A TIRANIA DA IMAGEM

 

 

 

 

MODELOS
E IMAGENS
DA IGREJA (3)

Luís de França OP

 

 

 


CADERNOS DO ISTA, 15

2. O Modelo da Comunhão

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A rigidez e a frieza institucional do modelo anterior sus­citou um apelo ao sentido da comunhão. Era esta a forma como a Igreja se compreendia nos primeiros séculos, durante os quais a instituição estava presente, mas que de modo nenhum era um elemento principal. Paulo e Agostinho contribuíram de modos diferentes para a elaboração do modelo da comunhão. Assim, por exemplo, os escritos de Paulo aos Romanos e aos Coríntios. A Igreja ortodoxa, que tem origem no cisma de 1054, irá manter-se uma Igreja segundo o modelo de comunhão no sentido eclesiológico do termo.

A Igreja Católica romana, pelo contrário irá afastar-se desse modelo, que será ocultado doutrinalmente falando entre a Reforma e Pio XII.

Em 1943, o Papa Pio XII, publica uma encíclica sobre o Corpo:Místico de Jesus Cristo “Mystici Corporis Christi” que resulta de vários anos de investigações em teologia. E foi o ponto de partida para uma nova visão da Igreja, sobretudo aquela que se irá viver em certos aspectos da Acção Católica e, mais recentemente, em movi­mentos do tipo dos “Cursos de Cristandade”.

O modelo da comunhão quer significar a comunicação entre as partes que constituem a Igreja. Para o fazer, usou duas imagens: a do corpo e a do povo. Quando, na Igreja, se acentua a dimensão da incarnação de Cristo, vai-se apelar para a imagem do corpo, corpo de Cristo, corpo místico. Quando se acentua o dinamismo bíblico da caminhada, vai-se apelar para a imagem do povo, como o fizeram os Padres da Igreja e recentemente, o Concílio Vaticano lI.

Resumindo, diremos, que há aqui um modelo eclesiológico – o da comunhão – e duas imagens – a do corpo e a de povo.

A sociologia, ao introduzir a distinção entre sociedade e comunidade (Tõnnies, 1887), facilitou a compreensão dos im­passes em que se encontrava a teologia de então. A Igreja não devia mais procurar o seu modelo nas sociedades civis, mas nos chamados grupos primários onde se dá a prioridade às relações humanas.

Foram precursores neste caminho os protestantes R. Sochm, Emil Brunner e Bonhoeffer, na sua obra intitulada “A comunhão dos Santos”. No lado católico contam-se Rade­macher, Jerôme Hamer, e mais do que nenhum outro, Yves Congar.

Antes de falarmos das vantagens e inconvenientes deste modelo, vejamos alguns dados sobre as duas imagens correlativas.

A imagem do corpo é mais orgânica do que social (Cf. Lumen Gentium nº 7). Ela contém uma certa ideia de vitalismo (por comparação com a biologia), onde se encerram as noções de crescimento, desenvolvimento, recuperação das perdas. Por outro lado, a imagem do corpo lembra a existência de um princípio vivo, o que permite a analogia com um princípio divino, ou com o Espírito Santo.

Foi Santo Agostinho que desenvolveu o aspecto místico desta imagem, incluindo nela os homens e os anjos e todos os justos desde Abel.

Para Tomás de Aquino, o corpo de Cristo não é essencialmente visível ou societário, e muito menos hierárquico. Mas como dissemos, todas estas perspectivas foram eclipsadas desde a Reforma. Ê com o teólogo belga Emile Mersch (1925), que se restaura, no século passado, a imagem eclesiológica do corpo místico, que se torna um conceito chave da teologia dos anos 40 a 50. Finalmente, em 1943, com a encíclica de Pio XII, consagra-se toda uma outra forma de conceber a Igreja, que procura diminuir os efeitos devastadores da concepção extre­mamente jurídica dos séculos anteriores. O facto de que nesse mesmo documento, Pio XII, identificou o Corpo Místico com a Igreja católica romana, prova a que ponto o modelo institucional, apesar de todos os correctivos, ainda dominava o pensamento dos homens da Igreja desse tempo. Em 1964, a Lumen Gentium relativiza a imagem do Corpo Místico e nunca diz que a Igreja de Cristo é identificável com a Igreja católica romana.

Sem negar o valor da imagem do corpo, o Vaticano II privilegiou a imagem do povo. Prova-o bem o título atribuído ao segundo capítulo da Constituição Conciliar sobre a Igreja, e mais do que isso, todos os debates e opções que conduziram à compreensão da Igreja como Povo de Deus.

