Até agora vimos o que o AT diz sobre Iavé e a sexualidade. A imagem que ele dá de Iavé corresponderá à realidade histórica? É o que nos propomos agora verificar.
Os escritos deuteronómico-deuteronomistas e aparentados estão cheios de condenações dos cultos que o povo prestaria a numerosas divindades, deuses e deusas, concorrentes de Iavé. A identidade dessas divindades nem sempre é certa. A natureza dos seus cultos é, na maioria dos casos, muito difícil para não dizer impossível de determinar, dada a linguagem elíptica e estereotipada dos textos.
Por outro lado, além de serem expressões da propaganda do iaveísmo deuteronomista certamente tendenciosas a maioria das condenações dos cultos dos deuses concorrentes de Iavé foram escritas muito tempo nalguns casos vários séculos depois dos acontecimentos a que se referem. Daí que seja uma tarefa muito delicada aferir o seu valor histórico e, de uma maneira geral, escrever uma história da religião dos reinos de Israel e de Judá. Na maioria dos casos, o historiador está condenado a formular hipóteses. Reconheço que é esse o estatuto epistemológico de uma boa parte do que vou expor, mas parece-me ser o que melhor tem em conta todos os dados disponíveis.
Limito-me a considerar as divindades femininas, teoricamente, as únicas esposas ou simples parceiras sexuais de Iavé possíveis. Começo naturalmente por Acherá. É a deusa que ocupa o lugar mais proeminente no AT. Além disso, é a única que também é conhecida por documentos hebraicos extra-bíblicos antigos. Bastante anteriores, pelo menos, à grande maioria dos textos bíblicos pertinentes, os textos extra-bíblicos em questão estão isentos de suspeita do ponto de vista histórico.
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A palavra acherá está documentada quarenta vezes no texto hebraico do AT. É usada no singular e no plural. Excepto em três casos, onde tem a terminação feminina acherot (69), o plural tem, curiosamente, a terminação masculina acherim (70). Na maioria dos casos, os termos acherá/acherim/acherot designam um objecto cultual. Deve tratar-se de um objecto de madeira: um pilar, talvez representando uma árvore, ou uma verdadeira árvore viva. A acherá anda geralmente associada ao altar, ao lado do qual se erguia, segundo Dt 16,21 e Jz 6,25-30. Noutra série de textos, menos numerosos, Acherá é uma deusa. Tem os seus profetas (72), as suas alfaias litúrgicas e o seu clero, constituído por mulheres (2 R 23,4-7). Embora os textos não o afirmem explicitamente, é legítimo supor que o objecto chamado acherá era um dos elementos do culto da deusa homónima: devia ser precisamente a sua representação. Era natural que se desse o nome da deusa ao objecto que a representava. 2 R 21,7 refere uma representação (pesel) de Acherá. É provavelmente também o caso de 1 R 15,13 e 2 Cr 15,16. Segundo estes textos, a rainha-mãe Maaka fez uma mipeleset la’achera. O hapax mipeleset conota as ideias de horror ou de terror. Por outro lado, os termos “cortar” e “queimar”, empregados para expressar a destruição da mipelèsèt, supõem que esta era feita de madeira. Devia tratar-se de uma representação de Acherá ou de outro objecto de madeira consagrado ao seu culto.
Acherá anda frequentemente associada a Baal (73), formando par com ele (74). Por outro lado, 2 R 21,2-7 e 23,4-7 dizem explicitamente que o culto de Baal e de Acherá, assim como o culto de todo o exército celeste, tinha por quadro o templo de Iavé em Jerusalém. É provavelmente também o caso em 1 R 15,13 e 2 Cr 15,16. A relação íntima entre Acherá e Iavé está confirmada, pelo menos, por três documentos hebraicos extra-bíblicos. Dois deles estavam inscritos em duas grandes jarras usadas para guardar mantimentos. Os fragmentos das ditas jarras foram achados nas ruínas de um edifício em Kuntillat Ajrud, o nome de uma colina situada no norte da península do Sinai (75). As ruínas foram escavadas entre 1975 e 1977 por Z. Meshel, que propôs datar o edifício correspondente entre fins do séc. IX e começos do séc. VIII a. C (76). As duas inscrições pertinentes para o nosso propósito não são as únicas inscrições achadas lá nem sequer as únicas que mencionam Achéra (77) contêm cada uma a sua bênção (78). Uma delas reza assim:
“X diz: ‘diz a Iahal[lel’el] e a Io‘asah e [a Z]: Eu te bendigo/abençoo por (por parte de, diante de) Iavé de Samaria e pela sua A/acherá’” (79).
Na outra lê-se: “Amaryahu diz: ‘diz ao meu senhor: como estás? Eu te bendigo/abençoo por (por parte de, diante de) Iavé de Teman e pela sua A/acherá. Que ele (isto é, Iavé) te bendiga, te guarde e esteja com o meu senhor...’” (80).
