CICLO
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CADERNOS DO ISTA, 15 |
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O tema é central para a experiência porque as pessoas famosas sempre foram, na cultura ocidental, usadas para a produção das utopias pessoais com que os indivíduos dão rumos à sua subjectividade. É verdade que o mecanismo da organização da experiência através do modelo exterior do ídolo cultivado nunca foi bem aceite pela maioria dos pensadores da cultura ocidental, sejam eles de inspiração religiosa ou científica. Estes sempre defenderam prioritariamente processo de constituição interior, desde o “Conhece-te a Ti Mesmo” grego à “Arte de Si” defendida por Michel Foucault. A defesa da consciência e do conhecimento pessoal não impediu nunca que fortes culturas de ídolos se fossem sucedendo contaminando até as próprias religiões, escolas de pensamento e de cultura. Actualmente com o predomínio da televisão, vivemos uma nova era de idolatrias que, como todas, nasce cozinhada no forno da cultura popular. Assistimos, sem dúvida, com a vaga dos reality shows a uma nova vaga de ídolos ou a uma nova natureza dos ídolos presas dóceis para a critica fácil mas que merecem que lhes dediquemos um pouco mais da nossa curiosidade porque são “compostos culturais” mais complexos do que à primeira vista aparentam. Falo obviamente das pessoas que, através das várias séries do programa “Big Brother” e de outros semelhantes como o “Masterplan”, passaram de repente a ser das pessoas mais conhecidas do país. Fenómeno que não é apenas português e que se repete um pouco por todo o mundo ocidental. Como interpretar este interesse obsessivo das massas por pessoas como o “Zé Maria de Barrancos” ou a “Gisela do Masterplan” que se estiverem sentados, lado a lado na espera do médico, ninguém lhes liga nenhuma e depois de passarem por um determinado programa de televisão tudo na sua vida banal começa a ser devorado doentiamente por milhões de espectadores que não perdem a mínima das suas conversas, entrevistas ou fotografias? Ídolos é uma palavra curiosa, porque ao contrário da palavra herói, já incorpora uma forte conotação negativa e pejorativa porque remete para uma inautenticidade espectral das figuras. No século XX, o cinema iniciou a disseminação de uma forma de experiência que recuperou a oralidade e as “imagens” concorrendo directamente com uma sociedade que, nos três séculos anteriores, fora formatada e organizada pela experiência da escrita, individualizante, interiorizante, lógica e muito cerebral. Apesar de se ter mantido no cinema e uma certa dimensão literária e experimentalista foi também rapidamente apropriado por massas de indivíduos que nunca tendo passado pela escola ou tendo-lhe mesmo resistido, rapidamente adoptaram a forma cinematográfica de receber a experiência do mundo em histórias de fácil assimilação. Regressaram em força os heróis de um mundo maniqueista, cheios de qualidades extraordinárias, típicos do mundo da oralidade. Neste sentido, o painel dos novos heróis cinematográficos é talvez aquele que melhor se aproxima do painel dos deuses gregos. Heróis impuros com poderes invulgares mas também com tentações perigosas. Heróis que superam os dilemas interiores para vencerem as dificuldades exteriores. Diferentes dos heróis religiosos, figuras sempre puras, sem mácula. Há vários tipos de heróis cinematográficos mas os que mais cativam as massas de gente são os que conseguem antropologizar esta nossa vida organizada em dispositivos abstractos, matemáticos, maquínicos difíceis de visualizar e de entender. O herói cinematográfico resolve sozinho a guerra, a burocracia, o problema da droga, faz parar um asteróide que vai chocar com a terra, alimentando a ideia de que tudo estará ao alcance do agir humano e da vontade de um só indivíduo. Por exemplo, quando a informática e os computadores entraram em força nas nossas vidas, nos anos 80, suscitou tanto curiosidade como angústia no entendimento o seu sistema de funcionamento, da sua linguagem diferente de tudo o que se vira até então. O cinema produziu então o herói Tron (1) que entrava nos computadores para dominar os seus males. Os heróis e as sua narrativas fantásticas não são mais que uma resposta à necessidade que os indivíduos têm de entender a vida com e os dispositivos de funcionamento cada mais sistémicos, abstractos, difíceis de visualizar e portanto de compreender. Os heróis vingam no vazio da explicação, oferecem com sucesso uma forma de entendimento alternativo, ao discurso técnico, científico e burocrático que realmente nunca conseguiu encontrar as fórmulas para se comunicar popularmente. Se a maioria das pessoas não entende o sistema político, administrativo, financeiro que pode explicar o sistema da droga, então o herói fornece um explicação mínima , pobre em explicações, desvirtuada e simplificadora da complexidade do mundo mas que atenua o vazio da incompreensão. Não deixa de ser curioso verificar que os heróis cinematográficos, ou os super heróis da banda desenhada tenham surgido num tempo ( inícios do séc.XX ) em que a literatura como modo maior da cultura escrita tinha praticamente abolido a figura do herói em favor do homem sem qualidades. Os grande romances da época de ouro da literatura como “ Em Busca do Tempo Perdido” de Marcel Proust ou o “ Homem sem qualidades” de Robert Musil, interessavam-se pelo homem comum, pelo quotidiano da vida explorando e estendendo os meandros da personalidade humana para além do bem e do mal. Referindo-se a Musil, Bragança de Miranda aclara este processo: “Ora, o homem moderno é sem atributos porque é realidade que os tem todos.