A TIRANIA DA IMAGEM

 

 

 

Da metafísica do fluxo
à treva luminosa:
Eckhart e a tirania da imagem (5)

JOSÉ AUGUSTO MOURÃO

CADERNOS DO ISTA, 15

II - Imagem e humildade
 

Liguemos a questão da imagem à questão da humildade. Eckhart, no Benedictus Deus, recorre a S. Agostinho, em particular ao De vera religione 26, 49, descrevendo os seis (sete) graus do homem interior para chegar à Entbildung no sexto (e sétimo). A versão apresentada é a da mutação agostiniana, mas não nomeia o sétimo estado: porque a quies aeterna de que se trata em Agostinho é chamada nullis aetatibus distinguenda beatitudo perpetua. Como definir a verdadeira e perfeita humildade? Desde Agostinho que o tema não é novo. Mas os anos 1300 carregaram-no de perigos novos, tanto em filosofia como em teologia, conflitos que tornam problemática a tentativa para harmonizar o profano e o sagrado. O primeiro terreno de luta é a querela sobre a pobreza de Cristo. Em 1322, durante o capítulo geral de Perúsia, os Franciscanos proclamaram a pobreza do Cristo e dos Apóstolos sã doutrina católica. A 12 de novembro de 1323 o papa João XXII declara esta tese herética. O sermão 52 de Eckhart é uma longa apologia da pobreza de espírito, lançada por um homem já sob o peso da inquisição. O Mestre não dissocia a pobreza da humildade: o homem pobre e o homem humilde são um só e mesmo homem. Leia-se a vibrante homenagem ao seu “querido senhor são Francisco. Isto quando o geral dos fransciscanos, o espiritual Miguel de Cesena, que comparece em Avinhão em 1327, acusa formalmente Eckhart, na sua Apellatio maior de 18 de setembro de 1328, de ter espalhado “vergonhosas e monstruosas heresias” na Teutónia.

A pobreza aqui louvada atinge em cheio a teologia do papa, incomodando também as certezas dos espirituais. Um segundo terreno de luta teológica vai ser a visio beatifica. A teologia eckhartiana da pobreza atinge também de caras a teologia da visão beatífica dos mestres de Paris. A pobreza de espírito exclui a tese do conhecimento reflexivo ilustrado nos anos 1300 por Jean de Paris e D. de Saint-Pouçain. O homem pobre é também o homem humilde, e o homem nobre do Livro da consolação divina, aquele que conhece Deus na douta ignorância, não sabendo nada de nada, não aquele que conhece que conhece Deus. Esta é a tese lançada no sermão 52 (o homem pobre é aquele que não sabe nada, que nada quer e que nada tem) e que data pelo menos de 1318.

Um homem único, humilde, pobre e nobre não poderá agradar a toda a gente: nem aos teólogos de Paris, nem aos espirituais franciscanos, nem ao papa. A humildade cristã é a virtude cristã por excelência porque ensinada por Cristo e porque desde a IIa-IIae de Tomás de Aquino aparece como doutrina perfeitamente estabelecida. É ao falar da humildade que Eckhart se expõe à censura. A suspeita parece legítima. Eckhart escreve que o homem humilde e Deus são a mesma coisa - um só ser e uma só vida - o homem humilde nada tem a pedir a Deus. A resposta é rápida: Eckhart é um místico e especulativo. É preciso reler o nosso Mestre, que não é um místico do excesso, sim um mestre em teologia que ensina em Paris e que dez anos depois, nos conventos de mulheres, rediz em alemão aquilo que dissera em latim.

A doutrina eckhartiana da humildade inscreve-se na confrontação entre filosofia e teologia, que nasce na segunda metade do século XIII e que conhece o apogeu nos anos 1300. Os filósofos são aristotélicos radicais, Mestres de artes, leitores e comentadores da Etica a Nicómaco, partidários de um aristocratismo intelectualista cuja doutrina da “felicidade mental” coroa um “amor intelectual de Deus” entendido como “contacto” ou “conexão” da inteligência humana com o Pensamento divino, constitui a expressão última desse grupo. Os teólogos são os conservadores e os mendicantes da Faculdade de teologia da Universidade de Paris que, na esteira de Etienne Tempier e da condenação do aristotelismo em 1277, e em nome de uma concepção da beatitude celeste, fechada a qualquer possibilidade de uma felicidade humana perfeita nesta vida, continuam hostis ao humanismo filosófico dos homens das artes. A questão da humildade é o lugar exclusivo da luta entre as duas facções. A alternativa é simples: trata-se de virtudes, de formas de vida e de classes de homens. Aqui a grandeza de alma, a magnanimidade do aristocrata, do pensador, ali a humildade do cristão e a virtude do mendicante. Uma fórmula de Siger de Brabant resume o ponto de vista aristotélico: a humildade é a virtude dos medíocres, a magnanimidade a virtude dos grandes.

