A TIRANIA DA IMAGEM

 

 

 

 

MODELOS
E IMAGENS
DA IGREJA (2)

Luís de França OP

 

 

 


CADERNOS DO ISTA, 15

Modelos da Igreja

A história da eclesiologia, como diria Congar, ou a história teológica da Igreja Católica, como gosta de dizer o contemporâneo Ghislain Lafont, enumera de forma sistemática cinco modelos: o modelo institucional; o modelo da comunhão; o modelo sacramental; o modelo profético e o modelo diaconal.

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1. O Modelo Institucional

Começamos pelo estudo do modelo institucional pois é este que nos está mais próximo no tempo. Com efeito, desde o fim da Idade Média até meados do nosso século, a Igreja católica deu indiscutível prioridade ao modelo institucional. Dizemos prioridade porque, na realidade, nunca, num dado momento da história, a Igreja se esgota numa única forma de se compreender. Contudo, é fácil determinar, sobretudo em certas épocas, o modelo dominante ou pelo menos aquele que as autoridades da Igreja impõem a todo o povo fiel.

O modelo aqui estudado caracteriza-se pela preocupação excessiva, e por vezes distorcida, que se deu à visibilidade da Igreja. Se o importante na Igreja são as suas instituições, tudo deve ser feito para aumentar, engrandecer e prestigiar essas instituições. Rapidamente se cai nos vícios das grandezas, dos triunfalismos, das honrarias.

É evidente que este modelo também trouxe vantagens consideráveis à expansão do Corpo de Cristo. De outro modo, não se explica a sua permanência e domínio durante mais de 400 anos.

Antes de interrogarmos a história com o fim de conhe­cermos a origem deste modelo, avancemos, desde já, uma definição do modelo proposto, ou seja, como é que a Igreja se define a ela mesma segundo o modelo institucional. A Igreja define-se como uma «sociedade perfeita».

A partir desta definição, a Igreja foi descrita com ana­logias tomadas das sociedades civis e não a partir do Novo Testamento. Ao considerar-se como sociedade, a Igreja vai pôr em destaque a estrutura de governo, como elemento formal dessa sociedade. Daí a predominância da noção de hierarquia neste modelo institucional.

Por outro lado, ao dizer-se «sociedade perfeita» a Igreja queria dizer que não tinha nada a aprender da história, e, sob nenhum título, estava subordinada a alguma sociedade, qualquer que ela fosse. Em resumo, a Igreja dizia possuir a verdade sobre tudo o que toca a vida do homem. O dogmatismo é a terceira característica duma Igreja predominantemente institucional.

Na teologia, designa-se institucionalismo o modo de conceber a vida da Igreja, e no qual a primeira referência é a instituição, que passa à frente do espírito de comunidade, da verificação da fraternidade, do esforço para a manifestação do Espírito, etc. . .

Caracteriza-se pela excessiva preocupação com a visibili­dade com o primado da hierarquia sobre quaisquer outros valores eclesiais, e pela asfixia da liberdade através dum esterilizante dogmatismo.

Este modelo eclesial atingiu o seu apogeu doutrinal no Concílio Vaticano I (1869). Eis o que foi possível escrever há cerca de um século:

“A Igreja de Cristo não é uma comunidade de iguais na qual todos os crentes tivessem os mesmos direitos. Mas é uma sociedade de desiguais, não só porque entre os crentes uns são clérigos e outros leigos, mas também porque de maneira especial na Igreja reside o poder que vem de Deus pelo qual a uns é dado santificar, ensinar, governar e a outros não”» .

Como se chegou até aqui, isto é, a esta concepção hierárquica da autoridade, é o que vamos tentar relembrar com uns apontamentos sobre a história da Igreja.

Se o institucionalismo se acentua na Igreja, a partir do fim da Idade Média, a origem histórica do modelo institucional pode talvez datar-se da famosa bula Unam Sanctam, imposta por Bonifácio VIII à cristandade. do séc. XIV (18 de Novembro de 1302). A Inquisição que se desenvolve nos séculos seguintes, é uma prática institucional que permite experimentar, com bastante eficácia, as virtudes deste modelo (ou crês, ou morres). O modelo institucional foi codificado por Torquemada (1468) e pelo cardeal Caietano (1534), que defendiam a monarquia papal contra as posições democráticas e conciliares de João de Paris. Os Papas do Renascimento e a criação da cúria romana em 1542 (Paulo IIl), acentuam a centralização e a imposição de um único modelo. E, tudo isto, contra o pluralismo ainda vigente, em parte, ao longo do séc. XVI.

O Concílio de Trento faz obra de legislação que irá modelar, até aos mais pequenos detalhes, a vida da Igreja universal durante quatro longos séculos. Inácio de Loiola, que difunde a imagem da igreja ordenada como um exército, transporta para a prática militante esse modelo institucional. Deste modo, o projecto da “Cidade de Deus” que agia sobretudo ao nível da utopia é socializado e historicizado pelos “comandos” da Com­panhia de Jesus. Até ao fim do séc. XVI ainda há quem disputa e conteste a imposição dum único modelo para a Igreja. Estamos na época das grandes controvérsias. Mas, em 1572 Sta­pleton, já pode afirmar: em matéria de fé, não é o que se diz que importa, mas quem o diz. Assim se caminha a passos largos para o dogmatismo. O magistério identifica-se com a verdade sem termo médio.

