CICLO
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CADERNOS DO ISTA, 15 |
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O que é curioso no fenómeno televisivo que ocupou e dominou a segunda parte do séc.XIX é que a televisão impôs uma nova classe de ídolos. Numa primeira fase, a televisão volta a aproximar os ídolos do quotidiano. As pessoas famosas voltam a ser as pessoas comuns mas dotadas de qualidades excepcionais: ter boa voz, boa imagem, saber comunicar, sabem cantar, dançar, dizer piadas, representar, jogar futebol. Os locutores, cantores, jornalistas, humoristas, futebolistas passam a ser os ídolos da primeira fase, a fase estatal da televisão. A privatização trouxe uma nova classe de ídolos que pela sua invulgaridade desafiam a nossa compreensão. Um reality – show como o Big Brother pegou num rapaz de Barrancos sem nenhum especial atributo à primeira vista e tornou-o na pessoa mais famosa do país. O que é que explica que tanta gente tivesse tanto interesse pelo homem sem qualidades “Zé Maria” de um momento para o outro? E que misteriosamente também de um momento para o outro tenha deixado de ter interesse nele? No meu entender, os “reality Shows” não são uma mera novidade entre outras da programação televisiva entrada na fase concorrencial. São o sintoma de uma nova época da vida, de uma nova época da experiência, de uma nova realidade já formatada pela linguagem audiovisual da televisão. A característica maior dos reality shows é o facto de determinadas pessoas exporem publicamente a sua vida privada. Ou seja algo que supostamente se tenta proteger e impedir que se saiba, como a vida íntima, é exposto publicamente sem pudor nem arrependimentos. O que significa que para muita gente expor factos da vida pessoal, sentimental e sexual não é nada que ponha em causa a identidade, que provoque nessas pessoas crise ou depressão. Isto configura tanto uma crise da vida privada como da vida publica.. A publicitação de factos da vida privada é perigosa sobretudo para quem tem fortes Eus Públicos a defender sobretudo na vida profissional. O desaparecimento do Ego Publico nas relações sociais entre as pessoas levam-nas a buscar a sua identidade publica na sua fonte cada vez mais exclusiva - a televisão. O programa do ser público é um dos mais fundamentais para a vida. Ser reconhecido pelos familiares pelos vizinhos, pelos amigos é essencial para se produzir uma identidade estável. Se o círculo familiar é cada vez mais reduzido e o dos vizinho e amigos quase inexistente então o ser professor , médico , polícia , juiz , deixa de ser fonte de admiração social. Se ser bom trabalhador vai deixando de produzir reconhecimento, o que é que fica? Fica um vazio. Aquilo a Prado Coelho chamou um dia a “Invisibilidade Assassina” leva os indivíduos em busca daquilo que os pode pôr novamente nas bocas do mundo. E actualmente o que põe nas bocas do mundo é a televisão. No “Big Brother”, os espectadores satisfazem a sua curiosidade por várias coisas cada vez mais perdidas e afastadas das conversas quotidianas. Comprovam o niilismo segundo Nietzsche para quem o vazio era sobretudo derivado do excesso de imagens que não deixava ver o que estava a acontecer realmente. Como é que outros comuns como eu agem no seu quotidiano e resolvem os seus dilemas relacionais e sentimentais? Os indivíduos espectadores satisfazem essas necessidades através da televisão porque a emissão televisiva passou a ser o principal municiador e estruturador das identidades modernas. O ídolo Zé Maria é ídolo de um novo desejo – o desejo da identidade televisiva. A televisão oferece quotidiano, conversas, receitas de cozinha, notícias. Oferece os modelos e comportamento social nas telenovelas e nos filmes. Oferece os modelos de aparência estética que são os ou as top models . A televisão programa-se para ocupar e controlar o quotidiano vinte e quatro horas por dia, tapando o descontrolo da existência real. É a televisão também que eleva as pessoas a uma dimensão pública ficando também cada vez mais isolada nessa tarefa. Quem não aparece, por melhor que seja a sua obra não existe publicamente e isso reflecte-se no equilíbrio da sua identidade. Não se trata de um desejo megalómano de fama mas da seguinte coordenada: “Só se eu for à televisão é que a minha porteira me fala e decide conversar comigo” e isso, ou seja o sistemas de interesses que levam as pessoas a falar umas com as outras sempre foi fundamental para religar as relações fundamentais de proximidade. Perceber-se melhor agora Musil na sua preocupação em demonstrar que o homem perdendo o controlo sobre as suas qualidades fica na dependência da maquinaria que vai produzindo “imagens” que servem apenas para serem ocupadas mesmo que paradoxalmente essas imagens sejam as de “homens sem qualidades”. A televisão, mais que domínio sobre as imagens tem o domínio do fenomenal ou seja da intensidade com que aparecem e são ocupadas. A televisão fornece regras, normas e modelos para o agir e para a personalidade dos indivíduos. Seguindo a fórmula televisiva, as pessoas preparam-se para ser vistas como se fosse na televisão. Cuidam do corpo em ginásios, vestem-se e tratam da aparência porque sentem que os outros os olham e comparam pelos modelos televisivos. O herói do “Big Brother” é portanto alguém que se olha com inveja: “ Foi aquele que foi chamado para ter identidade pública em vez de mim”. Resta-nos a todos aguardar. Os milhões de fiéis do reality shows são uma espécie de fila gigante à espera da sua vez para ascender, não ao palco televisivo, mas à identidade através do palco televisivo. Os quinze minutos de fama a que toda a gente aspira não é o sintoma de um ego deformado é uma questão essencial da existência moderna. As próprias antigas vedetas da canção e do desporto tem que se sujeitar a este novo formato que modela as identidades modernas, feito pela exposição das vidas privados. As massas estão sedentas de identidades e estão a pôr de parte as virtudes ou os atributos excepcionais que ainda há bem pouco tempo eram suficientes para constituir ídolos. Os novos ídolos dos reality shows demonstram que cada vez mais gente é treinada para uma profissão que não exerce: - trabalhar num palco televisivo. Viveram desde pequenos dentro do écran catódico, o lugar mais importante da casa. Aprenderam a imaginar, a ver, a conversar segundo as regras da linguagem televisiva. Resta-lhes ficar na fila e aguardar a sua vez de estar em frente às câmaras e adorar os que o conseguiram primeiro. A vida privada tornada ídolo é um dos mais curiosos fenómenos da vida moderna visível pelo sucesso que têm não só os programas televisivos que a exploram com o sucesso massificante das revistas cor-de-rosa que competem pela apresentação de interiores de casas e de vidas. No meu entender, este fenómeno deve-se a uma incapacidade de as elites intelectuais conseguirem entender o fenómeno popular da experiência audiovisual, coisa que fortalece a experiência interior ao mesmo tempo que dispersa e enfraquece o fenómeno do ídolo e do herói. As razões para esse fracasso talvez estejam no desprezo que o conhecimento sempre devotou aos fenómenos da cultura popular. O Ídolo é tanto mais forte e obsessivamente cultivado quanto maior for a inquietação interior e o vazio de explicações e o poder das máquinas desrealizantes para as quais o pensamento pós-modernistas muito tem contribuído. Trata-se aqui de não cometer o erro de pensar que basta uma boa interpretação para destruindo as estátuas destruir o culto. É que o problema pode estar na vertigem da destruição. Trata-se sim de perceber que é preciso que outras narrativas e outros heróis “mais densos” inundem a cultura popular reforçando e fazendo os ídolos que já lá estão perder o seu valor uso. |
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