A TIRANIA DA IMAGEM

 

 

 

Da metafísica do fluxo
à treva luminosa:
Eckhart e a tirania da imagem (6)

JOSÉ AUGUSTO MOURÃO

CADERNOS DO ISTA, 15

III - O devir sensível da forma
 

B. Latour propõe três espécies diferentes daquilo a que chama “iconoclash”: religião, ciência e arte contemporânea (27). As imagens religiosas são aquelas que ainda atraem as mais ferozes reacções (do Exodo, 34, 13, à destruição dos Budas Bamiyan pelos talibãs). Porque é que as religiões apelam à destruição dos ídolos para se adorar Deus em verdade e porque é que a anti-religião apelam à destruição dos ícones sagrados para dar á humanidade os seus verdadeiros sentidos? Onde está o “iconoclash” em ciência? “Quanto mais instrumentos e mediação, maior é o abismo da realidade” (ibidem: 10). Em nenhum outro lugar se aplica mais o segundo mandamento. Em ciência não existe algo como “mera representação”. Em relação à arte contemporânea, não há dúvida que a pintura, as instalações, os happenings, os museus são “human-made”. Nenhum acheiropoiete (não feito por mão humana).

São dois os regimes da imagem: representacional, metafísica, analógica, continuista, materialista. A imagem era metafísica e analógica, mas está a tornar-se sensível e digital. O corpo está a tornar-se a imagem do mundo. "A narcose mediática", a velocidade de libertação (Virilio) está a desertificar o mundo das imagens. Estas não se distinguem da realidade, adquirem qualidades de quase-sujeito, de quase-ser - o ciborg, o laser estão a substituir a imagem que ainda arrastava consigo o sortilégio da analogia, motorizando a vista ou completando o que resta do corpo, esse objecto obsoleto.

A câmara escura é a “primeira síntese susceptível de assegurar um domínio controlado da realidade” (Bellour) através de uma anexação da função perceptiva à identificação e reconhecimento da quantidade de impressão analógica que ela é capaz de fornecer, enquanto máquina de visão que tem por objecto e objectivo a sua construção. A imagem foi tomando o passo sobre o mundo. As imagens-técnicas - fotografia - as imagens deixam de ser vistas como imagens e passam a ser vistas como visões do mundo, janelas (Flusser). As novas sínteses automáticas do mundo impedem de ver o análogo como construção. “O mundo reflecte os raios do sol e outros raios que dispositivos ópticos, químicos e mecânicos permitem fixar em superfícies sensíveis e que produzem como resultado imagens técnicas; noutros termos, estas parecem situar-se no mesmo nível de realidade que a sua significação. O que nelas vemos, ao que parece, não são então símbolos a decifrar, mas sintomas do mundo através dos quais é possível entrever este último, mesmo que indirectamente”28. Passamos da ordem da analogia da imitação para a ordem da analogia da percepção (fotografia), de movimento (cinema), de tempo (imagem electrónica), mais problemático com o aparecimento das imagens de síntese. Assistimos à reprodução automática do mundo, dobrando-se em cópias, duplos, espectros, simulacros. O estatuto das coisas altera-se: fantasmagorias, simulacros da coisa: “As coisas emanciparam-se e adoptam um comportamento humano... A mercadoria transformou-se em ídolo que, apesar de ser o produto da mão do homem, comanda este último” (Marx). Em vez de “coisas” falemos de “imagens”.

Didi-Huberman dá-nos um mapa impressionante do que pode a imagem: “Images-contacts? Images qui touchent quelque chose puis quelqu’un. Images pour atteindre au vif des questions: toucher pour voir ou, au contraire, toucher pour ne plus voir; voir pour ne plus toucher ou, au contraire, voir pour toucher. Images trop proches. Images adherents. Images-obstacles, mais où l’obstacle fait apparaÎtre. Images accolées entre elles, voir à ce dont elles sont les images. Images contiguës, images adossées. Images pesantes. Ou alors très légères, mais qui affleurent, qui effleurent, nous frôlent et nous touchent encore. Images caressantes. Images tâtonnantes ou déjà palpables. Images sculptées par du révélateur, modelées par de l’ombre, moulées par de la lumière, taillées par du temps de pose. Images qui nous rattrappent, nous manipulent peut-être. Images capables de nous froisser, de nous heurter. Images pour Images pour que notre main s’émeuve”(29).”

Resistirá o paradigma eckhartiano da imagem ao assalto a que a modernidade submete a imagem? Bastará citar G. Bataille. Este filósofo faz a crítica da concepção metafísico-religiosa da realidade no interior da qual o mundo material é da ordem da dessemelhança em relação a uma forma ideal originária, para a qual as coisas remetem através de uma semelhança negativa ou imperfeita, pois, de acordo com a perspectiva teológica, a semelhança como igualdade de forma estaria interdita aos homens, impotentes para assimilarem a forma do seu Deus. Bataille decompõe esta construção metafísica “invertendo a hierarquia do modelo e da cópia e renunciando a toda a mitologia cristã, de influência aristotélica, da origem” (30). A semelhança deixa de ser entendida como substância fixa, sendo vista então como processo, relação visual que põe em contacto e em movimento as matérias e as formas, no sentido do informe, da dessemelhança, da desfiguração.