O centro geográfico desta eclesiologia desloca-se primeiro para a Ibéria, depois para a Itália. Em Espanha, com Francisco de Vitória e depois com Francisco Suarez que afirmava que a igreja visível é o corpo político ou moral daqueles que professam a fé em Cristo. João de S. Tomás (1644) estabelece um primeiro tratado sobre a Igreja que passa a funcionar como apologética.

Na Itália, este modelo receberá grandes apoios em S. Roberto Belarmino e em S. Carlos Borromeu. Inicia-se a expansão da Igreja católica, apostólica, romana, que havia de conhecer o seu apogeu no fim do século passado. ­ A Igreja apresenta-se como grupo dinâmico, coeso, con­quistador no exterior, mas fechado sobre si mesmo.

A Igreja é uma sociedade ou organização, em tudo seme­lhante às outras sociedades. Mas Cristo interveio no princípio como fundador, o que dá superioridade a esta sociedade sobre todas as outras. O Espírito intervém como garantia da autoridade exercida no interior deste sistema. A instituição tem qualidade supra-terrestre, como se dizia, por exemplo, num manual de história sagrada, publicado em 1869:

A Igreja, na sua acepção mais geral, é uma sociedade estabelecida por Jesus Cristo, a qual, governada por certas autoridades, e especialmente pela do Sumo Pontífice, sucessor de S. Pedro, tem por objecto dar ao verdadeiro Deus o devido culto, para se conseguir a salvação eterna.

Se a obra de extrema sacralização dum Mário Cappelari (1799), futuro Gregório XVI, não é seguida por todos, mesmo em Roma, não há dúvida que todo o século XIX prepara o apogeu doutrinal que convergiu para a definição de infalibilidade em 1869. É a afirmação máxima do modelo institucional reduzido por excelência à sua função governativa e hierár­quica: uma instituição total, que existe por si mesma, e que não tem outra finalidade que não seja engrandecer-se a si mesma.

Se tantas forças, no interior da Igreja, se reuniram e se puseram ao serviço deste modelo institucional, é porque ele deu boas provas na evangelização que a Igreja se propunha. Convém, então, salientar alguns dos aspectos positivos deste modelo eclesiológico. A doutrina codificada, com muita cla­reza, pelo Concílio de Trento, vai ser o instrumento principal de difusão duma Igreja institucional, que, assim, diz a cada fiel o que deve crer, o que deve fazer, e até o que deve pensar. Isto trará uma grande coesão à vida da Igreja, a ponto de a sua disciplina interna, o seu espírito de corpo serem invejados por vários estadistas e pensadores ao longo dos tempos.

Um alto grau de fidelidade à instituição permitirá a expansão mundial do cristianismo, como aconteceu desde a Reforma até ao fim da segunda guerra mundial. Por outro lado, a centralização hierárquica permitiu que as igrejas locais resistissem à corrente absolutista dos Estados modernos.

Doutrina bem definida, zelo e disciplina, santidade e heroísmo, concorreram para que o modelo institucional domi­nasse a vida da Igreja nos últimos quatro séculos. Este glo­rioso passado continua a atrair alguns cristãos de hoje, como se constatou na movimentação à volta do bispo Lefébvre. Este modelo impôs-se tão fortemente na catequese, na prega­ção e nos documentos oficiais da Igreja, que muitos cristãos pensam que a Igreja foi sempre assim. Muitos dos que pertencem a grupos carismáticos mal sabem que, há 100, ou mesmo 50 anos, esses grupos não poderiam existir no seio da Igreja. Este modelo, que serviu a Igreja até ao advento político da burgue­sia, havia de revelar as suas insuficiências ao entrar nos tempos modernos.

Sem lugar para o Espírito de Deus, nem para a liberdade pessoal, o modelo foi incapaz de proporcionar o encontro da Igreja com o mundo moderno e com a ciência. Daí o declínio e o mau estar que se acentuarão com o séc. XIX, até ao seu abandono, nos anos 40 deste século, quando se começa a falar do Corpo místico de Cristo.

Com efeito, os aspectos negativos deste modelo são muitos. As bases deste modelo na Escritura e na Tradição primitiva da Igreja são poucas. Aí, a Igreja nunca é apresentada como sociedade única fortemente estruturada. O espírito profético é recusado, acentuando-se o juridismo que exagera o lugar da lei e da autoridade na vida da comunidade. O clericalismo, isto é, a predominância dos clérigos sobre o povo de Deus desenvolve-se a ponto de asfixiar as liberdades mínimas de convivência eclesial. A teologia é reduzida ao silêncio, uma vez que a doutrina se basta a si mesma – é o dogmatismo. Como a experiência histórica o mostrou, este modelo tornou impraticável qualquer diálogo ecuménico, ou relações dos cristãos com outras religiões. Enfim, o modo como neste modelo se identificava o saber e o poder, tornaram-no inaceitável para a mentalidade moderna. Segundo o modelo clássico, a Igreja ensina, santifica, governa e o seu corpo governante – a hierarquia – identifica-se em cada caso à própria Igreja.

São tantos os limites e as contradições deste modelo que a eclesiologia terá de procurar outros caminhos onde o Evangelho se viva mais autenticamente, e também no que diz respeito à organização interna da Igreja de Jesus Cristo. Em cada tempo a Igreja tem de procurar formas de organização que não sejam obstáculo ao essencial da sua vida.

 
 
 









ISTA
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