Ciclo
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CADERNOS DO ISTA, 15 |
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3. Fantasmática e alucinação |
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Na passagem do século XIX para o século XX, a imagem mostra, assim, pertencer a uma experiência bem mais radical do que a da visibilidade e representação das coisas e do mundo. Aliás, o fascínio pelas fantasmagorias, pela produção de aparições fantásticas, através de um uso mais ou menos espectacular de diversos dispositivos de projecções, reflexos, sombras, etc... são um dado conhecido da cultura do século XIX. Simultaneamente presentes e ausentes, reais e aparentes, os fantasmas não são da ordem da representação mas sim uma presença que supõe uma espécie de triunfo sobre as leis da morte. Trata-se pois de uma produção simulacral da vida, isto é, da produção de imagens que parecem apresentar a consistência de seres vivos. O fantasma mostra que o simulacro aspira, em última análise, à incarnação ou se quisermos a uma verdadeira consubstancialidade entre o corpo e a imagem. Uma tal aspiração procura realizar-se para além no domínio puramente óptico. Na verdade, a fantasmagoria e o simulacral não se manifestam numa dimensão puramente óptica ou visual da cultura. Eles invadem, por exemplo, a literatura, produzindo um género fantástico, que deixou, na cultura moderna, obras verdadeiramente marcantes, como o Frankenstein, ou o Prometeu Moderno (1818) de Mary Shelley , A Eva Futura (1886), de Villier de L'Isle Adam ou ainda, no século XX, A Invenção de Morel (1940), de Bioy Casarès. Como diz Foucault, o século XIX descobriu também «um “fantástico” de biblioteca» (1), um espaço de imaginação potente, alojado, como diz Foucault, «entre o livro e a lâmpada», ou seja, entre a cultura literária de um imaginário que se abrigava nas palavras e se derramava à sua leitura, e a nova realidade tecnológica da modernidade, nomeadamente a da invenção da electricidade, que provocou todo um conjunto de novos estremecimentos e de novas mitologias (2). Esta literatura fantástica é pródiga na criação de seres artificiais, resultantes de ousados empreendimentos da ciência e da técnica. As suas narrativas têm precisamente, como objecto principal, o momento e o modo em que tais seres são trazidos à vida, com descrições e explicações detalhadas sobre essa passagem da mera matéria inerte ao ser dotado inclusivamente de alma e de consciência, sugerindo, assim, que a era do simulacro será, verdadeiramente, a era do pleno domínio das leis da vida (3). É como se se tratasse de inverter o mito segundo o qual ser fixado em imagem é ser privado da sua alma e, nessa medida, experiênciar uma espécie de morte. Fabricar um simulacro seria, pelo contrário, dotar uma imagem de alma e, com isso, dar-lhe vida. É curioso verificar que tipo de dispositivos e processos estão na origem da animação destes seres artificiais: na maior parte das vezes, controlo de fluidos, leis da química e electricidade. Admitindo que «A invenção de Morel», de Bioy Casares, pertence ainda a esta literatura sobre o simulacro (4), torna-se curioso averiguar, dada a sua contemporaneidade, que tipo de maquinaria põe ela em cena para explicar esta produção artificial da vida. As máquinas de Morel são, como diz Milner «máquinas para eternizar aparências» (5), isto é, antes de mais, máquinas de registo, como máquinas de filmar, que permitem registar a própria vida, fazendo contudo perecer aqueles seres que, precisamente, vão registando. E são também máquinas de reprodução. A ideia de que a vida pode ser registada e reproduzida na sua integralidade parece ser uma ideia mais potente do que a ideia de «fabricação», explorada na maior parte da literatura anterior, (quase sempre descrita como uma composição ou hibridação de elementos mais ou menos avulsos), que quase sempre incorre em acidentes ou imperfeições próximos do monstruoso. É por serem máquinas de registo e de reprodução (6) que as máquinas de Morel podem aspirar, por assim dizer, ao «simulacro absoluto», como diz