Também para o empirismo transcendental de Deleuze não há um mundo (actual) que depois é representado em imagens (virtual) pela mente privilegiada do homem (o sujeito). A vida é exactamente esta actual-virtual interacção do imaginar: cada fluxo de vida se torna outro em resposta àquilo que não é. A vida é então um fluxo e conecta-se com corpos em interacção ou “máquinas desejantes”. Estas conexões formam regularidades que podem então ser organizadas através de “máquinas sociais”. O papel da filosofia e da arte é mapear as vias em que os corpos imaginam e produzem ficções, ideias ou conjuntos que parecem ser transcendentes mas que são realmente produzidas pelo fluxo da vida. A imagem não é nem actual nem virtual mas o intervalo que põe em cena agora o virtual. A planta ‘imagina’ ou capta o sol em direcção do qual se volta, permitindo o começo da fotosíntese: “Há imagens, as coisas são elas mesmas imagens porque as imagens não estão no nosso cérebro. A cérebro é apenas uma imagem entre outras. As imagens estão constantemente em acção e a reagir umas às outras, produzindo e consumindo. Não há nenhuma diferença entre imagens coisas e moção” (Deleuze 1995: 42). "A semiótica das pequenas percepções é uma semiótica que se nega enquanto signo, que aponta para aquilo que é o contrário do signo: a força”. “A imagem-nua tem o seu esoterismo de código e o seu esoterismo de força, de não-código”... Deleuze não quis uma semiótica, quis um dispositivo de intensidades e de forças que fosse instrumento de análise de uma estética, de um conhecimento, de uma literatura, etc. “O que me interessa, no fundo, é partir de um campo que é um campo de forças, um campo transcendental onde se vai procurar uma heterogénese, para falar como Deleuze, de formas e signos. Simplesmente, este campo de formação de signos não é um campo virgem, originário. Qualquer coisa se inscreveu a partir da linguagem que não é uma linguagem” (31).

É esta recusa em atribuir experiência a um observador ou sujeito que torna a experiência transcendental. O erro ou a fundamental ilusão do pensamento é a transcendência. Damásio fala sempre de “imagem mental” (2000: 361) entendida como “padrão mental” (ibid., 361). Damásio conclui que o processo designado por mente - “quando as imagens mentais se tornam nossas devido à consciência” - pode ser visto como “um fluxo contínuo de imagens, muita das quais se revelam logicamente interligadas. “O pensamento é uma palavra aceitável para traduzir um tal fluxo de imagens” (ibid., 362/3). “Qualquer símbolo com que possamos pensar é uma imagem, sendo bem pequeno o resíduo mental que não é constituído por imagens mentais. Até os sentimentos”! (...) “são imagens”, estas de tipo somatosensorial (ibid., 363). Na obra deste neurocirurgião, as imagens mentais “surgem de padrões neurais ou de mapas neurais, formados em populações de células nervosas (ou neurónios) que constituem circuitos ou redes” (367).

Com a Revolução informática assistimos, na expressão de Mitchell Stephens a algo como "The rise of the image, the fall of the word". O mundo das palavras impressas está a morrer e o o mundo das imagens em movimento está a ganhar terreno. O poder da arte e da literatura tornou-se háptico. A experiência moderna centra no choque (Benjamin), enquanto norma da vida moderna: sensorium corporal. O seu efeito é o do choque. William Burroughs fala da “tremenda vitalidade eléctrica” das ilustrações de Keith Haring. “E tudo fazia referência a tudo; foi isto que aprendi a partir dos ‘cut-ups’ de Burroughs. Sam Wood choca através das suas “moving pictures”.

 
Coda
 

Voltemos a Eckhart. Aos olhos dos mestres frustres que não aceitaram a versão cristã da felicidade mental nem a elaboração filosófica do tema patrístico da divinização do cristão; os filósofos de profissão consideram-no um “louco” - a palavra é de Guilherme de Ockham; os “espirituais”, como Michel de Cesena, consideram-no um “herético”; a cúria pontifical de Avinhão, um “temerário” e um “malsoante”; passará por um aristotélico radical aos olhos dos teólogos conservadores que o acusam de ter professado a eternidade do mundo. Incompreensão que é o ponto de partida medieval de uma oposição entre filosofia e mística que ainda hoje pesa. A própria Ordem a que pertence parece desacreditá-lo parcialmente: um pouco antes da abertura do seu processo, ao capítulo geral de Veneza denunciou explicitamente os perigos da “pregação vulgar” na Alemanha, e o geral dos Padres pregadores, Barnabé Cagnoli denunciou tanto a pregação de “subtilidades diante da gente do povo” como a discussão de “problemas demasiado difíceis nas escolas” dominicanas e os conventos de formação (32). Bem tentou Henri Suso defendê-lo, ao redigir o seu Pequeno Livro da verdade: demonstrar, no calor do processo de inquisição intentado contra o seu antigo mestre, que o ensino eckhartiano autêntico nada tinha a ver com aquilo que os irmãos e as irmãs do livre-espírito espalhavam com o seu nome. A sua empresa era outra: “Hoc autem dicentes non tollimus rebus esse nec esse rerum destruimus, sed statuimus”(33). Como sempre, o poder passou ao lado, abandonando o homem ferido à sua sorte.

