Ciclo
A TIRANIA DA IMAGEM

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


DA VIDA DAS IMAGENS (2)
Maria Teresa Cruz

CADERNOS DO ISTA, 15

2. Simulacro e cinematismo
 

Uma tal intimidade foi inaugurada pela fotografia. De facto, foi ela que, pela primeira vez, trouxe verdadeiramente a vida para as imagens, captando-a na sua transitoriedade, na sua banalidade, nos seus detalhes, na sua verdade mais íntima e desprevenida. Mais importante ainda, a fotografia fixa instantes, momentos da existência das coisas, mais do que reproduções da sua aparência. Barthes mostrou-o mais admiravelmente do que ninguém em A Câmara Clara, quando propôs como essência da fotografia o seu «isto foi». O que significa que a intimidade a que fotografia nos introduz com a vida é, estranhamente, a intimidade com os seus espectros. Se é verdade, pois, que a fotografia inaugura uma relação que ficaria melhor descrita como uma relação entre a imagem e a morte, lançando os modernos num mundo decididamente povoado pelos espectros, é também verdade que esses modernos não mais cessarão de procurar reintroduzir a vida nessas imagens ou de tornar vivos esses espectros. As marionetes, as lanternas mágicas, os espectáculos de fantasmagoria e os seus diversos dispositivos, o cinema, as imagens digitais e os interfaces gráficos e as simulações e imersões que estes permitem compõem uma breve história de animação das imagens, significativa a partir, pelo menos, do séc. XIX. E o século XX foi, por sua vez, do ponto de vista da cultura, o século do cinema. Isto é, a era da devolução à imagem de uma cinética, de um sopro de vida, que se exprime em movimento e dinâmica, tempo e duração, como se uma alma tivesse finalmente reincarnada nas imagens do mundo.

Esta breve história representa um momento fulcral numa outra história mais longa, na verdade, fundadora, da cultura: a história da «forma», como garante da estabilidade das coisas e da sua permanência, sem as quais nenhum nome, nenhum signo, nenhuma certeza, em última análise, poderia surgir. O preço deste estatismo da «forma» é o de uma espécie de inacessibilidade da vida, nomeadamente enquanto dinâmica, duração e devir, como se esta fosse, relativamente à cultura, um exterior ou limite radical. Com efeito, a noção de vida parece-nos tão estranha ao discurso da cultura, quanto nos parece familiar, neste âmbito, a noção de «forma». Na verdade, tendemos a esquecer que o pensamento é uma modalidade da vida e não o inverso (1). Nesta longa história da forma, a imagem era também ela um rosto dessa estabilidade das coisas, mesmo se imperfeita ou pouco consistente. Mas, a história da imagem só, parcialmente, pode caber numa mera história das formas, e isto desde sempre (2), embora só agora estejamos verdadeiramente a tomar consciência desse facto.

No século XIX, a fotografia culminou, de certo modo, uma história das imagens lida no interior de uma história das formas, nomeadamente no interior de uma história da arte. Esta culminação cria (por diversos motivos) a ideia de que a fotografia representava mesmo um certo fim da arte. Ao permitir às coisas aparecerem na singularidade de cada instante, a fotografia destinava-as a uma outra estabilidade e permanência que não a da forma. Na fotografia não são já formas que se revelam mas sim rostos petrificados das coisas. É certo que, com a fotografia, a vida paga ainda, embora de outro modo, a nossa vontade de quadro ou de representação, ao ser posta, por outros processos, num frame . É curioso, aliás, que Bergson, que tanto reflectiu sobre essa mobilidade essencial da vida, usasse precisamente o termo «fotografia» como um equivalente de «forma», isto é uma «visão estável» e artificial dessa mobilidade essencial, dizendo: «a forma é apenas uma fotografia de uma transição», isto é, a reprodução de um «estado» (Bergson, EC, 1941/2001:268).

