn 38,12-26). Por meio de uma artimanha, obteve do sogro a descendência que os seus cunhados lhe deviam, mas lhe recusavam (127). Por fim, recordo o caso de Absalão que tem relações sexuais com as concubinas de David, seu pai, em público (2 S 16,20-22). É uma tomada de posse simbólica do trono de Jerusalém. Com efeito, o novo rei herdava o harém do predecessor (128).
É difícil saber se o Levítico documenta uma mudança na prática jurídica ou se expressa o desejo que os seus autores tinham dessa mudança. Seja como for, as leis bíblicas sobre o incesto propunham-se fixar cada um dos membros da família no seu lugar ou no seu papel, impedindo-o de acumular funções familiares tidas por incompatíveis e, por conseguinte, contrárias à ordem do mundo. Por outras palavras, as ditas leis destinavam-se a salvaguardar a ordem no seio da família e, em definitivo, a manter o próprio cosmos.
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6. 3. Abolição das fronteiras entre as diferentes categorias de seres
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A ordem cósmica exige também a separação entre grupos ou espécies diferentes. Isto vale não só para as relações entre os seres do nosso mundo, mas também para as relações entre estes e os seres divinos. É a esta luz que deve ler-se a referência ao casamento entre os filhos de Deus e as filhas dos homens em Gn 6,1-4. Apesar da sua grande obscuridade, não há dúvida de que o texto, pelo menos no seu contexto actual, se destina a mostrar o crescendo na corrupção da humanidade (vv. 5-7) que desembocou no dilúvio, o retorno ao caos.
Alguns interditos sexuais destinam-se assim a fazer respeitar as fronteiras entre diferentes categorias de seres e, desse modo, a defender a ordem do mundo tal como Deus o criou. É o caso da proibição da bestialidade, que figura nas três compilações legais (129). É possível que Gn 2,18-20 também a condene de maneira velada. Lv 18,23 e 20,15-16 precisam que a proibição se aplica tanto ao homem como à mulher. Lv 18,23 qualifica a bestialidade de mistura ilegítima ou confusão (tèbèl), termo que Lv 20,12 usa também para qualificar as relações sexuais entre um homem e a sua nora. A bestialidade torna impuros o homem e a mulher no sentido moral da palavra. Lv 20,15-16 não só estipula a pena de morte para o homem ou a mulher, mas ordena também o abate do animal (130). Repare-se que são assimiláveis à bestialidade as proibições de jungir dois animais de espécies diferentes, de semear duas espécies de sementes no mesmo campo e de usar uma peça de roupa feita com dois tecidos diferentes (131).
A homossexualidade entra também nesta categoria de interditos sexuais. Como vimos, o AT só tem em conta a homossexualidade masculina. Gn 19,4-8, que está na origem do campo lexical sodomia/sodomita, refere-se a um estupro homossexual colectivo (132). Talvez seja também o caso de Jz 19,22-25. No entanto, não é esse o objecto principal da condenação em nenhum dos dois casos, mas sim a violação da lei sagrada da hospitalidade.
A homossexualidade só é formalmente proibida pela Lei de Santidade (Lv 18,22 e 20,13), que a considera uma abominação (toeba). Lv 20,13 estipula a pena capital para ambos os culpados (133). Lv 18,22 e 20,13 designam a homossexualidade com a expressão “deitar-se com um ‘macho’ como se deita com uma mulher”. É provavelmente no facto de se deitar com um homem como se fosse uma mulher que consiste a abominação, pois isso implica a violação da ordem do mundo, segundo a qual existem homens e mulheres. Pela mesma razão, Dt 22,5 proibe o travesti, qualificado de abominação como a homossexualidade (134).
Lv 18, 2-5. 24-30 e 20, 22-24 declaram estrangeiras as práticas mencionadas em Lv 18-20, a maioria das quais são de natureza sexual, em particular incestuosas. São as práticas tanto do Egipto, onde Israel habitou, como de Canaã, para onde Iavé o conduz. Foi por causa dessas práticas que o país de Canaã se tornou impuro e vomitou os seus habitantes. Se fizer como os Cananeus, Israel terá o mesmo destino. Segundo estes textos, a permanência de Israel na sua terra depende em particular da observância dos interditos e tabus sexuais. A ideia do país impuro lê-se também em Esd 9,11-12, texto que talvez forneça uma indicação sobre a data em que Lv 18,2-5.24-30 e 20,22-24 foram escritos.