A cristandade medieval, no Oriente como no Ocidente, foi abertamente iconófila, privilegiando a imago em detrimento do signum. A referência à Incarnação é a sua última justificação e o seu principal motivo. Tomás de Aquino acrescenta à função da imagem (didáctica, mnemónica, afectiva), uma outra a que chama de transitus (noção neoplatónica tirada do Pseudo-Denis traduzida por João Escoto Eiúgena), de relacionamento com as protótipos (34). Será a Entbildung - enquanto “desimaginação” - também uma forma de iconoclasmo? O Mestre distingue as imagens da experiência sensível, relativas à teoria do conhecimento, e a imagem “mística”, a que olhamos “com os olhos fechados”, transportada para a mais profunda interioridade da alma. A imagem remete sempre para além dela mesma: a imagem-Urbild, o modelo exemplar de todas as imagens-Abbilder, imagens de imagens, em cascata. “As imagens cegonhas de uma realidade sempre em fuga e subtraída a si própria: aspiram à autenticidade daquilo de onde procedem, enquanto que em si mesma, são apenas símbolos utópicos, signos do não-lugar e do “sem porquê” (35). Para o Turíngio as imagens são bem menos que o nada “criatural”. Mas sendo mesmo intermediárias mudas do irrepresentável, mais próximas do verbo inefável do que da linguagem humana, elas são “mensageiras” das causas primeiras, porque em Deus, enquanto modelos de toda a criação. Como as criaturas, “nada” e “signo” do criador: quais anjos ao mesmo tempo volúveis e mudos, intermediários caídos do inefável. “Eckhart deprecia a s imagens para glorificar aquilo de que elas são a imagem”. Não é portanto iconoclasta. Remete para uma ética da imagem e para uma crítica da representação. Não pode, num tempo dividido entre a “fanopeia”36 e a “abstracção” da imagem, esta ética da imagem ser o melhor remédio para a cura dos olhos? O mundo das cópias fez delas Ab-bilder, isto é “imagens caídas”, gerando uma penúria relativamente aos modelos e aos originais. Questão do trigo e do joio. João XXII acusa Mestre Eckhart de ter semeado “o joio por baixo da semente da verdade”, “no campo do Senhor” (37). Onde começa acaba a censura e começa a liberdade? Em Eckhart a ética da imagem liga-se ao desapossamento do poder ilusório das imagens da região “da região de dessemelhança infinita”. Obriga a ir além da imagem. A Entbildung é uma ética do desapego, um exercício da Gelassenheit, está acima das aporias da moral da imagem: trata-se de compreender o que pode implicar o apego e identificação com as imagens, quaisquer que sejam a sua natureza e o seu valor, “para o melhor e para o pior”.

Estamos nos antípodas da abstracção que no domínio pictural e na arquitectura representaram um esforço denodado de “espiritualização” (Kandinsky e Rotko) e que não será ilegítimo aproximar da obra afairética do Mestre. A proposta de Wackernagel parece-nos sábia: “Entre o iconoclasmo e a fanopeia, é preciso encontrar uma terceira via: a abstracção eckhartiana, como afirmação do nada das coisas criadas, logo das imagens, não destrói o seu ser, pelo contrário, diz Eckhart, funda-as”. Afinal disse uma só coisa a vida toda e com um só vocábulo: "Quando prego tenho o costume de falar do desapego e de dizer que o homem deve desapegar-se de si mesmo e de todas as coisas. Em segundo lugar, que devemos ser reintroduzidos no Bem simples que é Deus. Em terceiro lugar, que o homem se lembre da grande nobreza que Deus colocou na alma afim que o homem chegue assim maravilhosamente a Deus. Em quarto lugar, falo da pureza da natureza divina - que claridade inexprimível cabe à natureza divina. Deus é uma Palavra, um Verbo in-expresso" (38). Desde o desapego de todas as coisas até uma "ad-imaginação" na claridade inexprimível do Verbo divino, entbilden constitui o eixo central da trajectória mística do Turíngio.

Não estamos condenados ao vazio necessário de Blanchot ou ao nada de Bataille. A imagem é aquilo que a religião oferece, reificando a través dos dogmas aquilo que não tem sentido senão negativamente, como desfalecimento do sentido: daí a sua mentira. Para Y. Bonnefoy "cést le plein qui est tout entier - qui est en paix - dans l'évidence, ici, maintenant, de chaque chose terrestre" (39). "On n'appelle pas Dieu par son nom, on l' appelle dans un nom, et cela peut être du même coup n'importe quel nom, c'est ce qu'on nomme l' amour" (40). Como casar o negativo com o positivo da palavra profética e da encarnação para afirmar o inconhecível de Deus? Não pode o inconhecível fazer de Deus não uma imagem particular, mas um nome próprio, o inesgotável dum encontro e de uma procura?

 
 









ISTA
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