À forma parece faltar pois uma cinética para se aproximar dessa essência da vida. Peter Sloterdijk fala, hoje, por exemplo, da necessidade de uma «antropologia cinética», de um saber à luz do qual se tornaria eviente que «a vida humana é fundada sobre uma mobilidade profunda, totalmente autónoma e incomparável» (3). Ora, o cinema parece ter sido, ao longo do século XX, a emergência de um tal saber ou, pelo menos, como diz Deleuze, «uma nova prática das imagens e dos signos, da qual a filosofia deve fazer tanto a teoria como a prática conceptual» (4). É conhecido este apelo de Deleuze para que «se constituam os conceitos do cinema» ou «os conceitos que o cinema suscita», lançado nas suas duas obras fundamentais sobre a condição moderna da imagem, isto é, a sua condição cinemática. Um tal projecto filosófico é, como diz, Alain Ménil, o de construir «um olhar que abarque simultaneamente o cinema e a vida, em todas as suas dimensões» (5). Daí que Deleuze fale, curiosamente, do " bergsonismo profundo do cinema em geral" (6), mesmo sabendo que Bergson havia visto nesse novo dispositivo do cinematógrafo, um «artifício» ainda inapto para captar, de facto, a vida. Parecendo «fácil e eficaz» na reprodução que pretende fazer da «flexibilidade e variedade da vida» e, assim, do seu «movimento», o cinema limita-se, dizia Bergson, a «extrair de todos os movimentos próprios a todas as figuras um movimento impessoal, abstracto e simples, o movimento em geral, por assim dizer, e colocá-lo no aparelho», projectando na tela um conjunto de «instantâneos» ou como dizia também de «estados» ou «fotografias». Tal como acontecia com o termo «fotografia», Bergson usava o adjectivo «cinematográfico» para explicitar o modo como o nosso pensamento e conhecimento usuais falhavam precisamente um conhecimento da vida e do movimento. «O mecanismo do nosso conhecimento usual, dizia criticamente Bergson, é de natureza cinematográfica» (7) (Bergson, EC, 1941/2001: 271).

Não é tempo de discutir aqui as teses de Deleuze sobre o cinema, nem o modo como elas avançam com e contra Bergson, mas apenas de fazer notar que, em mais do que um caso importante do pensamento contemporâneo, a fotografia e, sobretudo, o cinema, suscitam reflexões fundamentais a respeito da relação entre a imagem e a vida, e não apenas entre a imagem e a realidade ou as imagens e os objectos, como é mais usualmente o caso. Poderíamos invocar ainda Agamben, quando diz, em prolongamento da análise deleuziana, que a condição da imagem moderna, é a dessa «polaridade antinómica» entre a «máscara mortuária» e a « dynamis ». Ora, essa tensão só surge, segundo Agamben, na medida em que ela tem por centro o gesto , isto é, «o movimento que tem em si o seu próprio fim » ou a «exibição do movimento enquanto tal», o que distingue o gesto da acção e da obrigatoriedade de produzir um acontecimento ou um efeito. A gestualidade é, neste sentido, a suspensão do agir na pura medialidade do gesto implicado na acção. Ora, segundo Aganben, o cinema, é precisamente gestualidade e é por isso, aliás, que ele «pertence essencialmente à ordem ética e política e não simplesmente à ordem estética».

O cinemático está pois para além da petrificação ou do movimento, que se encontram nele em tensão. Isto é verdade a respeito do cinema como a respeito da fotografia e ainda de um conjunto de outros dispositivos inventados no final do século XIX, que têm de facto em comum esta tensão. O controlo da passagem entre inerte e dinâmico, animado e inanimado parece ser, na verdade, uma quase obsessão da segunda metade do século XIX, que exprime assim uma curiosidade específica pelos mistérios da vida. Tratando-se também de um momento-chave de afirmação da técnica moderna, é possível dizer que esta curiosidade pelas leis da vida, visa inequivocamente os segredos da sua «fabricação». A técnica começa a sonhar aqui com uma produção artificial da vida, exibindo já, nitidamente, o seu desejo último: o de ser, propriamente, «técnica de criação» («Schöpfungstechnik » (8)).

 
Notas

(1) Este pensamento deve-se a Marx como recorda Michel Henri ( Incarnation. Une philosophie de la chair , Paris, Seuill, 2000).

(2) De facto, aquele que é talvez o mais antigo «dispositivo» de produção de imagens, o reflexo, faz aparecer um fantasma e não uma forma, isto é, uma reduplicação perfeita do objecto, na medida em que reproduz também dele os mínimos estremecimentos. Tal é o caso dos espelhos e ainda, por exemplo, da câmara escura, no seu início, quando usada como mero dispositivo óptico, a lanterna mágica e ainda todo um conjunto de dispositivos que precederam o cinema, em que a imagem projectada era propriamente contemporânea do objecto.

(3) Peter Sloterdijk, Essai d'intoxication volontaire. Conversation avec Carlos Oliveira, Calmann-Lévy, 187 p.

(4) G. Deleuze, Cinéma 1: L´image-mouvement, Minuit, Paris, 1983 , p. 85

(5) Alain Ménil, in Critique 47, Set. 1995.

(6) Deleuze, Op. Cit ., p. 87

(7) Cf. Bergson, A Evolução Criadora (1941), Lisboa, ed. 70, 2001, p.271.

(8) O termo é de Stanislaw Lem, em Die Entdeckung der Virtualität , Frankfurt, Surkamp Verlag, 1996.










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