ainda Milner, pois o seu ponto de partida é a vida, na sua plenitude e complexidade máximas. Que registam e reproduzem essas máquinas? A chave das suas pretensões ao simulacro absoluto reside no facto de elas registarem e reproduzirem todas as dimensões da experiência sensível: «Madalena estava presente para a vista, Madalena estava presente para o ouvido, Madalena estava presente para o gosto, Madalena estava presente para o olfacto, Madalena estava presente para o tocar: eis Madalena» (7). Enunciação prática, pode dizer-se, da famosa fórmula de Berkeley: « esse est percipi » como reconhece aliás Milner que considera precisamente a invenção de Morel como «uma grande ficção berkeleyana» (8). A máquina de Morel realizaria, assim, a possibilidade de uma plena produção simulacral da vida, ao completar um dispositivo da imagem e da visualidade, (como o do cinema, por exemplo, que fornece aqui, inegavelmente, o ponto de partida), com o registo e a reprodução completa do sensível. Uma tal máquina implica a capacidade a reversibilidade total da matéria em conteúdos sensíveis e destes em reconstituições ideais da matéria. Os pressupostos destas operações são de facto os mesmos da filosofia de Berkeley, que une um profundo sensualismo a um assumido idealismo, não reconhecendo a existência das coisas senão como um conjunto de «sensações» e estas como um conjunto de «ideias» ou conteúdos da mente. É talvez esta estranha compatibilização que faz de Berkeley um autor tão referido e mesmo tão citado por quantos aspiram hoje à invenção de uma espécie de máquina de Morel. Para Berkeley, falar em «coisas, sem qualquer relação com o facto de serem percepcionadas, é algo de totalmente ininteligível». Mas, precisamente na medida em que o seu «“ esse ” é “ percepi ” é impossível que tenham qualquer existência fora das mentes ou coisas pensantes (9) que as apreendem» (10). Para ilustrar o sentido destas teses, Berkeley propõe-nos, aliás, a certo ponto do Tratado , uma experiência mental, que configura o mesmo tipo de situação daquele que, face à reprodução sensível da vida, não pode senão acreditar na sua existência: « Suponha-se – o que ninguém pode negar ser possível – uma inteligência que, sem a ajuda de corpos externos, seria afectada na sua mente pelo mesma sequências de sensações ou ideias que cada um de nós, de igual intensidade e segundo a mesma ordem. Pergunto se essa inteligência não teria toda a razão para acreditar na existência de substâncias corpóreas, aquelas que, representadas pelas suas ideias, impressionavam a sua mente, do mesmo modo que como nós acreditamos nelas? » (11). É possível ver, em algumas destas ficções, uma antecipação de dispositivos que começam hoje a ser menos ficcionais e que anunciam, de facto, o carácter crescentemente simulacral da cultura e da tecnologia contemporâneas. Esses dispositivos, que recebem o nome de «simuladores», «ambientes virtuais» ou «realidade virtual», e que supõem a produção de um envolvimento artificial, são sem dúvida desenvolvimentos da fantasmagoria moderna. Como dizia já Stanislaw Lem em 1976 (12) num contexto ainda a meio caminho entre a ficção teórica e a previsão dos desenvolvimentos próximos da cibernética, a tecnologia continuava apostada na criação de poderosíssimas «ilusões» (Lem falava já da produção de «uma realidade artificial perfeitamente semelhante à natural»), isto é, na concretização de uma «Fantasmática» que Lem considera ser o primeiro nível de uma técnica que é propriamente técnica da criação (Schöpfungstechnik)» (13). Esta tecnologia seria uma «arte da retroacção» e da «ligação», na medida em que produziria sistemas totalmente controláveis e separados do mundo exterior, alimentados pela criação de «ligações recíprocas entre a “realidade artificial” e os seus receptores» (14). Tais ligações teriam em vista, uma vez mais, a produção de uma experiência sensível, ou melhor, a sua indução e controlo, e far-se-íam, segundo Lem, através da manipulação neuronal do cérebro, de modo a fornecer-lhe «sequências de impulsos olfactivos, luminosos, gustativos, etc...» (15). A «máquina fantasmática» implica pois, segundo Lem, uma «cerebromática» pois, como diz, « nihil est in intellectu, quod non fuerit prius in sensu (para a fantasmática, in nervo) » (16). Uma tal máquina seria, assim, um «gerador» de experiências e de vivências por um processo que tem muito em comum com o de uma outra tecnologia, a tecnologia química das drogas. E o que elas têm em comum é a alucinação, isto é, a produção artificial de experiências sensíveis sem efectivo conteúdo sensorial. As diversas formas de produção simulacral começam assim a sugerir alguns traços comuns e um programa consistente. Ao abandonarem o seu campo mais tradicional, o do opticalismo, requerem o controlo total da percepção e mostram, ainda, que o seu objectivo não é tanto o da reprodução de uma aparência mas sim o da produção de uma experiência. Neste sentido, o fantasma seria menos a produção fictícia de um falso objecto do que a produção fictícia de uma afecção. Como diz Merleau-Ponty, «a ilusão de ver é menos a presentificação de um objecto ilusório do que o despoletar de uma potência visual sem contra-partida sensorial» (17). Por isso, como ele próprio sublinha, a maior parte das alucinações não são «coisas» mas fenómenos efémeros «picadelas», «sacões», «vagas de frio» ou de calor» «iluminações», e podem aludir a todo o campo da percepção: visual, mas também auditivo, táctil, olfactivo, etc... Diz ainda Merleau-Ponty que «o corpo do alucinado perdeu a sua inserção no sistema das aparências», «permanecendo capaz de evocar pelas suas próprias montagens uma pseudo-presença deste meio» (18). Compreende-se, assim, em que medida a alucinação interessa à fenomenologia, nomeadamente à fenomenologia da percepção de Merleau-Ponty. Por um lado, ela confirma o pressuposto fenomenológico de que a crença na existência do mundo é verdadeiramente pré-objectiva, mesmo sendo perturbador descobrir que este pressuposto emerge com mais força, ainda, na análise de uma patologia da percepção, como é o caso da alucinação. Mas por outro lado, a alucinação mostra que a fenomenologia (mesmo a fenomenologia da percepção de Merleau-Ponty que atribui uma exemplaridade notável ao «tocar») está toda ela construída sobre a ideia fundamental de uma revelação « ek-stática » do mundo, isto é, do seu aparecer. |
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Notas | ||
(1) M. Foucault, «Un "fantastique" de Bibliothèque», in Dits et Écrits (1954-1988), Paris , Gallimard, Vol I, pp. 297-98 (2) Alguns dos seres fantásticos que povoam este tipo de literatura do século XIX são descritos como seres a quem a electricidade contribuiu para dar vida. É o caso, por exemplo, da Eva Futura e também de Frankenstein . (3) Em a Eva Futura , pode ler-se: «Il nous est permis de réaliser, désormais, de puissants fantômes, de mystérieuses présences-mixtes dont les devanciers n'eussent jamais tenté l'idée» (Villiers, 1979: 96) (4) Cf. Max Milner, La fantasmagorie, Essai sur l' optique fantastique , PUF, 1982. (5) Max Milner, «Le thème du simulacre dans “L?invention de Morel” d'Adolfo Bioy Casares » (6) As máquinas de registo e de reprodução da experiência sensível são ainda um aspecto fundamental da tecnologia surgida no século XIX (por exempo, a máquina de filmar e o projecto, o fonógrafo e o gramofone) . A sua importância, como media , para a constituição da cultura moderna foi bem analisada por Friderich Kittler, nomeadamente nos textos reunidos em Friderich Kittler , Literature Media. Information Systems , G+B Arts International, 1997. (7) Casares, L'invention de Morel , R. Lafflont, 1973, p. 115 (8) Milner, Op. Cit., p. 244. (9) Sublinado nosso. (10) George Berkeley, Tratado da Natureza Humana (1710), Coimbra, Atlântida, 1958, § 3. (11) Idem , § 17. !12) Stanislaw Lem, Die Entdeckung der Virtualität , Frankfurt, Surkamp Verlag, 1976. (13) Lem, 1976: 152 (14) Op. Cit . , p. 158 (15) Idem, p. 160. (16) Idem , p. 180 (17) Merleau-Ponty, Phénoménologie de la Perception, Paris, Gallimard, 1945, p. 392. (18) Idem. |
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