Repare-se que cada uma das duas inscrições invoca Iavé sob o seu título: Uma chama-lhe Iavé de Samaria, a capital do reino de Israel; a outra chama-lhe Iavé de Teman, palavra que significa “sul”, mas que é também o nome de uma região de Edom, situada a sul da Palestina (Hab 3,3). Cada uma das inscrições considera Iavé deus de seu país.
A terceira inscrição que associa intimamente Iavé e a/Acherá provém de uma gruta funerária de Khirbet el-Qom, um lugar situado a uns 12 Km a oeste de Hebron, no território do reino de Judá. A inscrição, que é geralmente datada do séc. VIII a. C., tornou-se pública em 1967, mas foi só em 1977 que A. Lemaire reconheceu nela o nome A/acherá (81):
1. Uryahu o rico escreveu isto.
2. Abençoado seja Uryahu por Iavé
3. pois dos seus inimigos pela sua (isto é, de Iavé) A/acherá o salvou.
4. por Uryahu
5. pela sua A/acherá
6. e pela sua A/acherá (82).
Ninguém duvida de que estas três inscrições e a Bíblia se referem à mesma A/acherá. No entanto, o debate sobre o sentido exacto da palavra A/acherá nas inscrições tem feito correr rios de tinta. Uns pensam que elas se referem à própria deusa Acherá (83). Fazendo notar que o uso do adjectivo possessivo “sua” (84) com um nome próprio, concretamente, com o nome de uma divindade, não seria conforme às regras da gramática hebraica, os outros vêm na acherá não a própria deusa, mas um objecto que a simbolizava ou representava (85). Sem entrar em pormenores, penso que, bem feitas as contas, o argumento gramatical não tem a força que uma parte dos estudiosos lhe atribui. Daí que me incline para ver nas inscrições de Kuntillat Ajrud e de Khirbet el-Qom uma referência à deusa Acherá em pessoa.
Seja como for, o debate tem por objecto uma subtileza gramatical cuja compreensão não é susceptível de modificar essencialmente o sentido do texto, o seu alcance e as suas implicações para a história da religião de Israel e de Judá. Com efeito, falar de Acherá ou falar da sua representação vai dar ao mesmo, pois, aos olhos dos seus fiéis, a representação da deusa implicava necessariamente a sua presença efectiva. Era a representação da deusa que a tornava presente, visível, tocável, accessível e activa.
Os textos supõem uma relação de posse entre Iavé e Acherá. O essencial para o nosso propósito é saber em que se fundava essa relação. Não havendo qualquer indicação em contrário, deve supor-se que um deus e uma deusa que formam um par têm entre si uma relação matrimonial. Isso explicaria a razão e o sentido da pertença da Acherá a Iavé: Acherá pertence a Iavé como a esposa de então pertencia ao respectivo marido.
As inscrições de Kuntillat Ajrud supõem que havia em Israel, em fins do séc. IX ou começos do séc. VIII a. C. quem acreditasse que Iavé, o deus nacional, e Acherá formavam um casal divino. Ignorando qual era a natureza do edifício, é difícil saber se essa crença fazia parte do iaveísmo oficial de Israel o que poderia concluir-se caso o edifício fosse um templo ou outra instituição real ou era uma expressão popular da religião. No caso de Khirbet el-Qom, trata-se certamente de uma expressão popular do iaveísmo. No entanto, tudo parece indicar que ela se conformava com o iaveísmo oficial do reino de Judá tal como era praticado no templo de Jerusalém no séc. VIII a. C.
Não é a primeira menção da vida matrimonial de Acherá que encontramos, mas a deusa tinha então outro marido. Com efeito, vimos que na mitologia ugarítica, uns quatro ou cinco séculos antes, Acherá era a esposa não de Iavé, divindade que não figura nos textos ugaríticos conhecidos, mas de El, o chefe do panteão local. Há provavelmente uma relação entre os dois maridos de Acherá. Como o seu próprio nome indica, na origem, Israel deve ter tido a El como deus próprio ou supremo. Israel é com efeito um nome teofórico, isto é, constituído por um verbo e um nome divino. Segundo a etimologia tradicional, representada por Gn 32, 29 e Os 12,4-5, o nome referir-se-ia ao episódio da luta de Jacob contra o anjo e significaria: “Foi forte contra deus”, “lutou com deus”. El seria o nome comum que designa a divindade nas línguas semíticas. Hoje poucos aceitam esta explicação. A maioria vê em El não o nome comum, mas o nome próprio do chefe do panteão cananeu. Além disso vê em El o sujeito da oração gramatical. Segundo o sentido que cada qual reconhece ao verbo sârâh, traduz: “El é forte/luta” ou que “Que El seja forte/lute”; “El reina” ou “Que El reine”. É legítimo concluir que Israel foi assim chamado por ter El como deus ou como deus supremo. Chegou, no entanto, um tempo em que Iavé se tornou o deus de Israel, tomando o lugar de El. É impossível datar e situar historicamente tanto as origens de Israel sob o patrocínio de El como a substituição desta divindade por Iavé. Seja como for, tendo destronado El na religião de Israel, Iavé tornou-se naturalmente o herdeiro não só dos seus atributos divinos, mas também da sua esposa, Acherá. O matrimónio de Iavé e Acherá deve ter durado séculos.