O filósofo Siger de Brabant é um asceta. O mestre de Brabant visa o filósofo casto e votado ao pensamento puro, i.é., em ascensão espiritual que atinja aunião com os seres metafísicos que povoam o cosmos inteligível do peripatetismo greco-árabe - o “Doador de formas”, dos “inteligíveis separados”, os “Motores das esferas”, que deixam “fluir”, na alma humana o tesouro ou a fonte do pensar. O filósofo é um intelectual mas no sentido em que é o homem do intelecto e em que a intelectualidade é o destino do homem fundado na sua essência.

A teoria metafísica do fluxo, da "influência" encontra-a Eckhart no Liber de causis e na Metafísica de Avicena, conforme à interpretação que dela tem Alberto Magno. O superior flui, escorre e emana no inferior pela sua própria natureza. A etimologia ajuda a formular a noção cristã da humildade: da terra (humus) ao homem (homo) e ao humilde (humilis). Acrescente-se aqui o pensamento do Pseudo-Areopagita: "a natureza do Bem supremo é difundir-se a si próprio, e fazendo-o, difundir o ser" (Bonum est diffusivum sui et esse). Na metafísica avicena da emanação - o fluxo (da graça, agora, e a missão do E.S., ou a “inabitação” do Verbo, i.é., a Deidade cantada por Mechtilde de Magdebourg. Também no Tratado do desprendimento está patente a presença de Avicena. “A necessidade, a estabilidade e a utilidade da humildade na ascensão espiritual, eis o que nos ensinam a natureza, as matemáticas e a Escritura.”

Tudo converge nesta teoria do fluxo: a natureza, com a metafísica (aviceniana) do fluxo e a física (aristotélica) do “lugar natural”; as matemáticas com a teoria da projecção da esfera num plano, a Escritura, com o jogo de exegese complexa que resume o conjunto do discurso cristão nas teses fundamentais do Prólogo do Evangelho de S. João, a divinização do cristão e a graça da inabitação (ele veio e habitou entre nós), a piscadela da “águia” espiritual no seio do Pai, onde está o Verbo, o logos, a pureza primeira e a raíz de todas as coisas. De Ezequiel a João, passando por Aristóteles, Avicena e Escoto Eriúgena, tal é o trajecto do Mestre: a consumação do programa filosófico e teológico, em que - como o revela a afirmação dez vezes retomada do paralelismo da ética, da física e da teologia (in moralibus, in naturalibus, in divinis) - a natureza, no mais íntimo de si mesma, no seu centro, no seu fundo, simboliza inefavelmente a graça.

Há virtudes que desde aqui tornam possível uma relação viva do homem com Deus, uma relação tal como a contemplação filosófica, a sabedoria teorética dos aristotélicos radicais, integrada na perspectiva da divinização do cristão, ilustrada pelos Padres gregos. Estas virtudes são: a pobreza, a humildade e a nobreza, ou numa palavra que as resume todas, o desprendimento. A pobreza e a humildade eckhartianas nada têm a ver com as virtudes cristãs de que falam os teólogos conservadores do fim do século XIII, nem a nobreza exaltada por ele se identifica com a magnimidade de Siger como a virtude dos grandes. A grandeza de alma de que ele fala é a do vazio, é esse “aumento do alma” através da aniquilação que eleva o homem acima de todo o criado. Grandeza e pequenez não se opõem. A humildade é grandeza (projecção geométrica da esfera) e o baixo e o alto coincidem. O polo e o centro: o abaixamento verdadeiro é uma interiorização. o homem pobre, humilde e nobre são um só e mesmo homem: o homem desapropriado, “sem qualidades”, o homem “sem isto nem aquilo”, o homem desapegado.