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7. Conclusões
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Os escritos sapienciais, os mitos das origens e as várias secções legislativas do Pentateuco são as partes do AT que mais atenção prestam à sexualidade. Esses textos, como o AT em geral, apresentam a sexualidade como uma realidade própria ao mundo criado, sem verdadeiro arquétipo no mundo divino. É verdade que alguns escritos proféticos falam de Iavé em termos com conotação sexual, mas essas metáforas não se referem, nem podem referir-se, a uma relação intra-divina, que a concepção vetero-testamentária do monoteísmo exclui em absoluto. Aplicadas a Iavé, as metáforas com conotação sexual só podem referir-se às suas relações com os seres humanos.
Para o AT, a sexualidade é não só uma realidade profana, mas incompatível com o sagrado, do qual se deve manter rigorosamente afastada. Com efeito, toda e qualquer manifestação da sexualidade, masculina ou feminina, acarreta a impureza ritual, isto é, torna a pessoa inapta para se acercar do sagrado e, em particular, para participar no culto ou noutras actividades sacrais.
No entanto, isso não significa que o AT condene a sexualidade ou a considere má. Muito pelo contrário. Ambos os mitos das origens com que começa o AT, cada um à sua maneira, põem no centro da criação o casal humano, constituído com base na diferenciação e na complementaridade sexuais. A este respeito, o relato sacerdotal (Gn 1,1-2,4a) é o mais explícito, pois sublinha a grande bondade da criação, cujo rei é o casal humano, formado por um macho e uma fêmea. O mesmo relato sacerdotal insiste também na bênção divina, a qual consiste na fecundidade dos animais e dos seres humanos. Ora a fecundidade depende do exercício da sexualidade, sem o qual, por conseguinte, a bênção divina não pode tornar-se uma realidade. Os mitos das origens não são os únicos textos do AT que celebram a sexualidade. Muitos outros, sobretudo entre os escritos sapienciais, fazem o mesmo.
Apesar desta apreciação radicalmente positiva, existe no AT uma ambivalência em relação à sexualidade e ao seu exercício. A sexualidade é apresentada como uma força extraordinária que pode produzir efeitos diametralmente opostos. O seu exercício tanto pode ligar e cimentar a sociedade, assegurando assim a permanência do mundo organizado, como pode destruir a sociedade e abolir a ordem do mundo, regressando este ao caos. A natureza dos efeitos da sexualidade humana depende das circunstâncias do seu exercício. Domesticada e exercida no interior de fronteiras rigorosamente delimitadas, a sexualidade é uma força criadora. Deixada à rédea solta, ela é, pelo contrário, uma força caótica e “des-criadora”. Na perspectiva do AT, a sexualidade não é só uma questão pessoal e social, mas tem também um alcance cósmico. Dados o seu alcance e as suas potencialidades, a sexualidade tem que ser gerida, circunscrita, dominada, orientada e canalizada com o máximo rigor. Tal é a função das numerosas leis sobre a matéria contidas no AT.
Colocando o casal, constituído por um homem e uma mulher, no centro da criação, os mitos das origens enunciam e legitimam com a autoridade divina o único programa global de gestão da sexualidade documentado no AT. Segundo esse programa, o exercício da sexualidade tem como actores um homem e uma mulher agindo em conjunção, como quadro a instituição matrimonial os relatos apontam para um casal monogâmico, mas não excluem a família poligâmica e como finalidade a propagação da espécie. Toda a legislação bíblica na matéria se destina a regulamentar o exercício da sexualidade em função desses parâmetros. Fá-lo no contexto de uma sociedade patriarcal, na qual as mulheres estão submetidas aos homens em todos os aspectos da vida e, de maneira especial, no domínio sexual.
Por isso, os interditos sexuais estão relacionados, na maioria dos casos, com a instituição matrimonial. Destinam-se a defender os direitos da família, as suas fronteiras e o papel de cada um dos seus membros. Uns excluem tudo o que viola os direitos das outras famílias, isto é, o adultério e as relações sexuais extra-matrimoniais com as moças das ditas famílias. Os outros excluem as relações sexuais ou os casamentos que não têm em conta os laços já existentes entre os membros da própria famíla, isto é, todas as formas de incesto.
Por fim, os interditos vetero-testamentários relativos à homosexualidade masculina e à bestialidade, actividades sexuais que não têm por actores um homem e uma mulher, destinam-se a fazer respeitar as fronteiras entre diferentes categorias de seres e, desse modo, a manter a ordem do mundo.
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Francolino J. GONÇALVES. École Biblique et Archéologique Française, Jerusalém
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