(...) No fundo, Musil está à procura do humano para esse mundo novo. As qualidades cristalizaram-se, sem o poderem fazer: e cada um cai na figura particular do professor ou do operário ou do empregado ou em ideias de todo o género mas ninguém consegue viver neles e com isso o que a vida tem de dissonante, de criativo e de espontâneo sofre e em contragolpe o ressentimento tudo destrói (Miranda, 1996) (2). A “Odisseia” de Joyce é talvez o pico deste processo de desheroicização que a experiência escrita através da literatura tentou operar na vida moderna descristalizando as figuras preexistentes onde é suposto o humano “cair” O modelo que a experiência escrita tentou opôr ao do herói oral foi o do autor . O autor não é dotado de poderes especiais nem vive aventuras extraordinárias. O autor é aquele que, com persistência, sabe desenvolver os seus atributos simples, escrever, pintar, compor, criar edifícios e se torna pessoa com as suas obras, trabalhos ou projectos. Ainda está por explicar porque é que o modelo do autor, democrático, bastante mais rico e pragmático para a experiência não vingou na cultura popular ao contrário dos heróis fantásticos. Segundo Benjamin, cujo projecto era literalizar de tal modo a experiência que cada um se tornasse autor de si próprio, o problema está no facto de que as figuras preexistentes – ídolos – são mais fortes e mais cómodas que o indivíduo “está sempre disposto a converter-se num escritor, a saber: em alguém que descreve o que prescreve. Acede à autoria como perito e não como posto que ocupa com certa disciplina” (Benjamin, 1934) (3). Apesar de tudo, o conceito de autor continua a ser central na críticas aos heróis da cultura popular esvaziados pela comparação e transformados em ídolos, figuras espectrais que não produzem experiência. Ou seja, á luz do conceito de autor, todas as outras figuras-guia da experiência parecem opostas, ridículas inautênticas. Mas a lenta e trabalhosa e muito cerebral instalação do autor na experiência não é certamente o melhor modelo para explicar a viral ligação afectiva que o ídolo consegue activar. Curiosamente grande parte da nova vaga de heróis modernos, como o Tarzan, o Flash Gordon ou os heróis da banda desenhada, dotados de super poderes como o Homem Aranha, o Super-homem, etc. surgiram nos anos 30 do século XX fruto das influências que modernismo deixou na cultura popular. O modernismo representa uma alteração fundamental na experiência humana como bem analisou Jan Patocka: “ O tempo histórico distingue-se por um presente que nega o passado como meio para um programa para um projecto de futuro (Patocka, p.31) (4). É o tempo em que o mundo, o presente deixa de ser visto como algo explicado à partida ( como nos mitos religioso) e passa a ser entendido como algo incompleto, sempre em crise e só superável no futuro através da acção humana. Uma nova percepção da vida que abriu as portas da ficção e da imaginação, que de mil e uma formas inundaram o quotidiano. Tornaram-se fundamentais porque a condição do presente passou a ser a forma como antecipa o futuro. Isto originou uma hipertrofiação de futuros na cultura popular visível na electrodomestificação da vida; no desejo por novas maquinas que prometem viajar mais e melhor; no imaginário dos extraterrestres etc.etc.. Os heróis do cinema e posteriormente os ídolos da rádio, os músicos hipertrofiados de qualidades e de rebeldia rock sintetizam esta ânsia popular de dominar a insatisfação e partir rapidamente para o futuro. Na generalidade as canções rock baseiam-se numa permanente e continua descredibilização do presente de tal forma que os agentes do desligamento se constituem automaticamente como as primeiras imagens de re-colagem. No campo da política, as utopias ideológicas fortíssimas no século XX com os seus heróis guerreiros, prometedores de um futuro diferente como Che Guevara e o subcomandante Marcos são a substancialização em política do mesmo imaginário que fora já rescrito vezes sem conta pelo herói cinematográfico – aquele que traz mais depressa o futuro ao presente. O fenómeno tem sido aliás denunciado pelos marxistas que sustentam que o niilismo é central na dínamos capitalista. È a activação de um mecanismo constante de desrealização (dissolvência) da actualidade que potencía o desejo a ânsia de agarrar as imagens, as primeiras, que assomem à porta do vazio. No rock tal como nas ideologias e como no cinema os que melhor desrealizam são os primeiros a constituir imagens de idolatração. |
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(1) Filme de Steven Lindsberg. Tron foi exibido pela primeira vez em 1982 e produzido pela Disney. (2) Frase extraida de um texto de Bragança de Miranda intitulado ” Musil: De um outro uso das paixões” disponível em http://www.ubi.pt/~comum/miranda-musil-paixoes.html ( 05/01/2004). (3) Excerto de Benjamin, Walter - El autor como productor (1934). Traducción de Jesús Aguirre, Taurus Ed., Madrid 1975, disponível em http://inicia.es/de/m_cabot/el_autor_como_productor.htm (05/01/2004). (4) Patocka, Jan, L´Art et le Temps , P.O.L., Paris, 1990. |
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