Estamos diante da dialéctica da elevação e do abaixamento: coincidentia oppositorum. É a consequência duma lei de comunicação divina que estrutura a prática do desapego. Se o próprio de Deus é dar, é preciso procurar e encontrar um sujeito “receptivo”. A humildade é aquilo que dá a Deus a sua deidade: sem a minha humildade Deus não pode dar-me nada, porque não posso receber o seu dom sem humildade.

A perfeita humildade faz o céu a partir da terra porque em tudo o que é humilde, a terra e o céu, o alto e o baixo se identificam. Só o que está em baixo pode subir; mas como esta ascensão daquilo que está em baixo é, ao mesmo tempo, abaixamento daquilo que está em cima, a humildade designa um movimento simultâneo ou único, do alto para baixo e de baixo para cima. Esta é a lei da teoria do fluxo elaborada no Livro das causas e por Aviceno. Desnudando-se de todo o criado, i.é., da influência de todas as causas segundas, a inteligência anula o poder causal das causas segundas na sua decisão de se submeter apenas ao influxo da Causa primeira. Subtraindo-se ao mundo do sangue e da carne, a alma toma Deus por Causa única e “obriga-o” a difundir-se, só, nela.

A lei da humildade é a lei do Dom inexorável. É a lei da realização de todas as coisas. Quem quer estar em cima e elevado, deve estar em baixo e abaixar-se, porque a humildade é a raiz da difusão de Deus. A humildade do homem humilde é o abaixamento de Deus e a profundidade da humildade coincidem no Fundo sem fundo, na unidade de Deus com o homem submetido a Deus em Deus mesmo. Os censores de Colónia eram menos simples do que as monjas que ouviam o Mestre: "O homem não tem necessidade de pedir a Deus, pelo contrário: pode exigir-lho, porque a altura da deidade só pode olhar o fundo da humildade, o homem humilde e Deus são um e não dois" (Sermão 15). "Deus é como o sol. Aquilo que é o mais alto na sua profundidade sem fundo responde àquilo que é o mais baixo no fundo da humildade. O homem verdadeiramente humilde não tem necessidade de pedir a Deus; pode obrigar Deus, porque a altura da deidade só tem olhos para a profundidade da humildade" (Sermão 14). A humildade de Jesus é o modelo da justificação cristã. A humidade é a expressão passiva do abaixamento activo e interior de Deus no coração do homem assumido. A doutrina da graça - Incarnação e Inabitação - é o conteúdo teológico da doutrina filosófico-teológica da humildade. A metafísica do Verbo é a formulação cristã da metafísica do fluxo. Uma causa que não flui no seu efeito deixa de ser a sua causa. A ausência de causa é o pecado, a perda de si no nada, no mal que, como Denis diz, nem tem causa nem ser nem princípio nem fim, causa deficiente do Nada.

A humildade é o abaixamento de Deus ao coração despojado de tudo. Ele veio e vem no meio de nós, no centro, no fundo, nele, na sua casa. O orgulho é a magnimidade sem humildade, a natureza sem a graça, a filosofia sem o Cristo. A humildade é uma raiz plantada no fundo da deidade, é a virtude da Treva que “espalha a luz”. Esta libertação do poder da Treva é a oração segundo o espírito e a inteligência. Alma cheia de graça, nua e pura de todo o criado. Virgem. O carácter sem mistura da inteligência de Aristóteles depois de Anaxágoras, tem uma significação para o cristão. A intelectualidade é graça, enquanto vazia de todas as criaturas. É nessa virgindade que a alma se pode tornar mãe de Deus. É o fluxo da graça. A quem só olha Deus, Deus dá a sua própria deidade.

A perfeita humildade de Maria é o modelo do pensamento fértil. Este nascimento é a verdadeira contemplação filosófica, como o formula a Ética a Nicómaco X,7: “A Inteligência ou melhor: o intelecto. Esta contemplação é também a verdadeira felicidade, atingida nesta vida. É a beatitude do viajante imóvel.” O alto e o baixo identificam-se no centro, no Nascimento do Filho na alma do cristão. Liguemos o tema da humildade ao da Geração do Filho, a injunção feita a Zaqueu e a declaração do Salmo (“Hoje eu te gerei”). A doutrina da humildade é a da divinização.

 









ISTA
CONVENTO E CENTRO CULTURAL DOMINICANO
R. JOÃO DE FREITAS BRANCO, 12 - 1500-359 LISBOA
CONTACTO: jam@triplov.com