Á partida, esta imagem tem muitos apoios no Antigo e no Novo Testamento, no qual a Igreja é chamada Novo Israel em marcha para a Terra prometida. Graças aos trabalhos da teologia protestante, e depois com Cerfaux no terreno católico, foi redescoberto o alto valor teológico e simbólico da imagem do Povo de Deus. Para a teologia pré-conciliar a Igreja, enquanto Povo de Deus, tornou-se uma ideia fecunda e a vários títulos. Dimensão histórica já que permite integrar a esperança na marcha quotidiana da Igreja e assim estabelecer uma relação entre o presente e o projecto do Reino; grande valor pastoral, ao situar a Igreja como um povo em marcha numa caminhada de conversão. Assim, a Igreja pode compreender-se, ao mesmo tempo, santa e pecadora (cf. Lumen Gentium n.º 8). Povo de Deus em marcha, implica a noção de incompleto e de tensão para o futuro, ao mesmo tempo que suscita a ideia de Aliança com o Criador. Daí, que esta imagem da Igreja, Povo de Deus, se revele muito fecunda no diálogo, sobretudo com os protestantes.

O modelo da comunhão, na sua diversidade imaginária, permite que os valores interiores e espirituais estejam mais vivos na consciência daqueles que formam a Igreja. Apelar para a comunhão, em vez de copiar a sociedade, só pode trazer as pessoas atentas à graça, ao que é mais interior e invisível. Á partida, este modelo torna possível uma unidade na diferença, já que o factor de unidade não é a uniformidade visível, mas a graça reconciliadora de Cristo. Só um modelo de comunhão fará justiça ao lugar constante que o Espírito deve ocupar na grelha eclesiológica. Onde está o Espírito de Deus aí está a Igreja.

A Igreja nunca devia deixar de ser uma comunhão. Contudo, os esforços para realizar essa comunhão não estão isentos de desvios, como o mostra a história e a realidade contemporânea.

Viver numa Igreja que se compreende só como comunhão, é abrir a porta a todas as formas de individualismo, de evasão, de exaltação mística, ou à busca insaciável da experiência religiosa.

Outro inconveniente revelado pela prática eclesial, é a tendência a acentuar um dualismo sempre latente, que leva a opor o espírito à instituição. Foi o que fez, por exemplo, o luterano Paul Tillich, ao opor, as igrejas institucionais, ás comunidades espirituais.

A noção de comunhão, a Koinonia de S. Paulo, facilitará o diálogo com os cristãos ortodoxos, assim como a imagem do Povo de Deus permitirá um diálogo mais profundo com os Judeus. Aliás este modelo ainda não elaborou critérios de identificação no interior da comunidade cristã, pelo que o seu uso exclusivo pode levar à dissolução da Igreja, assim como tor­nará difícil compreender a dimensão missionária inerente à vida da própria Igreja.

Como dissemos, este modelo serve-se de duas imagens para a sua difusão. Se a imagem de corpo pode estabelecer laços profundos entre as pessoas crentes, não serve à descoberta do sentido da solidariedade, que é uma das ideias forças da civilização contemporânea. Já a imagem do Povo se presta melhor a despertar o sentido da solidariedade. Não é por acaso que, nos tempos que passam, a imagem do corpo está de novo a tomar mais lugar na pregação do que a imagem de Povo, que foi tão politizado ultimamente.

Se esta teologia ainda não está suficientemente elaborada, é, em parte, porque as ambiguidades vêm desde a origem.

Assim, o termo neotestamentário da koinonia tem servido, ao mesmo tempo, para compreender duas formas de comunhão de vida na Igreja. Numa primeira versão, reconhece-se a koinonia ou seja a comunhão no espírito de fé, como o lugar das relações interpessoais amistosas - foi esta dimensão desenvolvida sobretudo no protestantismo, ao promover as congregações autónomas. Numa segunda versão, a koinonia é dita numa comunidade mística de graça, e esta visão das coisas originaria o monaquismo oriental, e constitui um dos suportes da vida religiosa contemporânea.

A actual fermentação de comunidades-base, que se expande no mundo católico ocidental, levará certamente a precisar o modelo eclesiológico da comunhão. Por outro lado, a urgência da unidade dos cristãos também obrigará a eclesiologia a definir melhor os grandes eixos duma Igreja que se compreenda, antes de mais, como a comunhão na fé de todos os que dão a sua adesão a Jesus Cristo, Nosso Senhor.

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3. O Modelo sacramental
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Este modelo eclesiológico é o que tem menos referências formais na Escritura e na Tradição. Foi sob o impacto da secularização e da cultura moderna que a Igreja voltou a valorizar esta forma de se compreender a ela mesma, enquanto, Igreja, como Sacramento da Salvação. Os Padres da Igreja, nomeadamente S. Cipriano, Hilário de Poitiers, S. Agostinho, S. Cirilo de Alexandria, já assim se exprimiram. Também Tomás de Aquino dissertou sobre o tema da Igreja como Sacramento. Contudo, os séculos da escolástica e da iden­tificação da Igreja com a sociedade civil, haviam de tor­nar inútil tal modelo. Em regime de cristandade, a Igreja estava de tal modo ligada às estruturas da cidade, que não se perceberia o seu significado como sinal.