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A parte histórica do estudo mostrou que, contrariamente ao que o AT tenta inculcar, Israel e Judá não tiveram sempre o mesmo deus nem a mesma concepção do seu deus. Como o nome indica, Israel deve ter tido primeiro El como deus, ou melhor dito, como chefe do panteão divino. No entanto, Iavé acabou por tornar-se o deus de Israel, suplantando El (93). Iavé foi de facto o deus nacional de Israel e de Judá. A concepção que estes tinham dele não diferia essencialmente da concepção que os demais povos semitas, seus contemporâneos, tinham dos respectivos deuses nacionais. Como eles, Israel e Judá concebiam Iavé não só como o seu verdadeiro rei, mas também como o rei do universo. A esse título, Iavé tinha forçosamente uma corte formada por seres divinos. Por outras palavras, Iavé era o chefe do panteão nacional de Israel e de Judá.
Devia ser dificilmente imaginável que o rei divino Iavé fosse celibatário, não tivesse a sua própria família. De facto, há indícios não só extra-bíblicos, as também bíblicos, apesar da censura, de que Iavé teve uma consorte. Segundo os textos bíblicos e a epigrafia palestinense (inscrições de Kuntillat Ajrud e Khirbet al-Qom), a esposa de Iavé era Acherá, outrora a esposa de El, a quem Iavé sucedeu no papel do deus de Israel. Por seu lado, os documentos aramaicos de Elefantina (séc. V a. C.) atribuem o papel de esposa de Iavé à deusa Anat. Não é impossível que tenham sido atribuídas a Iavé esposas diferentes, segundo os lugares ou os tempos.
Seja como for, é neste contexto que se explica a apresentação bíblica das relações entre Iavé e o seu povo em termos matrimoniais. Segundo esta concepção, a esposa de Iavé não é uma deusa, mas o seu povo ou o país que ele ocupa.
Em princípio, a deusa consorte de Iavé não era sua concorrente (94). Era antes a sua associada e o seu complemento. Esse facto explica porventura que a polémica contra Acherá tenha começado relativamente tarde. Apesar de porem o povo no lugar dela como esposa de Iavé, Oseias e Jeremias, contrariamente à opinião corrente, não me parecem polemizar contra Acherá e o seu culto (95).
O verdadeiro concorrente de Iavé era Baal. Por isso, a polémica contra ele começou mais cedo. Está abundantemente documentada em Oseias (segunda metade do séc. VIII a. C.) (96) e Jeremias (fins do séc. VII e começos do séc. VI a. C.) (97).
A polémica contra Acherá é própria aos escritores deuteronomistas ou aparentados. Estes associam com frequência Acherá não a Iavé, mas a Baal. Apresentam-na não como a esposa de Iavé, mas como a esposa de Baal, o rival de Iavé por execelência, para Oseias, Jeremias e os deuteronomistas. A associação de Achéra a Baal é provavelmente uma invenção dos deuteronomistas destinada a desacreditar a deusa e o seu culto (98).
A polémica contra Acherá faz parte da luta pelo monoteísmo iaveísta. A afirmação do monoteísmo iaveísta absoluto excluia a existência de qualquer outra divindade. Por conseguinte, Acherá é visada não por ser uma divindade feminina, mas por ser uma divindade que não Iavé. Por outras palavras, o desaparecimento da deusa no mundo bíblico é uma consequência do monoteísmo. As primeiras afirmações do monoteísmo e a consequente exclusão da deusa são relativamente recentes. Datam do fim da época babilónica ou dos começos da época persa. As suas principais expressões encontram-se em Is 40-55, em Dt 4,32-40; 2 R 19,15-19 (= Is 37,16-20). Esta crença foi “retrojectada” nos textos mais antigos, acabando por modelar todas as apresentações de Iavé anteriores. Foi ela que transformou Iavé num ser não só celibatário, mas meta-sexual.
A exclusão da deusa na teologia e no culto judaicos deixou um imenso vazio. Numa espécie de mecanismo de compensação, a própria religião bíblica transferiu para Iavé alguns dos atributos femininos da Acherá, concretamente atributos ligados à fecundidade (99). De facto, o vazio deixado pela deusa não foi preenchido de maneira inteiramente satisfatória nem pela religião bíblica nem por nenhuma das suas herdeiras (o cristianismo, o judaísmo e o islamismo).
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