Os grandes precursores da eclesiologia contemporânea, que são Mõhler e Sheeben, abordaram o tema a partir do século XIX, mas de forma pouco desenvolvida. É no mundo católico e na primeira metade do século XX, que nasce o interesse pelo modelo do sacramento. Deve-se ao teólogo jesuíta Henri de Lubac, na sua obra Corpus Mysticum, publicada em 1938, a redescoberta deste modelo eclesiológico que tem raízes na patrística. Numerosos teólogos católicos tais como, Rahner, Semmelroth, Schillebeeckx, Smulders, Congar, Martelet, etc., abordaram esta temática da Igreja Sacramento que, tendo recebido referências em Vaticano II, não foi contudo, privilegiada. Os dois textos conciliares sobre a Igreja – Lumen Gentium e Gaudium et Spes – têm apenas três referências ao tema do Sacramento.

Esta reserva do Concílio denuncia já, em parte, a crítica que o mundo protestante faz desta forma de compreender a Igreja, como se pode ver no vigoroso escrito de Ernest Kãseman traduzida em português sobre o título: O Crucificado e a Sua Igreja.

A cultura contemporânea que define o homem como um ser simbólico está apta a perceber uma Igreja que se define como sinal dum Reino que há-de vir. Por outro lado, este modelo de sacramento respeita alguns dos traços fundamentais da economia da encarnação. Com efeito, a revelação fez-se sempre através de sinais e, assim, a Igreja vai sendo sinal de uma realidade que nunca pode ser inteiramente visível. Com este modelo, será mais fácil perceber como é que a Igreja é o lugar de acolhimento da graça de Deus. mas não exclusivo. Apesar do domínio que o modelo institucional exerceu durante vários séculos, é verdade que a doutrina oficial da Igreja nunca aceitou a identificação total da Igreja com a sua ins­tituição visível. Prova disto é a condenação de Quesnel em 1713. Este autor jansenista foi condenado porque ensinava que: fora da Igreja não está garantida a graça. Em 1943 e na diocese de Boston (USA), um padre americano foi condenado praticamente pelas mesmas razões.

Como vimos nos capítulos anteriores, os dois modelos apresentados, o da instituição e o da comunhão, podem ser levados a extremos que contradizem o Evangelho de que se reclamam. Se os teólogos têm procurado elaborar este outro modelo - o do sacramento - é exactamente porque ele per­mite articular, ainda que parcialmente, o modelo da instituição com o modelo da comunhão A instituição nunca se pode tomar a ela própria como o todo da Igreja. Tal como no Evangelho, ela não deve querer ser maior que o servo inútil. Assim se evitará a materialização excessiva do projecto divino. Por outro lado, o modelo da comunhão que tem tendência para a deificação da Igreja deve aceitar o questionamento sobre a autenticidade e os sinais dessa comunhão.

Tal como o modelo anterior, este modelo tem fronteiras difíceis de traçar. Quando é que a Igreja é sinal? O que já se percebe, é que este modelo será sobretudo útil para uma Igreja minoritária e no interior de sociedades secularizadas. Assim o compreendem numerosos militantes e cristãos de grupos de base que encontram, no modelo da Igreja-Sacramento, uma regra e uma justificação para o seu agir eclesial.

Este modelo servirá uma Igreja que dê prioridade ao testemunho e à confissão da fé. Ainda que seja um modelo difícil de popularizar, o futuro poderá reservar um grande lugar a este modelo eclesiológico, sobretudo num mundo onde a Igreja seja minoritária e esteja afastada dos jogos do poder, e logo, da luta pelo controle das instituições.

Resta só indicar alguns inconvenientes deste modelo. Eles são: a tendência ao elitismo, ao esteticismo e até ao farisaísmo. À força de querer ser sinal autêntico, essa Igreja pode ficar-se no perfeccionismo da auto-contemplação ou na destruição do próprio símbolo, como o anuncia, aliás, toda uma tendência da cultura contemporânea.

Se é verdade que a Igreja ortodoxa pelo menos em parte dos países do Leste europeu, viveu sob esse paradigma, também é verdade que algumas Igrejas do Ocidente procuram reencontrar-se desse modo. Mas o mundo da Reforma até hoje não encontrou neste tema a fecundidade que seria de esperar. Dizem-no os silêncios dos textos de Upsala (1968).

Todavia, a crítica mais acerba a este modelo veio dos próprios católicos - os da América Latina - como veremos ao estudar o último modelo proposto neste estudo.

 
 
 
 









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